Existe alguém que está contando com você
Pra lutar em seu lugar já que nessa guerra
Não é ele quem vai morrer[…]
Veja que uniforme lindo fizemos pra você
E lembre-se sempre que:
Deus está do lado de quem vai vencerO Senhor da Guerra não gosta de crianças!
(Legião Urbana)
Resumo: Carl Gustav Jung, fundador da psicologia analítica tem como pressuposto central de sua teoria, que o ideal do desenvolvimento humano é o processo de individuação, que consiste em grandes linhas, em integrar aspectos psíquicos sombrios e inconscientes à consciência, fazendo com que este individuo se diferencie da coletividade e encontre o sentido de sua vida e existência. A partir desta visão, o objetivo deste artigo será compreender a visão humanitária de Jung, por meio de algumas cartas escritas pelo autor na época da 2ª Guerra Mundial, bem como no pós-guerra. Jung, deixa além de um legado teórico, em suas cartas uma expressão de sua individualidade, quando fala a cada pessoa, o que pensa e sente. É uma pequena amostra deste fator em seu discurso que pretendo abordar neste artigo.
Palavras-chave: Cartas; Jung; Comportamento coletivo; Comunicação humanitária; Guerra
A guerra. Uma velha e temida conhecida da sociedade. Ela existe desde os mais remotos tempos. O homem sempre lutou para conquistar territórios, o que dá a ele poder e ascensão sobre pessoas e pensamentos. O meio de alcance desta conquista nunca foi dialógico ou diplomático. Ao contrário, sempre foi truculento e violento. Pautado na força e na imposição. No mundo contemporâneo estes enfrentamentos tem se tornado mais frequentes. Entre inúmeras matérias divulgadas no site da ONU, há uma análise da situação atual do mundo em relação aos conflitos:
“Mas, como todos sabemos, as operações de paz enfrentam sérias barreiras que exigem novas abordagens:
- As guerras estão se tornando mais complexas e mais mortais.
- Elas duram mais tempo e estão mais envolvidas em dinâmicas globais e regionais.
- Os acordos negociados têm sido mais difíceis de serem alcançados.”[1]
Enfim, estamos em um mundo, sujeitos a violência constante, com pensamentos disformes e polarizados, que faz com que as pessoas se percam no coletivo.
Valores humanos perdem espaço. Notícias são enviesadas por interesses políticos e econômicos e alguns posicionamentos são rasos e sem referências confiáveis. Há distorções e normatizações perigosas. Num cenário como este, a comunicação assume cada vez mais um aspecto político, social, mas também psicológico. Por este motivo entender vieses e aspectos psíquicos envolvidos neste processo é fundamental.
Vale dizer que a psique não é um fenômeno exclusivamente pessoal. Ela se corporifica também no meio público, social.
Tal como seres sociais que somos, influenciamos e somos influenciados todo o tempo. Dependemos e criamos dependência. Fortalecemos vínculos e nos distanciamos. Resolvemos ou criamos conflitos e damos a estas conotações, sentidos mais ou menos impactantes. Na maioria das vezes tudo isso acontece por conta de processos comunicacionais, pelos quais somos enredados, tenhamos ou não consciência disso. Não passamos ilesos aos noticiários e nem à enxurrada de informações via internet pela qual somos diária e insistentemente bombardeados. Este volume de dados e informações são tão poderosos que tem inclusive o poder de nos adoecer. As informações “viralizam”, “inflamam”, assim como nosso corpo mediante as crises a qual estamos diariamente expostos. Qual é o remédio?
1. O olhar de Jung para um mundo em guerra
No desenvolvimento de sua carreira, Jung viveu algumas controvérsias, dentre elas uma acusação de antissemitismo. Em 1933, ano em que Hitler estabeleceu o nazismo, Jung foi eleito para presidir a sociedade Internacional de Psicologia em Berlim. É neste momento passa a ter o seu nome vinculado à revista científica publicada pela Sociedade e que possuía um viés político, onde nesta época, o foco era unir os médicos alemães no espírito do governo nacional-socialista – o nazismo.
Jung se esforçou para tornar a organização internacional, mas deixou o posto ao escrever um artigo chamado Wotan. Nele, Jung descreve de forma primorosa o seu horror ao nazismo e os perigos da contaminação psíquica pela qual passava a Alemanha. Como resultado teve suas publicações queimadas por ordem de Hitler. Houve também uma publicação de 1934 intitulada A situação atual da psicoterapia, em que Jung afirma que a psique judaica seria diferente da psique alemã. Ele sustenta sua teoria nos pressupostos do inconsciente coletivo, que entende ser peculiar para cada nação, porém seu posicionamento gera críticas. Além de antissemita também foi acusado de usar o regime para se autopromover. (Campos & Piccinato, 2019)
Bárbara Hannah (2003) sua amiga e biógrafa, descreve com repugnância estas acusações feitas a Jung:
Para qualquer pessoa que, como eu, tenha estado em Berlim com Jung em julho de 1933, e que o tenha visto e ouvido com frequência durante os 28 anos que se seguiram, a calúnia de que Jung era nazista é tão absurda e completamente destituída de fundamento, que nos desperta ojeriza levá-la suficientemente a sério para desmenti-la. Além do mais, essa crença existe principalmente em pessoas que desejam acreditar, sendo sempre um desperdício de energia tentar dissuadi-las. (Hannah, 2003 p.223)
Clark (1993) comenta que Aniela Jaffé, judia, colaboradora e amiga de Jung, se refere a ele como alguém que repudiava as atitudes nazistas. Segundo ou autor, “Aniela Jaffé[…] menciona a ligação, nesse período, de Jung com numerosos judeus, tanto pacientes como colegas, e a ajuda, conselho e auxílio financeiro que deu pessoalmente a numerosos judeus durante o período da perseguição nazista.” (Clark, 1993, p. 172).
