Recentemente participei de uma série de palestras e discussões sobre a Síndrome da Impostora com profissionais da área financeira, que me fizeram refletir sobre o tema e buscar mais informações sobre como esta síndrome é deflagrada.
A Síndrome da Impostora, segundo Patrocinio (2021) é “caracterizada por pensamentos que reforçam a perda de confiança em si e a sensação de que o sucesso atingindo não foi merecido”.
Trata-se de uma autodesvalorização, um demérito em todas as áreas da vida, não apenas na área profissional.
De acordo com Patrocínio (2021), esta síndrome afeta principalmente as mulheres. Citando uma pesquisa produzida pela KPMG, 77% das executivas entrevistadas citaram como um dos fatores que pode desencadear a síndrome, a diferença entre o que esperavam da vida pessoal e da carreira e a realidade do que elas realmente conquistaram. Ou seja, não pensavam que poderiam alcançar o nível de sucesso que alcançaram e isso as faz pensar que isso ocorreu não por mérito próprio, mas por coincidências, pelo simples acaso.
A pesquisa da KPMG ainda indica que “56% das entrevistadas que atuam em cargos de liderança temem que as pessoas ao seu redor não acreditem que elas são capazes de desempenhar suas funções” (PATROCINIO, 2021).
Patrocínio coloca que a síndrome está relacionada a visão que o patriarcado construiu sobre a figura da mulher. Ela coloca que “esta imagem alimenta o machismo no pensamento social e contribui para a destruição da autoestima feminina” (Ibid.).
A Síndrome da Impostora parece estar muito ligada ao espírito da nossa época, onde as mulheres entraram para o mercado de trabalho no pós segunda guerra e passaram a assumir posições de destaque profissional, sendo confrontadas com as questões do machismo de uma forma mais contundente. Mas os efeitos da desvalorização do feminino podem ser sentidos de forma mais ampla, na medida que hoje vivemos em uma sociedade onde os aspectos considerados como femininos, como a sensibilidade, a intuição, as visões imaginativas, ou seja, tudo o que é não racional, são desprezados. Pesquisando e lendo sobre o assunto, me deparei com outro tema bastante importante para entender mais sobre os efeitos do patriarcado na psique feminina, que é o descrédito no feminino e a invisibilidade da mulher, que constelam no Complexo de Cassandra.
Mas quem foi Cassandra e qual o seu mito?
Vinagre (2013) nos conta que Cassandra era filha do rei Príamo e de Hécuba, de Tróia. Ela, Cassandra, possuía o dom da profecia. Há diferentes versões sobre como Cassandra obteve o dom de profetizar. Em uma destas versões, o mito relata que os pais de Cassandra deram uma festa no templo de Apolo, em comemoração ao seu aniversário e do seu irmão gêmeo Heleno. Os pais de Cassandra, após beberem muito vinho, esqueceram-se das crianças e as deixaram dormindo, indo embora sem levá-las para casa. As crianças dormiram no templo e, quando os pais voltaram no dia seguinte, viram duas serpentes passando a língua em seus órgãos dos sentidos.
Ainda segundo esta versão do mito de Cassandra, ambas as crianças apresentaram o dom da profecia: Heleno previa o futuro a partir de sinais exteriores, como o movimento das aves e Cassandra profetizava em delírio (VINAGRE, 2013, p.15). Há uma outra versão do mito que conta que Cassandra recebeu seu dom da profecia do deus Apolo. Este se apaixonou pela princesa e lhe prometeu o dom em troca de Cassandra entregar-se a ele. Cassandra aceitou, recebeu o dom, porém, recusou-se a cumprir sua parte do acordo.
Apolo, então, sopra (ou cospe) em sua boca, retirando de Cassandra o dom da persuasão.
Sem ele, ninguém acreditaria em suas profecias. Para Vinagre (Ibid.), não importa a forma como Cassandra tenha adquirido seu dom de prever o futuro, o que importa é que suas profecias se mostraram verdadeiras.
Cassandra previu todos os eventos que culminaram na destruição de Tróia: que Paris traria ruína à cidade, que o rapto de Helena levaria à destruição de Tróia, alertando e se opondo a que os troianos levassem o cavalo, o famoso cavalo de Troia, onde os soldados gregos estavam escondidos, para dentro dos muros da cidade. E, segundo o mito:
Vinagre (2013) também nos conta que o Mito de Cassandra está associado desde a antiguidade ao rei Agamémnon, que era um grande comandante da “infeliz casa das Atridas” (Ibid.). Cassandra foi oferecida a ele como despojo da guerra de Tróia, e ele a leva para Argos, onde ambos foram assassinados pelas mãos de Clitemnestra, mulher de Agamémnon, fato também previsto por Cassandra.
