O que acontece quando constatamos que o universo é indiferente ao nosso sofrimento? Ou quando constatamos que temos muito pouco controle sobre a vida e sobre as coisas? Quando percebemos que estamos nas mãos do acaso? Ou mesmo, quando nos vemos diante de uma grande incerteza? Ou quando temos que lidar com o fato de que todos os nossos sonhos, expectativas, planos, em pouco tempo, se reduziu a pó?
Medo e luto se encontram aqui, e é sobre isso que pretendo, de certa forma, refletir com você, leitor, que talvez já esteja cansado de ser lembrado que estamos vivendo sob pressão ou uma situação nova e desconhecida.
Estamos vivendo um momento em que a morte não aparece só nos absurdos números das perdas humanas que a cada dia insiste em aumentar, mas também surge roubando sonhos, planos e até mesmo os nossos cotidianos com todas as alegrias, dificuldades e automatismos, características daquilo que se faz hábito. E aquilo que era rotina, hoje se faz presente pela falta, lembrando-nos tudo que perdemos em cada instante, mergulhando-nos em uma diversidade de lutos. Sabemos que o luto é um processo que se inicia após a perda, um conjunto de sentimentos de pesar ou dor que experimentamos diante da morte do outro, mas também um conjunto de sintomas que experimentamos frente às perdas.
No Brasil ainda temos um ingrediente a mais: uma política sórdida, constituída de pessoas despreparadas, só preocupadas com os próprios interesses. Em meio à pandemia, enfrentamos uma crise política e assistimos ao aumento da descrença em nossos governantes. Essa falta de confiança resulta numa série de mandos e desmandos, de orientações controversas, de um debate público cheio de afetos e fake news. As ofensas são muitas, os argumentos são diversos, mas de fato todos tem supostamente bons motivos para sustentar sua verdade. Entretanto, os bons motivos se tornam nada diante do vírus. Vivemos uma morte de tudo que conhecíamos. Assistimos a morte de milhares de pessoas no mundo e, no paralelo, discutimos o futuro da economia.
Todavia, a economia depende dos vivos. E a morte, como qualquer perda, é uma ruptura em nosso cotidiano que implica dor, mas também implica uma transformação, em busca de uma adaptação a uma nova vida. Experimentamos a morte no corpo, fisiológica e psiquicamente, e os sintomas estão aí para nos revelar como estamos afetados: fortes emoções, estados de alerta, dificuldades com o sono, inquietude, tensão, pânico, irritabilidade, crises de ansiedade, entre tantos outros que, direta ou indiretamente, estão ligados ao estresse do momento. Momento esse, não raro, em que aparecem imagens, ideias que, segundo Jung, podem servir como apoio em nossa reestruturação.
O trágico que estamos enfrentando nos remete às antigas tragédias que, através de sua narrativa, fornecem-nos imagens mitológicas em um enredo complexo de afetos que podemos nos orientar hoje. O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. Poderíamos dizer, junto com Carl Gustav Jung, que o mito é um elo entre o consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas – arquétipos – através das quais o inconsciente se manifesta. Para Jung, “os mitos são revelações originais da psique pré-consciente, afirmação involuntária sobre acontecimentos psíquicos” (1990, § 261). Toda vez que conversamos com as imagens de um mito, podemos buscar um conhecimento mais profundo da condição humana, o que permite que possamos dialogar com uma imagem que nos ajude numa ligação do indivíduo consigo mesmo e, ao mesmo tempo, com toda a humanidade.
A imagem que me inspira nesse texto é a imagem de Antígona, personagem da tragédia grega escrita por Sófocles em 442 aC. Antígona, etimologicamente, significa aquela que se coloca diante de sua família ou do meio em que vive (anti = diante de + goné = nascimento ou origem). A personagem é movida pelo que podemos chamar de leis divinas e, diante do decreto de seu tio Creonte, que determinava que seu irmão Etéocles fosse enterrado com todas as pompas fúnebres, pois esse teria feito tudo pela cidade de Tebas e, por considerar que o outro irmão Polenice, teria tentado invadir a cidade, tornando-se assim inimigo, Creonte determina que ele não receba as honras fúnebres e seja lançado aos cães e abutres. Antígona defende a lei natural de enterrar os mortos da família. Os dois lados tem seus motivos e justificativas para defender a própria posição. Porém, Antígona se torna um obstáculo para Creonte, pois poderia fazê-lo perder o controle da situação política de Tebas.