Visão esta endossada por Hannah (2003):
Quando me lembro do quão exausto Jung estava ao voltar depois da reorganização da Sociedade Médica Geral Internacional de Psicoterapia e do quão feliz ficou porque, conforme suas expectativas otimistas, os médicos judeus tinham pelo menos uma sociedade na qual seriam plenamente aceitos e livres; e de quantos judeus eram sempre membros altamente valorizados em nosso grupo de Zurique, sou obrigada a concluir que, também nesse caso, trata-se, principal ou inteiramente, de pessoas quererem acreditar em um boato. Jung também não mediu esforços mais tarde para ajudar emigrantes judeus da Alemanha a se estabelecerem em outros países. Muitos judeus de destaque – entre os quais o Dr. Gerhard Adler, de Londres – negaram publicamente que houvesse qualquer verdade no boato, o que aparentemente não teve efeito nenhum, de modo que pareceu inútil prosseguir.
(HANNAH, 2003, p. 235)
É na obra Aspectos do Drama Contemporâneo OC 10/2 (2012), que Jung escreve o seu artigo: Wotan. “Wotan é um deus da tormenta e da efervescência, desencadeador das paixões e das lutas e, além disso, mago poderoso e artista das ilusões, ligado a todos os segredos de natureza oculta.” (Jung, 2012, § 375). Os meios pelo qual este deus nórdico, mitológico atinge seus objetivos envolve dor e sacrifícios. Seu símbolo arquetípico é frequentemente associado a um poder desintegrador, representando os aspectos sombrios da psique, os quais muitas vezes são negligenciados ou reprimidos na consciência.
Para Jung (2012), o crescente culto a Hitler e os eventos catastróficos que se sucederam na Alemanha e na Europa como um todo, culminando com a eclosão da Segunda Guerra, eram exemplos da manifestação do despertar de forças inconscientes coletivas, similares à força arquetípica de Wotan. Essas forças coletivas, segundo o autor, representavam uma espécie de “desintegração da psique europeia“, com o retorno de energias primordiais que haviam sido reprimidas durante séculos de racionalismo e controle cultural.
Nas palavras do autor:
Na verdade, os arquétipos são como leitos de rios, abandonados pelas águas, mas guardando sempre a possibilidade de retornar depois de um certo tempo. Um arquétipo é como o curso de uma velha torrente em que fluíam várias águas da vida e que foram profundamente enterradas. […] Enquanto a vida do indivíduo é regulada pela sociedade à semelhança de um canal retensor de águas, sobretudo no âmbito do Estado, a vida dos povos se mostra como o curso de uma torrente do qual ninguém é senhor, ao menos nenhum homem, a não ser aquele Um que foi sempre mais forte do que os homens. […] É por isso que o acontecer político corre de um beco sem saída para outro, como um riacho na selva que flui por entre barrancas, meandros e pântanos. Quando se trata do movimento da massa e não mais do indivíduo, cessam os regulamentos humanos e os arquétipos passam a atuar. (Jung, 2012, § 395)
Jung comenta que no processo analítico de diversos clientes alemães, em anos de terapia, ele observou a expressão desse arquétipo surgir por meio de questões relacionadas a temas como primitividade, violência e crueldade.
Logo, ele apreendeu, juntamente com suas observações pessoais, que essas manifestações apontavam para um estado mental predominante na Alemanha. Ele diz: “num artigo publicado nessa ocasião, exprimi minha suspeita de que a blonde Bestie[2] (a besta loura) movimentava-se num sono intranquilo e uma irrupção não era de modo algum impossível. (Jung, 2012, § 447, grifos do autor)
É nesta publicação também, que Jung escreve seu ensaio “Posfácio à: Ensaio sobre a história contemporânea”, de 1946. Ele relata explicitamente aqui seu pensamento e toda sua repugnância com a guerra – desde a primeira guerra -, e com a figura de Hitler, dado o poder de influência de massa que este utilizou de maneira vil durante anos, assim como na própria guerra. Em sua obra, ele deixa claro sua visão e seu posicionamento humanista e o quanto discordava deste cenário que tanto o afetava.
Jung, por meio de suas pesquisas e de seu modo empírico de lidar com os temas e com suas relações, já percebia, como dito, os sinais de uma catástrofe, desde a primeira guerra. Em seus posicionamentos ele alerta para um fenômeno que ele chamou de posteriormente de contágio psíquico. Jung destaca o perigo da ação da massa sobre a personalidade individual. Chama a atenção para as consequências negativas da manifestação dos arquétipos como um risco para os movimentos de massa. Em 1929, ele tem um texto editado com Richard Wilhelm onde fala sobre o mecanismo nocivo da projeção como porta de entrada de epidemias psíquicas. Ele diz:
As guerras e revoluções que nos ameaçam com tanta violência nada mais são do que epidemias psíquicas. A todo momento contamos com a possibilidade de milhares de pessoas se deixarem tomar por um delírio, e com isso, viveremos mais uma guerra mundial ou uma revolução violenta. Em lugar dos animais ferozes, dos terremotos e grandes inundações, o homem hoje se vê exposto às suas forças psíquicas elementares. O psíquico é um poder imensamente maior do que todas as demais forças terrestres.
