Resumo: Sabemos que os contos de fada nos ajudam a entender temáticas universais, arquetípicas. Eles tem uma linguagem simbólica, assim como os sonhos, e são extremamente importantes dentro da psicologia junguiana. Através da vivência de ler ou ouvir um conto de fada podemos caminhar em nossa própria jornada. Esse artigo traz o conto MARAMA E O RIO DOS CROCODILOS, um conto africano que trata da temática da menina sem pais que precisa empreender uma jornada em busca de amadurecimento. Eu te convido a caminhar junto de Marama nessa incrível aventura e através da história dela você poderá encontrar a si mesmo.
A partir de agora vamos acompanhar a história inspiradora de uma menininha corajosa chamada Marama.
Ela viverá aventuras rumo a sua jornada de amadurecimento e nós iremos com ela.
Marama era uma menininha e, quando seus pais morreram, o chefe da tribo a entregou aos cuidados de uma das mulheres da aldeia.
Mas era uma mulher má, que batia na menina, não lhe dava nada para comer e só pensava em como se livrar dela. Um dia, ela deu a Marama um pilão pesado, que se usa para descascar arroz, e lhe disse:
– Vá ao rio dos crocodilos Bama-Bá e lave este pilão para eu poder usá-lo para descascar o arroz.
Marama se pôs a chorar, porque o rio era muito afastado, era muito profundo e caudaloso, cheio de cobras e crocodilos. As pessoas tinham medo de ir até lá e só as gazelas e os leões iam lá beber.
Porém, Marama tinha tal medo de sua madrasta ruim, que pegou o pilão e foi-se embora.
No caminho para a floresta ela encontrou um leão. Ele sacudiu sua juba e rosnou com uma voz horrível:
– Como você se chama e para onde você vai?
Marama estava com medo mortal, mas cantou com sua doce voz:
– Marama é meu nome
e não tenho mãe…
Vou ao rio
para lavar este pilão.
Ao rio dos crocodilos
minha madrasta me mandou.
Lá só vão gazelas
e leões para beber.
Lá dormem cobras
e crocodilos.
– Então vá, Marama, menina sem mãe! – disse o leão. Vá e não tenha medo. Vou cuidar para que as gazelas e os leões não incomodem você quando forem beber.
Marama continuou seu caminho e, quando chegou ao rio, um crocodilo horrendo e velho surgiu na sua frente, abrindo sua enorme boca, seus grandes olhos vermelhos lhe saindo da cabeça.
– Qual é seu nome e para onde você vai? – perguntou.
Marama estava com medo mortal, mas cantou com sua doce voz:
– Marama é meu nome
e não tenho mãe…
Vou ao rio
para lavar este pilão.
Ao rio dos crocodilos
minha madrasta me mandou.
Lá só vão gazelas
e leões para beber.
Lá dormem cobras
e crocodilos.
– Então vá, Marama, menina sem mãe! – disse o crocodilo. Lave seu pilão e não fique espantada. Vou cuidar para que as cobras e os crocodilos que vivem no rio não incomodem você.
Marama ajoelhou-se na beira do rio e começou a lavar o pilão. Mas estava tão pesado, que lhe escapou das mãos, desaparecendo na água. Marama começou a chorar, porque não poderia voltar para casa sem o pilão. De repente, surgiu da água um crocodilo que lhe estendeu um novo pilão, limpinho e branquinho, incrustado de ouro e prata.
– Leve este pilão para casa, Marama, menina sem mãe, e mostre-o a toda a aldeia, a fim de que todo mundo saiba que o poderoso Subara, rei do rio dos crocodilos, é seu amigo.
Marama lhe agradeceu e voltou para casa. No caminho, encontrou de novo o leão.
– Deixe-me pegar o pilão, Marama, menina sem mãe – disse ele. É pesado demais para você. Vou levá-lo até sua casa, assim todo mundo vai saber que o poderoso Subara, rei do rio dos crocodilos, é seu amigo.
Quando Marama chegou em casa, a madrasta admirou muito o pilão e lhe perguntou onde o havia encontrado. Marama apenas lhe contou que o tinha encontrado no rio dos crocodilos. Então a madrasta pegou outro velho pilão de arroz e foi-se apressada para o rio, a fim de ela também encontrar um novo, branquinho e incrustado de ouro e prata.
No caminho para a floresta, encontrou-se com o leão. Meneando a juba, ele rugia com voz terrível:
– Quem é você e para onde você vai?
A mulher má teve tanto medo, que não conseguiu dizer uma palavra, pôs-se a correr há mais não poder. O leão a seguiu com seus olhos até ela desaparecer entre as árvores, e depois simplesmente levantou os ombros.
Quando chegou ao rio, um velho horroroso crocodilo lhe atravessou o caminho, abrindo uma enorme boca, seus olhos vermelhos e grandes lhe saindo da cabeça.
– Como você se chama e para onde você vai? – perguntou.
