Assim como outros instintos, o medo tem papel fundamental na adaptação e sobrevivência do indivíduo. Em conjunto com outros três, é um dos instintos básicos que podemos encontrar presentes em todos os seres vivos. Essas formas biológicas padronizadas de comportamento, como se refere Jung aos instintos, estão diretamente conectadas com as necessidades primárias de sobreviver, crescer e perpetuar. Sobre essa ideia, Waldemar Magaldi esclarece:
“Destas necessidades primordiais é que surgem os instintos. Assim, temos os quatro instintos básicos e primais que estão presentes em todas as formas de vida: instinto do medo, arco reflexo de toda vitalidade; instinto da fome, que permite a sobrevivência, e que garante o crescimento do ser e da sua futura prole; o instinto do labor, luta que contribui para a segurança contra predadores e as adversidades da natureza (…) Finalmente temos o instinto da sexualidade, que é o responsável pela transmissão pelo estoque genético das espécies, garantindo a evolução e a continuidade da própria espécie.” (MAGALDI, 2009 pág. 102)
Para Jung ainda existem na esfera humana dois outros instintos que surgem com a evolução da espécie e estão conectados com o desenvolvimento do cérebro neocortical: o instinto da reflexão e o instinto da criatividade. Apesar de cada um deles merecer ampliação, no presente texto estamos preocupados especificamente com o instinto do medo. Este tem a função principal de garantir nossa sobrevivência fazendo com que o indivíduo evite situações que possam colocar sua própria vida ou a continuidade da espécie em perigo. O medo, portanto, é importante para a adaptação, crescimento e desenvolvimento do indivíduo; dentro do que poderíamos considerar uma dinâmica saudável do funcionamento desse instinto, não encontramos um problema, este aparece sempre nos extremos: medo demais paralisa enquanto medo nenhum faz com que a pessoa coloque a si mesmo e aos outros em situações de risco sem sentido. Então, assim como pode acontecer com os outros instintos, o ser humano pode negar seu valor e sua expressão natural e, rejeitando sua existência como parte importante do processo de estruturação e maturação do ego e da psique como um todo, provocar um acúmulo regressivo da energia psíquica direcionada para esse instinto que poderá se manifestar de maneira extrema em diferentes patologias.
Nos rituais de passagem dos povos arcaicos o medo tem papel de destaque e precisa ser enfrentado para que aconteça a transformação psicológica que dará base para que o individuo possa enfrentar as novas batalhas e confrontos que surgirão no futuro. Na jornada do herói o medo se manifesta num sentimento que surge de maneira repetida com as situações de perigo que aquele precisa enfrentar; a coragem não é a ausência de medo, mas sim a capacidade de assumir a atitude necessária para a transformação da situação, para se colocar e se impor no conflito buscando alternativas de resolução perante o pavor que a experiência pode causar. O medo tem, portanto, valor importante para o desenvolvimento de uma personalidade capaz de lidar com as situações de confronto que enfrentamos diariamente. Numa sociedade que moralmente tenta negar sua existência através da construção de uma falsa noção de que o ser humano ideal e idealizado não deveria sentir medo, acabamos desenvolvendo pessoas incapazes de lidar com conflitos. Como afirma James Hillman:
“(…) o medo tem um papel principal em todas as cerimônias de iniciação. Em razão da primeira reflexão de nossa cultura sobre a psique ser habitualmente moral, o valor psicológico do medo tende a ser prejudicado, quando não totalmente ocultado em nossas perspectivas.” (HILLMAN, 2015, pág. 51)
Assim como acontece com todos os fenômenos experienciados pelo ser humano ao longo de sua evolução, a psique, numa tentativa de compreender os sentimentos causados pela manifestação desse instinto, criou e continua criando fantasias explicativas expressas em forma de imagens. Podemos chamar esse processo de mitologização, movimento pelo qual a psique cria a realidade construindo narrativas sempre aproximativas daquilo que acreditamos ser a verdade do mundo; mitologizado, o medo aparece personificado. Das narrativas mitológicas gregas podemos tomar como exemplo o personagem Fobos, irmão de Deimos, ambos filhos de Ares, deus da guerra e da violência. Fobos acompanha sempre o pai onde esteja acontecendo batalhas e derramamento de sangue. A etimologia de seu nome vem do verbo phébesthai, que significa “fugir espavoridamente” (BRANDÃO, 2014). A expressão do mito deixa claro que quando essa representação arquetípica irrompe na consciência tomando o indivíduo de assalto, faz com que o mesmo fuja, se esconda e evite o conflito a todo custo.