(Jung, 2012, § 471, grifos do autor)
No ano de 1937, em uma conferência na Universidade de Yale, Jung fala sobre o fanatismo e o significado nefasto de seguir obstinadamente alguém. Ressalta que entender fatos históricos é imprescindível para compreender o presente e não cair em uma armadilha de solução mágica para questões sociais complexas. Critica a exacerbação da racionalidade e a moralidade massificada, sem reflexão. Ressalta ainda nesta preleção o mal da polarização e o medo como impulsionador de decisões delegadas ao coletivo. Em 1940 a tradução alemã de suas preleções fora publicada. Após a ocupação da França, Jung foi impedido de participar de conferências. Ele comenta que todas as edições francesas de suas obras foram destruídas pela Gestapo.
James Hillman (1993), um contemporâneo de Jung, nos traz uma visão arquetípica, complementar do significado da guerra e de porque é tão difícil lidar com os conflitos e com suas consequências. O autor nos contempla com uma visão ritualística da guerra, como um referencial coletivo que permeia a história humana. Ele nos convida a entrar no imaginário deste processo para que seja possível realizar um entendimento mais acurado de seu significado. “Durante os 5.600 anos de história escrita, houve pelo menos 14.600 guerras registradas” (Hillman, 1993, p. 82).
É interessante a sua fala sobre a beleza e o amor implicados nas guerras. Para isso, associa a guerra com as imagens arquetípicas do deus Marte (ou Ares na terminologia grega). Ele é violento e sanguinário. Seu contraponto, ou sua sombra é o amor, representado por Vênus, por quem é apaixonado. Na mitologia, eles são amantes e mantêm um relacionamento turbulento. Mas como o amor (Vênus) é sombra da guerra (Marte), e não há integração, dada a polarização em que vivem, a beleza em Marte fica por conta das batalhas travadas. É o que ainda vemos. Os combatentes, ou melhor os “vencedores” são sempre contemplados com estátuas e bustos, viram alegorias e mesmo nomes de ruas.
Desta forma, o autor reforça a visão de Jung onde os conflitos se manifestam de forma arquetípica, como consequência de um comportamento que encontra ressonância no coletivo.
“Essa abordagem sustenta que os acontecimentos arquetipicamente repetidos, ubíquos, altamente ritualizados e passionais são governados por padrões psíquicos fundamentais”.
(Hillman, 1993, p 84).
É como se as pessoas que estão submetidas à guerra estivem sobre um estado de transe, não se percebendo como cruéis, ou assassinas, ou mesmo tomadas por uma força que nem sentem mais à qual causa estão vinculadas. Tudo termina por virar um espetáculo.
Para Hillman, as guerras irrompem, elas transcendem o humano. E ele continua:
Considere quantos tipos diferentes de lâminas, armas, ferramentas mentais e temperamentos são moldados […] que têm sido carinhosamente afiadas com a ideia de matar. […] Olhem as recompensas. […] Cerimoniais, postos, […] continências, treinamentos, comandos […] paradas e condecorações militares, chapéus emplumados, pistolas com cabo de marfim. As grandes muralhas e baluartes de severa beleza construídos por Brunelleschi, Da Vinci, Michelangelo e Buontalenti […] cartas no front, poemas. […] o escudo de Aquiles, no qual está esculpido o mundo inteiro. (Hillman, 1993, p. 87, grifo do autor)
Todas estas imagens e representações de significado para os conflitos humanos, desde os mais remotos tempos, faz-nos perceber que, para atuar com uma comunicação humanitária, há muitas camadas, densas e profundas de um inconsciente coletivo que tem muita força.
Neste cenário cada vez mais polarizado e individualista que vivemos, podemos pressupor pelas palavras de Hillman e de Jung, que a robustez desta coletividade se fortaleça ainda mais.
2. A visão humanista permeando as cartas de Carl Gustav Jung
Durante toda sua vida Jung se viu diante de diversos interlocutores, seus correspondentes, com quem se comunicou por meio de cartas. Eram médicos, terapeutas, filósofos, padres, pessoas comuns que que gostariam de contar com sua ajuda para questões de ordem pessoal. Ele respondia a todos, por vezes se desculpando pelo atraso, e se justificando pelo grande volume de cartas que tinha por responder. Este material, foi compilado por Aniela Jaffé, sua secretária e assistente de muitos anos, e Gerhard Adler, psicoterapeuta londrino, amigo de Jung. Eles contaram com a ajuda de sua filha Marianne Niehus-Jung e outros que lhe eram próximos. (Jung, 2018a)
Suas cartas compõem três publicações que hoje fazem parte do seu legado teórico. Dentre as cartas que ele escreveu, muitas delas foram redigidas falando sobre os períodos em que o mundo esteve em conflito. Ele compartilha com seus interlocutores pensamentos e ideias acerca de como compreendia estas realidades a partir de seu posicionamento individual.
O conteúdo de sua narrativa corrobora com os pensamentos expressos em suas obras, mas a forma de expressão nas cartas é mais pessoal, direcionada a cada interlocutor, conforme seu grau de conhecimento e intimidade, diferente da descrição teórica como visto aqui na seção anterior. Suas ideias, no contexto das cartas, direcionadas a pessoas em particular, hoje, estão ao dispor do público em geral para benefício da pesquisa.