Hoje, estamos enfrentando uma tensa discussão: o que vale mais, os mortos ou a fome? Coloco dessa forma simplista, pois diante do debate travado no mundo todo, mas especialmente aqui em nosso país, o trato com a doença, epidemia ou economia, parece carecer do apelo à subjetividade, dado que manter o mínimo de controle sobre o caos que o vírus nos trouxe, exige que nossa objetividade, sustentada pelo discurso científico, promova uma orientação em prol de nossa sobrevivência. Os argumentos são muitos, mas as defesas das necessidades básicas apelam para a defesa da sobrevivência: vida e morte parecem realizar uma dança surpreendente, na qual o medo é o anfitrião.
A falta de perspectiva, a ideia de um futuro impedido, sonhos destruídos, perda de referências, falta de segurança econômica me coloca na mesma condição do morto que a pandemia carrega. Somos humanos com medo de ser, impactados por nossa própria condição e com medo de morrer. E, tanto faz, se simbolicamente ou concretamente. Nossa dor sofre com a nossa condição de desamparo: estamos só no mundo, sozinho na vida, em casa e na morte.
Nosso medo é tão forte que retoma a ideia de termos ofendido os deuses, isto é, o que fizemos para enfrentar tal castigo? Quem ofendeu? Quem é o culpado? Qual o sacrifício que pode acalmar os deuses? Como posso me livrar do mal? Eu ofereço a mim mesmo ou ofereço o meu trabalho? Ofereço minha morte ou minha vida?
Nossa consciência parece colapsar com tanta ambiguidade, pois sua tendência é para unilateralidade. Queremos o conforto da certeza que a tragédia quebra, queremos evitar a tensão dos opostos:
É difícil encontrar outro fenômeno psíquico que mostre com maior clareza a polaridade da psique do que a consciência. Se quisermos entender alguma coisa sobre o assunto, só podemos explicar sua dinâmica evidente em termos energéticos, isto é, como um potencial baseado em opostos. A consciência traz estes opostos que sempre e necessariamente estão presentes à percepção consciente. Seria o maior erro pensar que poderíamos livrar-nos dessa polaridade, pois ela é um elemento indispensável da estrutura psíquica. (JUNG, 2013, § 844)
Estamos diante da vulnerabilidade de nossa condição, somos mortais e além disso não temos controle de nada. Esse controle está implicado em nossa autonomia, independência e determinação. Nossa insuficiência estampa as páginas dos jornais, das mídias sociais, dos programas de TV. Discuto com a imagem dos noticiários, pois ele informa sobre aquilo que quero negar; entro em uma disputa nas mídias sociais, pois quero confirmar minhas verdades ou mesmo conscientizar aquele que insiste em não ver o que está acontecendo; discuto com os articulistas dos jornais, pois eles me validam, dando-me mais segurança ou me questionam, deixando-me mais inseguro.
Antígona me lembra que não quero e não devo ofender aos deuses. Precisamos enterrar nossos mortos, necessitamos da concretude da morte para iniciarmos nosso processo de enlutamento, precisamos velar nossos mortos para que juntos possamos assimilar a ruptura de uma vida e nos lembrar de quem realmente somos. Mas o enterro está sob as leis do Estado, assim como os velórios e todos os nossos ritos fúnebres. E, com isso, uma solidão e distância se impõem no momento mais singular da vida: nossa própria morte.
Diante do sofrimento é muito difícil não me sentir indignada. Como falar de números de mortos sem lembrar que cada um desses mortos é alguém na vida de um ou outros viventes, que cada número, que teima em crescer, amplia minha sensação de insegurança, meus medos, a dor e a presença de nossa vulnerabilidade. Pois cada morte se refere a uma morte em mim. Não há economia feita de mortos. Na verdade, não há mais saída: os mortos já estão em nossa casa, nos restaurantes, nos bares, nos shows, nos templos, nas escolas, nos bancos, em nossos saldos bancários, em nosso futuro. Por isso, talvez, somos convidados a ignorar os mortos, pois preciso garantir a ilusão de que há um futuro, que a vida retomará seu curso. Para quem? Não podemos nos iludir, a vida continuará, apesar de nós, ou além de nós. A vida não pára e teremos um árdua tarefa daqui para frente, precisamos recolher os nossos cacos e somente os nossos recursos internos irão nos ajudar a prosseguir: os sobreviventes terão que mostrar sua relevância e resiliência diante das adversidades.
Assim, não é difícil imaginar que muitos de nós precisem de um pai salvador, de preferência o Estado, que nos dê amparo para prosseguir. Mas o Estado não poderá fornecer o amparo necessário, não porque o dinheiro seja insuficiente, porque as regras sejam demais para seguir, ou porque eles podem garantir os meus direitos e desejos. O Estado está refém de sua própria hybris, ou de sua soberba como aponta nosso sábio Tirésias na narrativa, quando vem aconselhar Creonte sobre seus atos. E como prosseguir?