A Guerra de Troia e a passagem do Matriarcado para o Patriarcado
Schapira (2018, p. 28) situa a história de Cassandra durante a idade do Bronze, no segundo milênio a.C. Coloca que, neste período, o mundo grego passava por um período bastante tumultuado, pois foi neste período que ocorreu a transição do período matriarcal para uma cultura baseadas nos valores patriarcais. Esta mudança foi particularmente traumática para os troianos, “cuja cultura se aproximava mais do matriarcado cretense/minoico do que do patriarcado aqueu” (Ibid.). A autora coloca que quando Troia foi derrotada pelos gregos, sua cultura e religião também foram derrotadas.
Schapira (p.28), citando a escritora alemã Christa Wolf, nos conta que neste período a adoração dos novos deuses acontecia de forma paralela aos cultos do antigo matriarcado. Apolo era um destes novos deuses. No período matriarcal, Apolo era o filho amante da Grande Mãe. Na Ilíada, Apolo já é descrito como o filho de Zeus, ainda não puro e luminoso como seria descrito posteriormente, mas em uma fase transitória de herói (Ibid. p. 31).
Delfos já era um centro religioso antes de ser consagrado a Apolo.
Segundo Schapira, Diodoro Siculo, (Ibid. p. 33) conta que no lugar do templo, havia uma profunda fenda na terra, e quem se aproximasse desta fenda entraria em transe. A história das previsões que lá ocorriam se espalhou e o local passou a ser considerado miraculoso, uma dádiva de Geia ou Gaia, a Deusa da Terra, para os seres humanos.
Ésquilo conta que a passagem do oráculo da Deusa para Apolo ocorreu de forma pacífica, porém esta versão não é de todo verdadeira e ele parece querer agradar as “clássicas audiências” (SCHAPIRA, 2018, p. 34), ou seja, dar uma versão mais amena, não se atendo ao que de fato ocorreu. Versões mais antigas falam de uma “luta violenta entre Apolo Piton e o ‘Dragão-fêmea, monstro enorme e horrendo’ – a serpente Piton, guardiã do santuário de Geia” (Ibid. p.35)”.
Ou seja, a transição do matriarcado pelo patriarcado não ocorreu sem que houvesse resistência, lutas e mortes.
Ainda segundo Schapira (2018), após o fim do período de transição da velha ordem matriarcal para o novo patriarcado, Apolo passa a reinar como o “mais grego dos deuses durante todo o transcorrer da era clássica e Delfos, o umbigo do Terra, tornou-se o supremo centro religioso da Grécia” (Ibid. ,p. 58).
Uma das leituras possíveis sobre o mito de Cassandra diz respeito a invisibilidade das mulheres nas sociedades patriarcais, bem como aos atributos considerados femininos, tais como intuições, visões imaginativas e outros aspectos relacionados à esfera não racional. Qualquer evento que não tenha uma explicação puramente racional é desqualificado, não tendo valor mesmo que contenha a verdade.
Schapira (2018) corrobora esta leitura, quando coloca que
Apolo, indubitavelmente, tinha que emancipar-se e tirar seu poder do controle da Grande Mãe. Tinha que reivindicar uma identidade própria sem a qual jamais teria podido atingir a forma altamente diferenciada que o consagrou na Grécia do período clássico. Mas à medida que seu poder se fortalecia, o medo primordial que o matriarcado lhe inspirava concretizou-se sob a forma de misoginia patriarcal. Esqueceu-se de que suas raízes tinham origem na deusa mãe e não deu o menor valor a maternidade. (Ibid. p. 44).
Para Jung, mitos e contos de fadas são manifestações arquetípicas. E os arquétipos, segundo o autor (2008, p.6), são conteúdo do inconsciente coletivo que representam “imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos”. São “formas cunhadas de um modo específico e transmitidas através de longos períodos de tempo” (Ibid.). O arquétipo não é acessado diretamente, mas através de suas manifestações, tais como imagens, produções. E suas manifestações só podem ser conhecidas pelos efeitos que produzem.
Segundo Jacobi (2016), “cada arquétipo é sempre atualizado de acordo com a vida exterior e interior do indivíduo e, ao receber a forma, aparece na frente da câmera da consciência, ou como diz Jung, é “representado” diante da consciencia (JACOBI, 2016, p.46). Schapira (2018, p. 254) conceitua o complexo como “um grupo de ideias ou imagens carregadas de emoção. No âmago do complexo existe um arquétipo ou uma imagem arquetípica”.
Jung (2013, p. 198) utiliza o termo constelação para falar sobre o fato de que
a situação exterior desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. A expressão “está constelado” indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida.
O Complexo de Cassandra constela um conflito arquetípico entre os valores matriarcais e patriarcais, que brigam entre si para a ter a supremacia, porém sem o vínculo de Eros para uni-los (Schapira, 2018, p. 59). A saída para o Complexo de Cassandra é o coniunctio, a união de Apolo, o Deus-Solar com a Serpente, a Pítia, representando a Terra.