Importante salientar que estas cartas foram escritas nas respectivas datas, como respostas aos seus correspondentes. As publicações não têm as cartas que incitaram as respostas de Jung. Algumas delas, trazem notas com informações que contextualizam aspectos do diálogo, mas nem todas. Serem respondidas a uma pessoa específica em uma data específica torna este um material histórico e especial. São praticamente 90 anos de distância entre aqueles acontecimentos, os envolvidos e suas imediatas consequências. Em seu contexto histórico/geográfico, Jung era nativo e morador da Suíça. Na Segunda Guerra Mundial, este país assumiu uma postura de neutralidade. Ela até se preparou, mas não foi atacada e nem se envolveu no combate.
Sobre seu país, o próprio Jung diz o seguinte:
Na Suíça, nosso país, tanto do Norte como do Sul sopra um vento inofensivo e suspeito, tão idealista que ninguém chega a se aperceber de nada. Quieta non movere (Não mexer no que está quieto) é uma sabedoria que muito nos convém. Muitas vezes os suíços são censurados por demonstrarem grande resistência em se assumirem como um problema. Devo rebater essa opinião e dizer que o suíço é um povo pensativo, mas não o diz, de maneira alguma, mesmo considerando por onde o vento sopra. Desse modo, pagamos nosso pesado tributo ao tempo tormentoso e ao ímpeto germânicos na impressão de que somos melhores. Entretanto, o que ocorre realmente é que os alemães dispõem agora de uma oportunidade histórica única para aprender a ver no mais íntimo de si, de que labirintos obscuros da alma o cristianismo pretendia salvar o homem. (Jung, 2012, p. 21, grifos do autor)
É deste lugar, com esta perspectiva que Jung vive estes períodos como ele próprio chamou, sombrios e catastróficos, que Jung se manifesta. É desta condição que também escreve para seus correspondentes. Ele era um humanista e se autodefinia como um empírico “Não sou filósofo, mas empirista e, por isto, em todas as questões difíceis, inclino-me mais a deixar que a experiência decida.” (Jung, 1991, § 604), assim sendo, era fiel às suas convicções e suas crenças.
Transcrevo abaixo alguns trechos de cartas selecionadas de Jung, nos Volumes 1 e 2 de Cartas (2018a e 2018b).[3]
- Volume 1
Destinatário: Destinatária não identificada
Data: 05/10/1939
Local: EUA
[…] Estive num ponto bem próximo à fronteira entre as linhas de batalha da França e Alemanha. Era possível ver as fortificações francesas e alemãs, mas tudo estava tão quieto e pacífico quanto possível. Não havia barulho nem tiros; as aldeias foram evacuadas, e nada se mexia. […] Convidaram-me para ser candidato ao parlamento nacional. […] Eu lhes disse que não era político, e eles responderam que era exatamente por isso que me queriam, pois políticos já havia demais. Se for assim, respondi que posso aceitar. […] Com boa dose de sorte, talvez eu possa dizer algo razoável. Fui informado de que o povo quer representantes que defendam os valores espirituais. É um sinal interessante dos tempos. Eu estou apenas na lista, insisti que me colocasse no último lugar, pois ainda espero não ser eleito. […] Se eu puder ajudá-la a vir para a Suíça, tentarei fazê-lo através da fremden-polizei. […] Atmosfera está tremendamente conturbada, e é muito difícil manter-se alheio. As coisas que acontecem na Alemanha são incríveis e o futuro está cheio de possibilidades impensáveis. A sensação é completamente a apocalíptica. É como no tempo em que Deus permitiu que Satanás andasse pela terra por um tempo e meio. Os alemães, tanto quanto os conheço, estão em parte aterrorizados e em parte bêbados de sangue e vitória. Se houve algum dia uma epidemia mental, é esta a condição mental da Alemanha de hoje. O próprio Hitler (pelo que ouvi) está mais do que apenas meio maluco. (p. 287, 288)
Destinatário: Dr. Helton Godwin Baynes
Data: 12/08/1940
Local: Londres
Até hoje Bollingen – e a Suíça – escaparam da destruição geral, mas vivemos numa prisão[…] os jornais foram reduzidos praticamente ao silêncio, e não se tem vontade de lê-los, ou no máximo as notícias duvidosas da guerra. Durante a certo tempo, quando li o seu livro, estive com meus netos na Suíça ocidental, pois esperávamos um ataque. Depois disso tive muito que fazer, porque todos os médicos tinham sido convocados. […] Escrever cartas é um assunto delicado, pois o sensor lê tudo mas gostaria de dizer-lhe que penso muitas vezes no senhor em todos os meus amigos na Inglaterra. […] Eu amo a natureza, mas não o mundo dos homens, nem o mundo que virá. Espero que esta carta chegue ao senhor ele e leve todos os desejos que o coração humano não pode reprimir, apesar dos sensores. Em última análise eles também são seres humanos. (p. 294, 295)
Destinatário: Allen Welsh Dulles
Data: 01/02/1945
Local: Londres