Sem a transformação da energia instintiva em manifestações arquetípicas através do que Jung chamou de atitude simbólica, processo pelo qual caminhamos na direção da união dos componentes opositores formadores da nossa psique, tornamo-nos indivíduos que vivem aprisionados na primeira esfera, respondendo somente às nossas necessidades conectadas com a dimensão reptiliana da vida; estado no qual lutamos apenas por satisfazer a fome, o sexo e a segurança perante as ameaças do mundo. A conexão com os arquétipos através da expressão criativa da alma é meta para aquele que busca a evolução individual, a ampliação da consciência e a realização do mito do próprio significado.
“O mergulho na esfera dos instintos, portanto, não conduz à percepção consciente do instinto e sua assimilação, porque a consciência luta até mesmo em pânico contra a ameaça de ser tragada pelo primitivismo e pela inconsciência da esfera dos instintos. Este medo é o eterno objeto do mito do herói e o tema de inúmeros tabus. Quanto mais nos aproximamos do mundo dos instintos, tanto mais violenta é a tendência a nos libertar dele e a arrancar a luz da consciência das trevas dos abismos sufocadores. Psicologicamente, porém, como imagem do instinto, o arquétipo é um alvo espiritual para o qual tende toda a natureza do homem; é o mar em direção ao qual todos os rios percorrem seus acidentados caminhos; é o prêmio que o herói conquista em sua luta com o dragão.” (JUNG, 2011, §415)
Todo esse processo exige participação ativa do ego que precisa saber lidar com as ideias opositivas do inconsciente. É importante mencionar aqui que a oposição do inconsciente não é contrária à realização do indivíduo como totalidade, pelo contrário, a psique tem como finalidade essa realização, e as forças do inconsciente somente se manifestam de maneira patológica quando o diálogo entre a consciência e os personagens que habitam o inconsciente não é estabelecida, vivida e experimentada dando espaço para a manifestação da Função Transcendente. Então, como dito anteriormente, o ego precisa participar ativamente de todo o processo, tomando decisões, agindo com foco e atenção ao mesmo tempo em que permite que as forças do inconsciente também desempenhem seu papel em toda essa dinâmica. O comportamento do ego, como sempre, precisa ser paradoxal se este quiser permitir a união dos opostos complementares que formam a psique: mesmo com o medo instintivo de perder a liberdade da consciência, ele precisa entregar-se para o processo para que o irracional tenha lugar na criação de novas situações de vida. O ego identificado com a totalidade ou que tenta negar a natureza dos processos inconscientes é empurrado pela regressão da energia psíquica exatamente para a manifestação de forças arquetípicas localizadas na profundidade da psique. Forças essas, muito mais antigas do que nós, que habitam a psique coletiva e podem irromper na consciência levando os indivíduos a comportamentos automatizados disfarçados de ideologias, patologias e dos mais diversos “ismos”.
Na sociedade contemporânea, onde somos bombardeados desde a infância com a ideia de que não devemos ter medo, negando sua existência ao invés de enfrentá-lo, encontramos uma cultura de jovens e velhos que não evoluem porque não conseguem encarar os conflitos internos que existem enraizados em suas próprias psiques. Os valores morais duvidosos, constituintes da sombra de cada um, são projetados para o mundo objetivo e isso faz com que a guerra que deveria ser travada interna e simbolicamente aconteça no mundo concreto de forma literal. Jung mostra que já enxergava esse fenômeno em seu tempo quando afirma: “Tenho observado que aqueles que mais temem a vida quando jovens, são justamente os que mais têm medo da morte quando envelhecem.” (JUNG, 2011, §797)
E quais são os medos dos dias atuais entre os jovens? De não ser aceito, do futuro, do passado, do presente, do outro e da diversidade que existe em si mesmo que projetada torna-se o medo do outro. De não ter dinheiro, alcançar determinada posição social, de não ser visto ou de ser “cancelado” nas redes sociais. De ser improdutivo do ponto de vista capitalista, de não conseguir consumir. Medo da solidão? Vamos pegar esse último como exemplo do fenômeno que estamos tentando elucidar nessa reflexão: podemos perceber empiricamente que quanto mais o indivíduo entrega-se para o medo da solidão, mais sozinho ele fica. De um lado temos a pessoa que procura inúmeros parceiros o tempo todo e acaba não entregando-se animicamente para ninguém, indivíduos presos numa busca hedonista e desenfreada pelo prazer que serve como anestesia e escudo para que não entrem em contato com as dificuldades que o relacionamento impõe. No outro extremo encontramos aqueles que nunca se envolvem mesmo que apenas concretamente com ninguém pelo medo de serem abandonados. E os velhos? Do que esses têm medo? Talvez de perceber que tenham até agora vivido vidas vazias de sentido e significado; o que não enxergam é que isso ainda é possível, que esse potencial arquetípico pode ser alcançado até o momento da morte, como afirma Jung quando diz que o desenvolvimento da personalidade acontece até o fim da nossa existência terrena. Aqui está o medo da morte citado por Jung no trecho acima; e assim, paralisados, os velhos, assim como os jovens, tornam-se também mortos em vida.