No passado, a mulher-Cassandra teria se transformado numa histérica. Dominada pelo medo e pela ansiedade, impulsiva e inadvertidamente ela teria deixado escapar impressões não metabolizadas, deparando com descrédito por todos os lados. Assim, agora ela pode sofrear esses conteúdos até que estejam totalmente maduros, quando então o animus tem possibilidade de ajudá-la a entender cognitivamente e simbolicamente o que ela sente e vê. E, para terminar, o animus a ajuda a articular o que precisa ser comunicado, a discriminar como e onde fazê-lo, e até a se expressar com refinamento, como o sacerdote délfico que interpretava os murmúrios de Pitia, traduzindo-os em poesia. Logo, a mulher-Cassandra profere seu oráculo. Pode, agora acreditar em suas previsões e ser acreditada por terceiros (SCHAPIRA, 2018, p. 237).
Para além desse conflito arquetípico, que ainda está vivo e vem sendo constantemente atualizado, o mito de Cassandra nos faz pensar em como uma parte da sociedade encara as previsões futuras, sejam elas frutos de “sinais” do mundo exterior ou com bases científicas.
No campo de pesquisa sobre mudanças climáticas e impactos do aquecimento global é possível perceber a agonia dos pesquisadores da atualidade, que através de seus modelos de pesquisa vem prevendo as alterações no clima, por exemplo, e enfrentam o negacionismo da população e dos governos.
O mesmo ocorreu durante a pandemia da COVID-19, onde houve no Brasil a negação do potencial de transmissão do vírus e de seus efeitos mortais, apesar de todos os eventos que já vinham ocorrendo no mundo. As previsões eram baseadas em fatos, em evidências, em eventos que estavam acontecendo no mundo e mesmo assim o governo e parte da população considerou as previsões como exageradas e as medidas previstas como excessivas, aumento assim o potencial de mortalidade de um vírus desconhecido.
Parece-me que a Cassandra arquétipica ainda está viva em nosso consciente coletivo, atualizada com o espírito de nosso tempo, onde a desvalorização do feminino continua sendo um fato, refletindo inclusive nas estatísticas de agressões a mulheres e ao aumento do feminicídio no Brasil. Cassandra está presente também nas previsões catastróficas quando ao futuro de nosso planeta, ameaçado pelas mudanças climáticas trazidas pela atuação do próprio ser humano, que tem se mostrado incapaz de ouvir as previsões e mudar sua forma de agir.
Parece-me que Cassandra ainda caminha entre nós e continuamos a agredi-la, sem ouvi-la.
Nesse caso, e se a ouvíssemos, o que ela teria a nos dizer? Se ela pudesse falar às mulheres que sofrem com o bournout causado pela Síndrome da Impostora, quais profecias ela faria?
A minha Cassandra diria que se não cuidarmos do feminino, se não erguermos um altar para Geia lado a lado ao de Apolo, não sobreviveremos a opressão do nosso tempo. Diria que o feminino precisa ter seu lugar de reverência, que não é possível vivermos em busca de uma produtividade sem limites. Cassandra diria que precisamos de tempo para ouvir nossa alma.
E a sua Cassandra? Quais seriam suas profecias?
Leila Cristina Montanha – Analista em Formação
https://blog.ijep.com.br/author/cristinaguarnieri/Dra. Maria Cristina Guarnieri – Analista Ditada
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REFERÊNCIAS:
COMPLEXO de Cassandra: por que tantas mulheres sofrem com isso? Saint Anastasie. Disponível em: https://pt.sainte-anastasie.org/articles/psicologa-clnica/complejo-de-casandra-por-qu-tantas-mujeres-lo-padecen.html
Grelle, Carolos E.V.A. A Tragédia dos comuns, o Mito de Cassandra e o Potencial do brasileiro; 30/12/21, 10h00. Disponível em https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/tragedia-dos-comuns-o-mito-de-cassandra-e-o-potencial-do-brasileiro.html; consultado em 26/05/24 as 15h25min.
JACOBI, Jolande. Complexo, Arquétipo e Símbolo na Psicologia de C.G. Jung. Petrópolis – RJ: Vozes, 2016.
JUNG, Carl G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis – RJ: Vozes, 2008.
JUNG, Carl G. A Natureza da Psique. Petrópolis – RJ: Vozes, 2013
Meneses, Alexsander. Aumento dos Casos de COVID-19 em Guarapuava: Uma tragédia anunciada. 07/01/2022, 11:20:41, disponível em https://i-politica.com/opiniao/aumento-dos-casos-de-covid-19-em-guarapuava-uma-tragedia-anunciada/; consultado em 26/05/2024 as 16h 07min.
PATROCÍNIO, Patricia. Sindrome de Impostora. Instituto de Psicologia USP, 19/05/21. Disponível em ip.usp.br/site/noticia/sindrome-da-impostora/ Consultado em 25/05/24 as 17h00.
SCHAPIRA, Laurie L. O Complexo de Cassandra: Histeria, Descrédito e o Resgate da Intuição Feminina no Mundo Moderno. São Paulo: Cultrix, 2018. VINAGRE, Sandra P. Cassandra: a voz de uma ideologia. Dissertação, Mestrado em Estudos Clássicos. Universidade de Lisboa, Lisboa-PT, 146 páginas, 2013. Disponível em https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/12248/1/ulfl161942_tm.pdf
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