[…] a propaganda alemã tenta solapar a moral, na esperança de um eventual colapso […] as proclamações do General Eisenhower […] feitas em linguagem simples, humana e compreensível a qualquer pessoa, oferecem ao povo alemão algo em que ele possa agarrar e tendem a fortalecer a crença, que talvez seja verdadeira, na justiça e humanidade dos americanos. […] o General Eisenhower deveria certamente ser congratulado. (p. 362)
Destinatário: Dr. Hermann Ullmann
Data: 25/05/1945
Local: Genebra
A culpa coletiva da Alemanha consiste no fato de que foram os alemães que causaram a guerra e todas as atrocidades indizíveis dos campos de concentração […] esta culpa coletiva não é nenhuma construção moral ou jurídica, mas um fato psicológico que é irracional em si […] seria desejável que os alemães tomassem a peito esse fato e não cometessem o erro tático de insistir em toda parte que ninguém sabia dos campos de concentração. […] chegou-se mesmo a afirmar que os ingleses foram os culpados pela existência dos campos de concentração porque não impediram a chegada de Hitler ao poder. […] Desejaria que o senhor tivesse visitado como observador neutro os congressos alemães, franceses, ingleses e americanos, para mencionar apenas uma das possíveis formas sociais de contato. […] O que se viu de falta de tato, grosseria, descortesia etc. por parte dos alemães foi contrabalançado pelas qualidades sem dúvida amigáveis de muitos alemães. Há 30 anos ouve-se apenas que a Alemanha ameaça seu mundo ambiente, ou que o violenta de forma vergonhosa, ou que se queixa de falta de compreensão. Os povos deveriam obedecer à Alemanha ou compreendê-la amorosamente. Mas o que devem os alemães à Europa? A “culpa coletiva” significa exatamente esta pergunta: O que a Alemanha deve à Europa depois de tudo o que aprontou nesses 30 anos? […] Se, por exemplo, um índio Pueblo me disser um dia: “Vocês europeus são piores do que animais ferozes”, tenho de concordar polidamente, pois não conseguiria mudar sua justa avaliação sacudindo de mim de antemão qualquer cumplicidade. (p. 373, 374)
- Volume 2
Destinatário: Erlo van Waveren
Data: 25/09/1946
Local: Nova York
O mundo todo com seu tumulto e miséria está num processo de individuação. […] Se soubessem disso, não estariam em guerra uns com os outros, pois quem tem a guerra dentro de si não tem tempo nem prazer de lutar com os outros. […] Coloca-se evidentemente a questão se podem suportar esse procedimento. Mas esta é também a questão quanto à vida, insuportável para milhares de pessoas, como o senhor pôde ver nos acontecimentos recentes. A individuação é a vida comum e aquilo de que temos consciência. (p. 48)
Destinatário: Dorothy Thompson
Data:23/09/1949
Local: EUA
A senhora sabe que me preocupo tão profundamente quanto Senhora com a situação fora do comum e sinistra do mundo. (A propósito, li vários de seus comentários políticos e admirei sua inteligência prática e seu bom senso.) […]. Uma situação política é a manifestação de um problema psicológico paralelo em milhões de indivíduos. Esse problema é em grande parte inconsciente (o que o torna particularmente perigoso). […] Consiste no conflito entre um ponto de vista inconsciente (ético religioso filosófico social político e psicológico) é um inconsciente, que se caracteriza pelos mesmos aspectos, mas é representado numa forma “inferior”, isto é, mais arcaica. Em vez da “alta” ética cristã, temos as leis de rebanho, repressão da responsabilidade individual e submissão ao chefe tribal (ética totalitária). Em vez da religião, credo supersticioso numa doutrina ou na verdade ad hoc; em vez de filosofia, um sistema doutrinário primitivo que “racionaliza” os apetites do rebanho; em vez de uma organização social diferenciada, uma aglomeração caótica e sem sentido de indivíduos desenraizados, mantidos submissos pela força e pelo terror, cegados por mentiras convenientes; em vez do uso construtivo do poder político com o objetivo de conseguir um equilíbrio das forças desenvolvidas livremente, a tendência destrutiva de estender a repressão ao mundo inteiro para obter mera superioridade de poder; em vez de psicologia, o uso dos métodos psicológicos para extinguir a centelha individual é inibir o desenvolvimento da consciência e da inteligência. […]
Encontramos este conflito em quase todos os cidadãos de todos os países do ocidente. Mas a maioria não tem consciência dele. […] Por isso temos que considerar o seguinte: 1) Não somos imunes. 2) Os poderes destrutivos estão precisamente dentro de nós. 3) Quanto mais inconscientes forem, tanto mais perigosos. 4) Somos ameaçados tanto de dentro quanto de fora. 5) Não podemos destruir o inimigo pela força; não devemos nem mesmo tentar vencer a Rússia, porque destruiríamos a nós mesmos, uma vez que a Rússia é, por assim dizer, idêntica ao nosso inconsciente que contém nossos instintos que todos os germes de nosso desenvolvimento futuro. 6) O inconsciente deve ser integrado devagar, sem violência e com o devido respeito pelos nossos valores éticos. Isso requer muitas alterações em nossos pontos de vista religiosos e filosóficos.