A mulher má teve tanto medo, que não conseguiu dizer uma palavra e foi pela beira do rio. Não foi muito longe. De todos os lados, os leões e as gazelas que vinham beber no rio a cercaram, assim como as cobras e os crocodilos que viviam no rio, e todos cantavam em coro:
– Marama, a menina sem mãe,
pode vir lavar
seu pilão no rio,
pois o poderoso Subara,
rei do rio,
é seu amigo.
Mas para você, mulher má,
o rio dos crocodilos
significa a morte!
E assim foi.
Como já sabemos, ao analisar um conto de fada não existe certo e errado.
Os contos trazem uma linguagem simbólica que fala direto ao inconsciente de cada pessoa que lê ou ouve a narrativa. É uma linguagem que conversa com nossa alma e despertará em nós sentimentos, sensações e impressões que podem ensinar muito sobre a nossa própria vida e sobre nossas experiências.
O conto que trago hoje, é um conto africano e fala de uma menininha que mora numa aldeia, e que muito cedo perdeu seus pais e foi entregue a uma mulher muito má que deveria ocupar-se de sua criação.
Aí já podemos observar que o conto apresenta a ausência dos pais e a presença de uma “madrasta”. Esse é um tema bem recorrente nos contos. A falta de mãe para proteger, cuidar, nutrir, dar colo e carinho para a criança sendo substituída por uma figura feminina nada maternal, nada acolhedora, que a princípio podemos ver – e essa acaba sendo nossa tendência no início – como uma figura realmente muito má, mas que se olharmos de forma simbólica e mais atentamente perceberemos que é só por causa dessa madrasta, dessa mulher “má” que a menina sai e enfrenta os perigos da floresta.
Chega uma hora na vida que temos que deixar o seio materno, o lugar de conforto e enfrentar a vida.
Nesse conto, Marama não tem pai nem mãe, e é jogada para fora da “zona de conforto” pela madrasta, é ela quem manda a menina para o rio dos crocodilos para lavar o pilão usado por ela para descascar arroz. Marama chora, pois tem medo de enfrentar o caminho. O rio é longe, cheio de cobras e crocodilos, e podemos imaginar que ela terá que atravessar uma floresta para chegar ao rio, uma floresta repleta de perigos e animais selvagens. As pessoas já sabiam que não era fácil chegar ao rio, Marama sabia que elas tinham muito medo de ir até lá, pois pelo caminho poderiam encontrar leões e crocodilos.
Frequentemente podemos nos encontrar na mesma situação que Marama, com medo, apavorados com algo desconhecido que se apresenta em nosso caminho.
Não adianta chorar, é preciso ter a coragem para atravessar a floresta, enfrentar os animais selvagens e chegar ao rio. Ora, aqui claramente podemos entender isso como a nossa jornada para dentro, para nosso mundo interior, a floresta do nosso inconsciente, o rio de nossa alma, e para chegarmos lá é preciso silenciar e dar espaço ao movimento que vem de dentro, confiar no caminho, porém teremos que enfrentar os animais, os desafios apresentados ao longo do caminho, nossos complexos e só depois de fazermos isso acontecerá uma mudança, uma transformação.
Apesar de Marama ter tanto medo de sua madrasta, entre o medo de ficar, apanhar e ser castigada pela mulher ou enfrentar os perigos do caminho, ela escolhe seguir rumo ao rio, levando o pilão que pertencia a madrasta para lavar. E sabemos bem que uma mudança de atitude só é possível quando a dor de ficar é maior que a dor de mudar. Nesse caso ficar e apanhar era bem pior do que o que ela poderia encontrar em seu caminho.
Em nossas vidas vivenciamos várias situações assim, carreiras com as quais já não nos identificamos, relacionamentos que já não fazem mais sentido, amizades que não nos dizem mais nada.
Terra árida, terreno que já não é capaz de alimentar e nutrir a vida, só nos resta enfrentar o desconhecido, iniciar a caminhada e ver onde vai dar – e podemos nos surpreender – como aconteceu com Marama.
Logo no início do caminho ela encontra com o leão que a questiona e quer saber sobre a menina, mesmo com medo ela responde cantando uma triste canção que conta a história de uma pobre menina sem mãe. Marama é sincera e verdadeira e o leão percebe isso, decide ajudá-la dizendo para não ter medo e seguir seu caminho que ele garante que ninguém irá incomodá-la.
Percebemos que quem a ajuda é o leão – rei da floresta – uma figura masculina, podemos entender como a figura de pai que falta para a menina, uma figura que irá protegê-la ao longo do caminho.
Podemos entender a figura do leão desse conto como a voz de um pai interno que vem em nosso auxílio quando precisamos, uma voz que vem nos apontar o caminho, uma voz que nos impulsiona, que nos dá coragem para seguir. Assim também o animus, muitas vezes se apresenta como um animal de poder.