Não há quem posa nos salvar, precisamos olhar o nosso próprio mal estampado em toda pobreza, miséria, injustiça social, criminalidade, corrupção e crise de valores. Nossa sombra está se revelando diante de nossos olhos. Insistimos em não ver, mas a cordialidade de nosso povo se mostra em sua mais tenebrosa face egoísta. Os gritos e aplausos que ouvimos se tornaram ruídos incômodos do nosso caos enquanto nação. Provavelmente, em breve, seremos mundialmente expostos como o país que teve o maior número de mortes e o mais tolo comportamento diante da crise.
Antígona é uma heroína que se sacrifica pela integridade e pela dignidade humana; ela morre como símbolo da resistência à hipocrisia, ao poder, às decisões arbitrárias, aos interesses egoístas. Antígona, diante da determinação de Creonte, afirma: “ele não pode impor que abandone os meus.” Creonte indaga Antígona se ela se atreve a desobedecer sua lei, ao que ela responde:
Porque não foi Zeus que a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos – a Justiça – quem aos homens deu tais normas. Nem nas tuas ordens reconheço força que a um mortal permita violar aquelas não escritas e intangíveis leis dos deuses. Essas não são de hoje, ou de ontem: são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas. (1997, p.62)
Antígona nos fala do passado, atualiza o que hoje, sobretudo, causa-nos repulsa. Na agonia de nossa quarentena, enfrentamos os fantasmas que assombram nosso futuro. Os fantasmas vêm cobrar nossa posição diante do caos. O medo pede enfrentamento e coragem. Como nossa tragédia nos ensina?
Sófocles nos propõe o embate de dois princípios: o masculino e o feminino, o que é subjetivo e o que é objetivo. Nossa distância social nos remete às diferenças imensas de classes, o que implica uma explicitação do nosso distanciamento enquanto humanos. Eros há muito tem pedido consideração. Mas, talvez, seja insensato de nossa parte confiar a Eros as nossa decisões política e econômicas. Seria insensato. E não posso deixar de citar o argumento de Antígona: […] posso parecer-te uma louca (algumas traduções aparece como insensata), talvez: mais louco, porém, é o que me julga louca. (1997, p.62)
Quando lemos essa afirmação de Antígona, não há como deixar de nos perguntar: quem é o insensato (ou o louco), qual a insensatez (ou a loucura)? Quem sabe alguma coisa? Quando a dignidade humana é violada em sua mais básica experiência de viver e morrer, quando não mais nos tocamos por tanta morte e por tanta dor, perdemos o senso e nos perdemos na insensatez.
Acrescento, ainda, a fala de Jung: “se quisermos entender uma questão tão complexa quanto o bem e o mal, é preciso partir do seguinte: bem e mal são em si princípios; e princípios existem bem antes de nós e perdurarão depois de nós.” (2013, § 859) Jung nos lembra que ao adjetivar algo como bom ou mau, estamos sustentados em um critério subjetivo. Não temos como definir isso. Para ele, precisamos colocar a descoberto a situação conflitiva, que muitas vezes ainda está inconsciente, e, a partir disso, buscar uma saída para o conflito. A tragédia se repete, pois não temos saída para o conflito, não sabemos o que está acontecendo. Muitas coisas nos são apresentadas, mas não sabemos muito bem o seu sentido ou mesmo como qualificá-las ou interpretá-las. Aparecem “cobertas pelo véu da sombra e ocultas pela escuridão: só mais tarde a luz se projeta sobre o escondido” (2013, § 866). E quando essa luz será projetada?
Continua o texto:
Antígona: Pouco importa: a lei da morte iguala a todos.
Creonte: Mas não diz que o mau tenha o prêmio do justo.
Antígona: Não será talvez piedade isso entre os mortos?
Creonte: Mesmo morto, nunca é amigo um inimigo.
Antígona: Não nasci para o ódio: apenas para o amor.
Creonte: Se amar é o que queres, vai amar os mortos! Enquanto eu viver, mulheres não governam! (1997, p.62)
Como foi dito acima, Eros está confinado na sombra, foi mandado ao mundo dos mortos, parece gritar de lá que sejamos atento ao simples, à vida, ao pequeno que em nós afeta. Mas cheios de razão nos rebelamos contra Eros. E não por acaso, como se não bastasse o caos no mundo, vivemos secretamente a falta de amor dentro de nós: a violência explode fora e dentro das casas, carreatas de reivindicações diante de hospitais e violência doméstica contra idosos, mulheres e crianças dentro dos lares. Será que estamos tentando eliminar o que consideramos frágeis, por medo de enfrentar a nossa própria impotência?