O ocidente se vê forçado ao rearmamento. […] Temos de estar preparados para o pior. Se for o caso, a Europa terá que ser organizada pelos Estados Unidos à tort et à travers. E isso será de vital importância para os Estados Unidos. Mas nenhuma agressão! Sob hipótese alguma! Somente a própria Rússia poderá derrotar a si mesma. Não podemos derrotar os nossos instintos, mas eles podem inibir-se uns aos outros[…]
A Rússia realmente está no caminho da guerra, e somente o medo daqueles que disso sabem é que a retém. […] Nem a racionalidade nem a diplomacia são métodos para lidar efetivamente com a Rússia, porque ela é dominada por um impulso elementar (como aconteceu com Hitler). […] Gostaria de chamar sua atenção para o meu pequeno livro Essays on Contemporary. […]. Ali encontrará mais algumas contribuições ao grande problema de nosso tempo […]
A felicidade terrena só é conseguida através da desgraça de outra pessoa, pois a riqueza cresce às custas da pobreza. O bem-estar social tornou-se o engodo, a isca e o slogan das massas desenraizadas […]. Não enxergam que elas mesmas deverão pagar por esta proeza com sofrimentos intermináveis. Por isso é bom saber que, na melhor das hipóteses, a vida nesta terra oscila entre uma quantidade igual de prazer e de miséria, e que o verdadeiro progresso é apenas a adaptação psicológica às várias formas da miséria individual. A miséria relativa. Quando muitas pessoas têm dois carros, a pessoa com um só carro é um proletário privado dos bens deste mundo e, portanto, com direito de subverter a ordem social. […]
Todos nós pensamos em termos de bem-estar social. E esse é o grande erro, pois quanto mais se procura estancar as formas vulgares da miséria, tanto mais se é enredado nas variantes inesperadas, novas, complicadas, intrincadas e incompreensíveis da felicidade, numa forma nunca antes sonhada. […] Devo dizer que prefiro uma pobreza modesta ou algum desconforto material (por exemplo, falta de chuveiro de eletricidade de carro etc.) a essas pragas. O pouco de progresso social conseguido pela Alemanha nazista e pela Rússia é compensado pelo terror policial, um item novo é muito considerável na lista das misérias, mas consequência inevitável do bem-estar social. Por que não bem-estar espiritual? Não há nenhum governo no mundo preocupado com isso. no entanto a ordem espiritual é o problema.
Se entendermos o que a Rússia é em nós, saberemos como lidar com ela politicamente.
[…] A tecnologia e o bem-estar social nada oferecem para superar essa estagnação espiritual e não trazem resposta a nossa insatisfação e inquietação espirituais. Mas por elas somos ameaçados de dentro e de fora. Ainda não entendemos que a descoberta do inconsciente significa uma enorme tarefa espiritual que deve ser cumprida se quisermos preservar nossa civilização. (p. 141,142,143,144)
Na primeira carta relatada aqui, a segunda guerra acaba de eclodir. Há em sua fala um perceptível medo e incerteza. Deixa claro o quanto o meio político não lhe é atrativo e sua compreensão sobre a necessidade de uma evolução espiritual da sociedade, campo onde sente-se confortável para contribuir.
Disse Hannah (2003) “[…] a psicologia de Jung é completamente incompatível com qualquer movimento político.” (Hannah, 2023, p. 224, grifos do autor).
Está expresso também em seu discurso uma preocupação com o futuro e uma confirmação de algo está se repetindo. Termos bíblicos e mitológicos são comumente usados por Jung para simbolizar suas ideias. Há uma ideia em sua fala, daquilo que Hillman comentou, tempos depois, sobre a manifestação arquetípica das guerras em relação ao amor e à beleza. Nas palavras de Jung, na referida carta: “Os alemães, tanto quanto os conheço, estão em parte aterrorizados e em parte bêbados de sangue e vitória” (Jung, 2018a, p. 289)
Na sua carta de 18/08/1940 ele demonstra estar muito pessimista com o destino da humanidade a partir do seu relato. Demonstra sentir-se oprimido, pela situação que a guerra impõe sobre as pessoas. Ele contava aqui com 65 anos e sentia-se cansado diante de tamanha adversidade. Ele ainda escreve nesta carta “nos dias de hoje é difícil ser velho, a pessoa sente-se desamparada. Por outro lado, sente-se numa alienação feliz neste mundo.” (Jung, 2018a, p. 295).
Jung, no decorrer de sua obra sempre criticou e por vezes definiu como doença o fato de se adaptar a situações coletivas e sociais sem uma autorreflexão.
Termina a carta de forma cordial com seu correspondente. Fica em relevância as questões sobre o humano e suas formas de expressão. Estas estão sempre presentes em seus escritos inclusive aqui, quando comenta, talvez com certa ironia, que quem realiza o senso, na guerra, são também humanos.
Já em fevereiro de 1945, com a guerra ainda em andamento e com a Alemanha pressentindo que perderia, ele fala sobre a comunicação neste processo. Elogia o General Dwight D. Eisenhower, (Comandante Supremo das Forças Aliadas da Europa), que demonstra em uma declaração, segundo análise de Jung, uma fala simples e coerente, que pode ser acalentadora e alcançar pessoas que sofrem e que veem de muito tempo ouvindo insinuações destrutivas.
Aqui vale uma ressalva. Lachman (2012), em uma análise biográfica de Jung fala sobre sua relação com Dulles. Por meio de uma grande rede de relacionamentos, Allen W. Dulles, que era agente aliado na Suíça e tinha como meta criar uma rede antinazista suíça, conheceu Jung e “deram início a um ‘casamento experimental entre espionagem e psicologia’ envolvendo o ‘perfil psicológico’ de líderes políticos e militares.” (Lachman, 2012, p. 193). Jung tornou-se neste período o “agente 448”.
Continua o autor comentando que as análises de Jung causaram grande impacto, quando ele comenta que Hitler poderia se matar frente a uma derrota.
Dulles impressionava-se com a profundidade de Jung e o quanto suas avaliações demonstravam uma imensa antipatia do psiquiatra pelo regime nazista.