O medo em si é legítimo, o problema está na incapacidade humana de entregar-se para as relações com a presença da expressão desse instinto, ou seja, encarar as dúvidas e angustias como uma parte natural da existência humana. Por isso fogem do mundo interior, dos sonhos que revelam a sombra, as falhas e os medos; não conseguem entrar em contato com o material onírico ou imaginal, não ousam embarcar numa viagem para o mundo interior e inferior; acreditam ser melhor ficar com os olhos vidrados nas telas o máximo de tempo possível; sofrer de insônia e anestesiar-se com medicamentos que os empurrem para um sono sem sonhos; evitar as relações conflituosas; projetar o mal e a sombra na figura de líderes extremistas que assumem a posição de depositários das distorções morais e éticas que precisam ser enfrentadas no interior do mundo psíquico individual.
Por isso, trazendo a reflexão para o momento atual, é preciso que enfrentemos nossas sombras, o mal que nos habita e os valores morais duvidosos que existem em nossa psique. Do contrário, através dessas projeções, mesmo sendo portadores de intenções que parecem boas, belas e verdadeiras, estaremos dando força para aqueles que agem de maneira declarada para a manutenção do patriarcado e do capitalismo predatórios correntes em nossa sociedade e cultura. O antônimo da vida é o medo patológico e, se não tivermos coragem para ousar, discutir e confrontar o mal que existe em cada de um de nós, para que a partir daí possamos lutar contra o mal manifesto no mundo concreto, chegaremos no fim de nossas vidas para perceber que talvez não tenhamos vivido de verdade, porque ficamos ocupados em fugir do medo com atitudes alienantes, obcessivas e compulsivas, ou na ilusão de afugentá-lo na busca do poder, igualmente obcessivo e compulsivo.
“O espírito do Mal é o medo, a proibição, o antagonista que se opõe à vida que almeja duração eterna assim como toda ação isolada, que instila no corpo o veneno da fraqueza e da idade através de traiçoeira picada de serpente; ele é toda tendência ao retrocesso, que ameaça fixar-se na mãe, bem como dissolver e extinguir o inconsciente. Para o indivíduo heroico o medo é um desafio e uma missão, pois só a audácia pode libertar do medo. E quando o homem não ousa, alguma coisa se rompe no sentido da vida e todo o futuro está condenado a uma mediocridade vã, a um crepúsculo iluminado só por fogos-fátuos.” (JUNG, 2018, §551)
José Balestrini – Membro Didata em Formação do IJEP
Analista Didata – Waldemar Magaldi
Imagem: The Felling of Becoming, Salvador Dali; 1930. Disponível em WikiArte pode ser usado para propósitos educacionais e de divulgação científica.
Referências
BRANDÃO, J. Dicionário Mítico Etimológico. Petrópolis. Vozes, 2014
HILMMAN, J. Pã e o pesadelo. São Paulo: Paulus, 2015
JUNG, C. G. Símbolos da transformação vol. 5. Editora Vozes Limitada, 2018
JUNG, C. G. A natureza da psique vol 8/2. Editora Vozes Limitada, 2011
MAGALDI, W. Dinheiro, saúde e sagrado. São Paulo: Eleva Cultural, 2009