Antígona se confronta com Creonte, como a luz se confronta com a sombra, e ambos se explodem na tragédia, única saída para evidenciar a força dos dois lados: “quem percebe ao mesmo tempo sua sombra e sua luz este se enxerga dos dois lados e, assim, fica no meio” (JUNG, 2013, § 872).
Quando nada enfrenta a desmedida de nossa razão, quando não somos tocadas pelas mais de 20 mil mortes – número que estampa as páginas de jornais quando escrevo esse artigo –, nossa babel de opiniões dispara em um debate insano que produz verdades absurdas que assistimos como um jorro de vômito que cheira mal. O outro que sou obrigada a mastigar me impede de me diluir na massa indiferenciada jogada entre os diversos interesses que a manobram. Ampliar nossa consciência é a única saída, mas isto é trabalhoso, demanda que eu reconheça o mal em mim e, no trabalho de confronto, me entregue ao reconhecimento de minha própria insuficiência, ao silêncio do mistério que me constitui, ao não saber que resiste às opiniões (doxa), na busca incansável do conhecimento (episteme) que pede tempo de dedicação, de esforço, de fé e muito trabalho.
Hemos, filho de Creonte, será o personagem na tragédia que tentará observar os limites de cada posição. Seu diálogo com Creonte pretende mostrar a necessidade de fazer uma escuta de Antígona, pois mostra a importância de considerar determinados princípios em todas as decisões do coletivo. O diálogo entre Creonte e Hemon mostra que as decisões tem a ver com o poder, mas que há limites, e a morte é um deles.
A tragédia está posta na não escuta. A tragédia é o modo como a vida mostra sua força e como a morte aponta os limites humanos. A tragédia revela como Eros e Thanatos são forças arquetípicas em nós. Forças poderosas que nos constitui e que nos faz andar em pleno abismo como equilibristas em pleno ar, tendo sob os pés um fina linha onde nos sustentamos e onde temos que andar. Portanto, não devemos deixar de escutar o Coro em sua advertência final: “há muito que a sabedoria é a causa primeira de ser feliz. Nunca aos deuses ninguém deve ofender. Aos orgulhosos os duros golpes, com que pagam suas orgulhosas palavras, na velhice ensinam a ser sábios.”
Temos que ser sábios (algumas traduções diriam prudentes) ao julgar o que é necessário agora. Não há como negar que nosso momento, como todos os momentos únicos na existência, é-nos desconhecido e tenebroso. Saber o que é o certo a fazer não é tarefa para uma pessoa. Nenhum de nós sabe o que fazer, nenhum de nós sabe como essa doença se comporta e como iremos nos defender dela, nenhum de nós sabe como estaremos daqui alguns meses, de como viveremos a partir de agora e de como será nosso futuro. Nada é certo – como sempre na vida – mas agora só estamos assistindo tentativas desesperadas de controle como se em algum lugar já soubéssemos o que fazer. O trabalho, a economia, o dinheiro não são alternativas ao isolamento, ao comportamento, à morte. Sabedoria é a condição que o momento nos pede para que a desmedida vivida nesse momento não se torne um golpe ainda maior em nosso orgulho – embora alguns já concordariam que estamos como Creonte, golpeados em nossa soberba e, talvez, compadecidos e fiéis aos nossos princípios, estamos entregues, como Antígona, às nossa decisões apaixonadas. Prudência e sabedoria, talvez, sejam a resposta que devemos aprender com a tragédia. E, para isso, melhor mantermos o silêncio e silenciar tantas desmedidas certezas. E silêncio, nos dias de hoje, não é tão difícil, pois não há como não silenciar diante de tanta morte. Só nos resta o silêncio e, talvez, essa seja a única coisa que possamos fazer. Em silêncio rezar, como forma de velar e honrar aqueles que hoje não nos é permitido prestar as devidas honras fúnebres. Em silêncio guardar todo o enfrentamento e ensinamento do que estamos atravessando. Pois, depois, teremos que agir, e agir com coragem, que será o que a vida irá esperar de cada um de nós.
Dra. Maria Cristina Mariante Guarnieri, Psicóloga clínica, docente do IJEP- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, nos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, e Arteterapia; Pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia, LABÔ- PUC/SP.
Referências :
SÓFOCLES. Antígona. in: Três tragédias gregas: Antígona, Prometeu prisioneiro, Ajax/ trad. Guilherme de Almeida, Trajano Viera, São Paulo: Perspectiva, 1997.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em Transição. Petrópolis: Vozes, 2013.
______ Aion. Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 1990.