Dizia Dulles: “ninguém provavelmente jamais saberá o quanto o professor Jung contribuiu para a causa aliada durante a guerra” (Lachman, 2012, p. 194), mas os serviços de Jung, dado seu alto sigilo nunca foram documentados. Como as ideias de Jung eram muito difundidas nas altas hierarquias do grupo aliado, o General Eisenhower “procurou ler Jung em busca de uma maneira de convencer o populacho alemão de que a derrota era inevitável e de que se render era a única opção” (Lachman, 2012, p. 194).
Lachman comenta ainda que Dulles falou para Jung que encaminharia sua carta ao general para uma avaliação. Esta ressalva deixa perceber que primeiro, Jung teve com a guerra uma relação de maior proximidade do que sabe e segundo, que a relação de Dulles e Jung foi mantida por longo tempo, porém nos registros de suas cartas há apenas esta, datada de 01/02/1945. Um traço interessante aqui é que, pelo que publica Lachman, Jung elogia as falas de Eisenhower, que estão baseadas em suas próprias premissas que, por inferência, reiteram aspectos humanos e de acolhimento da população, que a esta altura já sofria demasiadamente.
Há aqui, na carta de 25/05/1945, há uma indignação com a falta de verdades que existe no processo de comunicação das ações da Alemanha. Tornou-se popularmente conhecida a fala de que Alemanha negava possuir campos de concentração em que havia morte e tortura, e quando assumiam, descreviam estes locais como “modelos”, onde havia famílias, crianças e idosos inclusive sendo alimentados e mantidos em “boas condições”.
A indignação e até uma certa “vergonha alheia” (culpa coletiva) permeia aqui a fala de Jung, pois me parece que a esta altura, já não tinha mais saída: a catástrofe imputada pela guerra era conhecida e estava escancarada. A verdadeira situação não poderia mais ser ocultada de todos e a Alemanha insistia em não assumir a culpa pelas tragédias.
Quanto à “culpa coletiva”, a que Jung se refere na carta, é um termo que foi cunhado por ele, quando escreveu seu ensaio Depois da catástrofe, em 1945. Sobre o termo, neste ensaio, ele diz o seguinte:
A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos, que, de alguma maneira, se encontravam na proximidade do crime. Decerto, nenhum homem razoável e consciencioso haverá de confundir a culpa coletiva com a individual, responsabilizando um indivíduo antes mesmo de ouvi-lo. […] No entanto, quantas pessoas são conscienciosas e razoáveis ou quantas se esforçam por ser ou vir a ser? Nesse aspecto, não sou muito otimista. A culpa coletiva é, sem dúvida, uma impureza mágica, primitiva e arcaica e, justamente devido à irracionalidade generalizada, é algo bastante real que nenhum europeu que esteja fora da Europa e nenhum alemão fora da Alemanha pode deixar de considerar. Caso um alemão pretenda sair-se bem com a Europa, ele terá de adquirir consciência de que diante da Europa é um culpado.
(Jung, 2012, §405)
Na sequência, apresento duas cartas escritas no pós-guerra, que revelam como Jung mantém coeso e estruturado o seu pensamento sobre a forma de tratar o ser humano e a humanidade após as catástrofes presenciadas na Segunda Guerra Mundial.
Em uma resposta curta, à Erlo van Waveren, psicólogo analítico americano, em 1946, Jung retoma uma fala mais centrada em suas premissas empíricas e em sua teoria da individuação. Fala da individuação como o caminho para que o ser humano possa tomar o sentido de sua vida e existência e assim se conciliar de forma sadia consigo mesmo e com o coletivo. Isto está expresso na metáfora “[…] quem tem a guerra dentro de si não tem tempo nem prazer de lutar com os outros.” (Jung, 2018b, p. 48).
Ele termina a carta dizendo que essa busca é um processo profundo, individual, difícil e da vida toda.
Na carta à Dorothy Thompson, uma carta bem extensa datada de 1949, Jung detalha para ela seu pensamento sobre o mundo moderno e seus riscos provenientes do pós-guerra e com a presença de um novo conflito (época em que se estabelece a guerra fria). Ele apresenta um pensamento muito lúcio e organizado. Aparenta um posicionamento mais maduro e assertivo sobre como o homem e somente este como individuo é capaz de compreender seu verdadeiro papel no mundo e a partir daí gerar mudanças. Sua correspondente era uma jornalista americana, expulsa da Alemanha na década de 30 por sua posição contrária ao nacional-socialismo e havia solicitado a opinião de Jung sobre “a atual situação da América com relação à Rússia e pedido conselho sobre a atitude da América. Ela temia que pudesse haver guerra entre os dois países.” (Jung, 2018b, p. 145).
Sua resposta é extensa e contundente. Inicia compartilhando sua visão sobre o mundo. Relata sua visão simbólica sobre o a política como projeção psicológica de um inconsciente coletivo.
Tem críticas severas sobre a consequência dessa falta de consciência coletiva tais como: a atitude de rebanho, exacerbando uma liderança totalitária e uma racionalização, que por sua vez, retroalimenta este sistema que reforça o poder, o controle e a submissão. Isto tudo se dá, por meio de mentiras que sustentam a cegueira coletiva. Tudo em detrimento de uma sociedade organizada e de uma política ética e justa, que privilegia a liberdade. Chama a atenção claramente ao dizer que todos somos parte deste sistema. O poder do arquétipo está presente no inconsciente de cada um. Por isso enfatiza tanto a busca de um caminho para a individuação como recurso para a civilização.
