Site icon Blog IJEP

Lilith, seu mito e uma breve análise : Parte I

lilith e psicologia

“O que pensais da natureza do inferno? O inferno é quando a profundeza chega a vós com tudo o que não mais ou ainda não dominais.”    (Carl Gustav Jung. O Livro Vermelho, pg. 153- edição sem ilustrações)

Muito pouco se fala de Lilith. Menos ainda se sabe sobre o seu mito. E isso nos traz certo espanto, por ela ser uma das peças centrais do Mito da Criação; aquele mito bíblico que Adão e Eva são eternizados como pais da humanidade e protótipos da origem do homem. 

Nas mitologias sumeriana, babilônica, assírica, cananéia, hebraica, árabe, persa e teutônica, ela é cantada, citada e cultuada (às vezes pelo temor), mas quando as religiões cristãs ganham força, Lilitu – como os assírios-babilônicos a chamavam – perde força e espaço na tradição patriarcal. Em todos os testemunhos orais jeovídicos encontramos Lilith como primeira “esposa” de Adão, quando, na verdade, Adão era um ser andrógino, bifronte e hermafrodita. Viu-se separado de si mesmo para ter a companhia em um outro – no caso, nossa fonte de estudo: Lilith. 

Dentro deste conhecimento milenar encontramos um rico e profundo saber enquanto vemos desvelada essa história arquetípica à nossa frente. Lilith é, sim, aquela que se rebela e se exila, mas ela é muito mais quando tomamos uma perspectiva psicológica.

A partir de uma análise mais acurada da Gênese bíblica, vemos diferenças e questões não respondidas, especialmente quando comparado o texto Sagrado com outros de importância teológica como a Zohar – O Livro do Esplendor, A Torah, A Talmud e apócrifos da Igreja que também relatam a Gênese. Lilith realmente parece ter sido banida. Sua recusa a Deus e às ideias da Ordem Divina são ameaçadoras até os dias de hoje, fazendo com que ela se perpetue pelo medo e pela invocação arquetípica que sua história nos remete.

“O Arquétipo é uma ideia viva, que sempre incentiva novas interpretações, nas quais ele se desdobra.” 

(JUNG, Carl. Mysterium Coniunctionis 14/2: Rex e Regina; Adão e Eva; A Conjunção, p. 346)

Entrar em contato com o mito de Lilith é entrar em contato com a nossa história (a História das Civilizações) e com a construção desenfreada e intransigente do patriarcado na sociedade global. 

Segue o mito direto do O Alfabeto de Ben Sirá (excertos):

V. Logo após, o jovem filho do rei adoentou-se. Disse Nabucodonosor: “Cura meu filho. Se não o fizeres, irei matar-te”. Ben Sirá de imediato sentou-se e escreveu um amuleto com o Santo Nome e inscreveu nele os anjos encarregados da medicina via seus nomes, formas e imagens, e via suas asas, mãos e pés. Nabucodonosor olhou para o amuleto. “O que é isso?”

“Os anjos encarregados da medicina: Snvi, Snsvi e Smnglof. Depois que Deus criou Adão, que estava só, ele disse, ‘Não é bom que o homem esteja só’ (Gênesis 2:18). Então criou uma mulher para Adão, a partir da terra, como havia criado o próprio Adão, e a chamou de Lilith. Adão e Lilith imediatamente começaram a brigar. Ela disse, ‘Eu não ficarei por baixo’, e ele disse, ‘Eu não ficarei embaixo de ti, apenas em cima. Pois és digna apenas da posição inferior, enquanto a posição superior é minha’. Lilith respondeu, ‘Somos iguais um ao outro na medida em que fomos ambos criados da terra’. Mas eles não deram ouvidos um ao outro. Quando se deu conta disso, Lilith pronunciou o Nome Inefável e saiu voando no ar. Adão pôs-se a orar diante do seu Criador: ‘soberano do universo!’ ele disse, ‘a mulher que tu me deste fugiu’. De uma vez, o Eterno, abençoado seja, mandou esses três anjos para trazê-la de volta.