Chegando ao rio, Marama encontra um crocodilo com uma boca enorme e olhos grandes e vermelhos – imagine que figura assustadora para uma garotinha. Mas o crocodilo não a ataca, ele quer saber quem é ela, e novamente Marama canta a canção de sua vida, o crocodilo encantado pela história da menina lhe diz para lavar seu pilão sem medo, que ninguém a incomodará. Marama ajoelha-se e começa a lavar o pilão, porém ele é muito pesado e Marama o deixa escorregar e cair no fundo do rio, a menina se desespera e novamente se põe a chorar.
Como ela explicaria que perdera o pilão, o pilão que a madrasta usava para descascar o arroz, provavelmente cada mulher da aldeia tinha seu próprio pilão, com certeza a madrasta a castigaria – pobre Marama – nesse momento surge do fundo do rio um crocodilo com um pilão novinho, branquinho incrustado de ouro e prata e o entrega para Marama e lhe diz para levar o pilão para casa e mostrar a toda aldeia e falar que o poderoso Subara rei dos crocodilos é seu amigo. Marama agradece, pega o pilão e começa sua jornada de volta a aldeia. Encontra novamente o leão e ele diz que levará o pilão até sua casa, pois ele é pesado demais, e assim todos saberão que o rei dos crocodilos é seu amigo.
Vamos pensar na tarefa que leva Marama a encontrar esses animais e enfrentar todos esses perigos – é o pilão – um instrumento usado para descascar arroz. Certamente uma tarefa destinada as mulheres da tribo, mas Marama é uma criança, uma menina. Então por que ela deveria atravessar a floresta para lavar o pilão? E um pilão que não lhe pertencia, ele era de sua madrasta.
Podemos fazer aqui uma relação com a transição, uma passagem de menina para mulher, mas não podemos fazer essa transição carregando conteúdos que não são nossos, conteúdos entregues a nós por outros, muitas vezes já sujos, desgastados demais, encardidos… precisamos encontrar os nossos – o nosso “pilão”, novo, branquinho, limpinho e repleto de joias.
O pilão velho corresponde a uma velha atitude e o pilão novo a uma nova atitude, mais ampla.
E toda a aldeia deveria saber de seu pilão, deveriam saber que ele foi lhe dado por Subara o rei dos crocodilos. Todos na aldeia deveriam saber que Marama agora possuía seu próprio pilão, ela mesma agora era responsável por descascar o arroz com seu próprio instrumento. Uma mulher – não mais uma menina – responsável por si mesma.
No início Marama tinha medo de enfrentar a floresta por causa dos animais selvagens e dos perigos que poderia encontrar, mas precisamos nos lembrar que esses animais viviam logo ali, pertinho da aldeia, faziam parte do todo.
Com nossa psique acontece o mesmo, temos medo do inconsciente e de tudo que se esconde nele, mas devemos lembrar que nele há perigos, mas também há muitos aliados que podem ajudar-nos na mudança de atitude, basta que prestemos atenção.
Quando Marama chega à aldeia a madrasta se encanta com o pilão da garota e nem se dá conta de que seu próprio pilão se perdeu, é cegada, por assim dizer, pela beleza e riqueza do pilão de Marama e só quer saber onde foi que a menina encontrou tal joia. Assim que Marama lhe conta, ela parte para o rio afim de pegar um pilão para si mesma que seja igual ao de Marama. Bem, vejamos, um sapato que calça bem um pé pode não servir em outro, e é exatamente o que acontece com a madrasta da menina.
Ela vai atrás daquilo que não lhe pertence e ao encontrar o leão e ser questionada por ele, ela não sabe o que dizer e sai correndo. Mais adiante encontra o crocodilo e foge novamente, não vai muito longe, sendo perseguida por todos os animais que cantam que ali, naquele rio, Marama pode lavar seu pilão pois é amiga de Subara, o rei dos crocodilos, mas ela – a madrasta má – por ser uma mulher má só encontrará no rio sua morte. E assim acontece.
Uma velha atitude precisa morrer para que uma nova maneira de viver, pensar e agir possa nascer em nós.
É o diálogo entre o velho e o novo, entre uma atitude consciente e outra ainda inconsciente que precisa acontecer para uma renovação. É encontrar o próprio jeito de fazer as coisas, sem repetir o jeito dos outros – é usar nosso próprio pilão.
Assim é na nossa vida, não podemos sair por aí carregando ideias, comportamentos, valores dos outros.
Precisamos adquirir consciência e ir em busca de nossas próprias ideias – ampliar a nossa consciência a respeito do que nos é passado por nossas famílias e pela sociedade e isso só se faz se aceitarmos a jornada necessária, uma jornada que implica em dialogar com o conteúdo desconhecido que está dentro de nós, e é nessa dialética entre ego e Self que encontramos a renovação, a ampliação que nos permite nos adentrarmos no Processo de Individuação.
Ms. Keller Villela – Membro Analista Didata em formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP
Referência:
BONAVENTURE, Jette. O que conta o conto? São Paulo: Paulus, 2008.