Em sua obra ele comenta:
[…] a psicopatologia de massa tem suas raízes na psicopatologia individual. Fenômenos psíquicos desse porte podem ser investigados no indivíduo. E somente quando se consegue constatar que certas formas de manifestação ou sintomas constituem o somatório de diferentes indivíduos é que se pode dar início a uma investigação dos fenômenos de massa correspondentes.
(Jung, 2012, § 445)
Quanto à Rússia, pontua que há similaridades com a análise que fez sobre o domínio arquetípico na Alemanha. Acredita que poderá haver um movimento de proporção igual. Compreende que a Rússia quer a guerra e salienta o perigo de vir a confrontá-la com a força. Aliás, nos seus discursos aqui e em narrativas anteriores, é possível perceber que ele não era favorável a conflitos armados e a resoluções por meio da força. Perdemos, como ele próprio pontua, a capacidade de acessar o valor espiritual e de reflexão, onde ele compreende que está uma das possibilidades de resgate do indivíduo. Jung remonta novamente seu discurso para a importância da individuação.
Cabe aqui diferenciar alguns conceitos, para que não se faça confusões a este respeito.
Na teoria analítica deve-se considerar que a individualidade se define por aquelas características pessoais que nos diferencia uns dos outros, enquanto o individualismo, é compreendido como uma atitude que sobrepõe os interesses individuais aos interesses da coletividade (Sharp, 1997).
Na individuação extrapola-se o tornar-se consciente. Trata-se de uma realização profunda do arquétipo do si-mesmo, de uma busca por encontrar a totalidade, e não de uma inflação do ego, que pode cair fatalmente no individualismo. Para Jung “A individuação não exclui o mundo; pelo contrário, o engloba.” (Jung, 1991, § 432)
Por fim…
Nos recortes apresentados aqui, compreendo que tenha sido possível fazer uma conversa com que pensava Jung acerca da humanidade, de como as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, assim como na Primeira, foram chocantes e muito marcantes em sua vida e no destino da humanidade. Espero não ter sido muito reducionista nas observações realizadas sobre seus discursos nas cartas trocados entre ele e seus correspondentes, mas o objetivo deste artigo não foi o de aprofundamento, mas sim trazer para o conhecimento das áreas de psicologia analítica, a possibilidade de se encontrar em material tão extenso como na obra de Jung um discurso tão vívido e importante para o momento que vivemos.
Um exercício interessante de se fazer, seria fecharmos os olhos por um instante, abstrair o fato de estas cartas terem por volta de 80 anos e trazer seu discurso para o que vemos hoje em dia.
Compreendo que Jung era acima de tudo um visionário e sua teoria é viva.
Temos ainda muito o que explorar e aprender com seus pressupostos. Suas ponderações são elementares para o pensamento humanitário onde ele enfatiza que somente o homem, e cada homem, só estará liberto deste cenário massivo se puder se confrontar consigo mesmo. Isto passa longe do individualismo. Somente somos livres se vivemos em uma sociedade também livre, democrática, com valores éticos que inclua a todos.
O olhar para a psicologia junguiana nos mostra que há algo que é anterior à comunicação como um processo em si. É o homem como ser psíquico, com sua sombra coletiva e a consequente projeção social que causa as contaminações psíquicas. O meio tem força e tem poder de manobrar o pensamento e as ações individuais. Esta foi sempre sua a preocupação de Jung. Ele nunca baseou seus pressupostos em manuais, em técnicas e nem em fórmulas prontas. O autoconhecimento para ele era algo muito profundo que pede muita humildade e dedicação. Isto inclui ir na contramão de tudo que estamos observando na atualidade, ou seja, despir-se de preconceitos, crenças e estereótipos e olhar de forma genuína para dentro.
O mundo necessita de indivíduos e de lideranças que mediante conflitos e impasses tenham a capacidade de não subverter a necessidade coletiva em nome de seus interesses individualistas por poder, controle, autoridade e cerceamento de liberdades, imputando dor e sofrimento ao invés de ajuda.
Gilmara Marques Fadim Alves – Analista Didata em Formação IJEP
Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Referências:
CAMPOS, Viviane & PICCINATO, Ricardo. 100 minutos para entender Carl Jung. Coleção Saberes. Bauru, SP: Editora Alto Astral, 2019.
CLARK, J. J. Em busca de Jung. Indagações Históricas e Filosóficas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993.
HANNAH, Bárbara. Jung, vida e obra. Uma memória biográfica. Porto Alegre: Artmed Editora, 2003.
HILLMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
________________. Cartas I. Petrópolis: Vozes, 2018a.
________________. Cartas II. Petrópolis: Vozes, 2018b.
________________. A natureza da psique. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1991
LACHMAN, Gary. Jung, o místico: as dimensões esotéricas da vida e dos ensinamentos de C. G. Jung. Uma nova biografia. São Paulo: Cultrix, 1997
SHARP, Daryl. Léxico junguiano. São Paulo: Cultrix, 1997.
[1] https://brasil.un.org/pt-br/291588-guterres-opera%C3%A7%C3%B5es-de-paz-da-onu-protegem-pessoas-em-alguns-dos-lugares-mais-desesperadores
[2] Termo utilizado primeiramente por Nietzsche. “Em sua debilidade psicopática, brincou com a “besta loura” e o “super-homem”.” (Jung, 2012, p. 46)
[3] Trechos em negrito são meus e os grifos em itálico são do autor. As obras estão devidamente citadas nas referências.
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