“Disse o Eterno a Adão, ‘Se ela concordar em retornar, tudo bem. Senão, ela deverá permitir que cem de seus filhos morram todos os dias’. Os anjos deixaram Deus e partiram em perseguição atrás de Lilith, a quem eles tomaram no meio do mar, nas águas poderosas aonde os egípcios estavam destinados a se afogar. Eles lhe disseram as palavras de Deus, mas ela não quis retornar. Os anjos disseram, ‘Iremos afogar-te no mar’.

“‘Deixai-me!’ ela disse, ‘eu fui criada apenas para causar doença em crianças. Se a criança for menino, terei domínio sobre ele por oito dias depois do seu nascimento, e, se menina, por vinte dias’.

 “Quando os anjos ouviram as palavras de Lilith, eles insistiram que ela voltasse. Mas ela jurou para eles em nome do Deus eterno e vivo: ‘Sempre que eu vir a vós ou vossos nomes ou vossas formas num amuleto, não terei qualquer poder sobre aquela criança’. Ela também concordou em permitir que cem de seus filhos morressem todos os dias. De acordo, a cada dia cem demônios perecem, e por esse mesmo motivo escrevemos o nome dos anjos nos amuletos de recém-nascidos. Quando Lilith vê os nomes, ela se lembra do juramento, e a criança se reestabelece”.

Abaixo, segue um apanhado de literatura sobre Lilith, o qual demonstra existir algumas variações e explicações de textos teológicos e apócrifos, além de estudos diversos que pensaram o mito desde a Gênese.

E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.
(Gênesis 1:23)

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra.
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:26,27)

Ao criar o andrógino e hermafrodita Adão, Jeová Deus o deu o poder de nomear os animais. E assim, Adão o fez. Ao perceber que todos tinham seus pares, sentiu a solidão e assim pede ao Criador uma companhia, mas ele já era completo. Deus o divide, fazendo com que seu feminino se apresentasse como Lilith. 

Lilith continha sexualidade, ela é aquela que sussurra e geme. Ela é coberta de “sangue e saliva”, Adão se sentiu perturbado e seduzido por aquela presença. Ainda não sabiam como se amar, mas existia uma Ordem Divina que era intuída por esses dois no Paraíso. Deus ensinou que todos os seres praticavam o ato sexual com a cara de um voltada para as costas do outro, menos dois que se unem dorso a dorso: camelo e cão, e afora três, que se unem cara a cara, porque a Divindade lhes falou que são o homem, a serpente e o peixe.

O amor do casal foi logo perturbado, pois a posição sexual que era a mais natural a Ordem – a mulher por baixo e homem por cima – passou a ser uma questão para Lilith, ela se sentia incomodada e subjugada, e questionou Adão:

‘- Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir me sob teu corpo? Por que ser dominada por ti? Eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual’.

Adão se sentiu ofendido e recusa de imediato pois existia uma ordem que em absoluto poderia ser transgredida. Lilith sabe que existe tal Ordem e entende a inclinação divina para o masculino (Onde estaria a parte feminina de Deus já que só o Logos se mostrava?). Lilith invoca paridade mesmo sabendo que Deus em sua Plenitude não “trabalhava” assim. Ela se rebela. Acaba o “equilíbrio”.

Lilith vai se exilar junto ao Mar Vermelho junto aos demônios que lá habitam. Seu ódio e rancor não são suficientes para afastar Adão neste momento, pois ele vai e pede a Deus seu “feminino” de volta. E Deus manda três anjos (Sanvi, Sansavi Samangelaf) ao encontro de Lilith proferindo seu desejo: “O desejo da mulher é para o marido. Volta para ele”. 

Ela se nega e Jeová Deus manda mais uma vez: “Volta ao desejo, volta a desejar teu marido.” Lilith não só nega, mas tomada de ódio, pronuncia o impronunciável: ela chama Deus pelo nome. Os anjos a ameaçam de afogamento, ela devia obediência a Deus, mas ela já não tinha nada a perder, pois sendo criação sabia que seu destino estava selado pelo Criador, ele já lhe lançara uma maldição pela desobediência.

‘- E como poderei morrer, se Deus mesmo me encarregou de me ocupar de todas as crianças nascidas homens, até o oitavo dia de vida, a data de sua circuncisão, e das mulheres até seus vinte anos?’

Com a recusa de seguir os três anjos e eles tendo entendimento que a maldição sobrepunha aquela mensagem divina, pois mensagem de Deus foi recebida com recusa, ouvem de Lilith:

‘– Se eu vir vossos três nomes ou seus semblantes sobre um recém-nascido como um talismã, prometo poupá-lo’

Essa concessão é aceita pelos anjos e eles se retiram daquele lugar demoníaco.

Para a eternidade seu castigo era que todos seus filhos, os Lilins, fossem mortos pela ira divina. Ela gerava cem demônios por dia e eles eram aniquilados por Deus; tomada de dor, sofrimento e desejo de vingança se lança a sua maldição atentando sobre os homens que descendem de Adão, isto é, toda humanidade…”1

Podemos perceber que o mito se destrincha em camadas mais densas e dramáticas quando somos interpelados pela mágoa a qual Lilith é submetida. Ela é imortal, não possui o pecado original e Deus a quer de volta, mas ela se nega por se sentir injustiçada. Na Zohar, o mito toma forma mais abrangente, pois ela é a Criação junto com Adão, Sol e Lua, Logos e Eros, Masculino e Feminino. Lilith vira referência à Lua. Suas fases são oferendadas a diversas deusas que parecem sem conexão com a primeira mulher de Adão, mas acabam por ter esse feminino renegado à escuridão e ao medo.

Esse mito é tão rico e são tantas questões que podem ser levantadas no aspecto psicológico, que talvez, dentro da Obra de Jung, sejam infinitas as nossas possibilidades de pensar Lilith. De pronto, penso: Sombra, a Coniunctio Oppositorum (união dos Opostos), a Enatiodromia, Anima e Animus, Constelação de Complexos dentre outros tantos.

Em seu livro Roberto Sicuteri (Lilith, A Lua Negra) trabalha vários conceitos de Carl Gustav Jung dentro do Mito e suas variações perante a História da Humanidade. Chegamos às bruxas por esse devaneio coletivo e o medo do sistema patriarcal lidar com o feminino na sua condição mais obscura e desconhecida. Nossa sombra gera ódio ao diferente e depreciamos simplesmente por ignorância. Lilith, no mito, assume sua posição de amaldiçoada por Deus e prefere esta posição a se submeter ao que ela acha injusto. Nas versões contadas na Talmud, que são escritos sagrados orais e compilados séculos depois da Torah, há uma versão mais inclinada a já amaldiçoar a esposa de Adão, pois relega a ela não só o pó usado na Criação, mas também lodo e fezes. 

O feminino de Lilith é proscrito à marginalidade e ao Caos – não no sentido de Ordem Criadora, mas ao obscurantismo e a inconveniência de não servir, e apenas servir ao Logos Criador. Que Ordem Divina, dentro da questão psicológica, não pode ter ambivalência e equidade? Que sociedade é essa que se cria dentro de uma predileção de Deus, sendo que fomos criados de um ser uno, que se tornou dois e depois três (pois ainda tem Eva)? Como podemos pensar Jung dentro de aspectos tão míticos e atuais ao mesmo tempo? Não existe resposta pronta. Temos que respeitar nosso Self e reavivar a Lilith dentro de nós, entendendo que a escolha, mesmo que soe antagônica ao que nos é “proposto pela vida lá fora”, é o que dá consistência a essa caminhada infinita que é a Individuação.

  1. Resenha feita por mim com inclusões das falas do livro: The Hebrew Myths by Robert Graves and Raphael Patai (New York:  Doubleday, 1964), pp 65-69

Por Bárbara Pessanha, Membro Analista em Formação pelo IJEP

Atendimento: 

barbarapesslima@gmail.com

Rua Santa Clara 70/308 – Copacabana    

Ladeira Santa Leocádia, 39 – Copacabana

Bibliografia:

Bárbara Pessanha

Exit mobile version