Resumo: Neymar é uma figura controversa: por um lado, com seu “futebol moleque”, é criativo, ousado e habilidoso; por outro, um homem infantilizado, inconsequente e sombrio. Ao “homenino”, tudo é permitido e concebido. Neymar foi colocado numa espécie de Terra do Nunca e não quer sair de lá. Em terminologia junguiana, Neymar está identificado com Puer aeternus, o arquétipo da criança-divina que, quando na polaridade negativa, a pessoa fica presa nunca espécie de adolescência e se recusa a amadurecer. Neste ensaio, proponho, de forma despretensiosa, um diálogo entre a teoria junguiana e as narrativas midiáticas, em um exercício argumentativo e hipotético, para explorar o arquétipo do puer aeternus, tomando Neymar como referência.
Percebe-se que na sociedade contemporânea, em sua rica diversidade, há uma notável e crescente tendência de rejeitar o processo natural do envelhecimento.
Uma espécie de sombria pressão social para manter a imagem jovial, levando muitas pessoas a se sentirem compelidas a buscar meios extremos para retardar ou até mesmo reverter sinais de envelhecimento, a manter corpos perfeitos e rostos sem rugas divulgados no narcísico espelho do Instagram. O apego à ideia da perpetuação da juventude não se limita apenas a preocupação estética; também pode refletir um temor do desconhecido, da perda de vitalidade e da inevitável aproximação da morte.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica estima que em 2023 mais de 2 milhões de procedimentos foram realizados pelos brasileiros[1]. Em contrapartida, em 2022 o IBGE apontou aumento da longevidade nos cidadãos do nosso país[2].
Estamos imersos num Espírito da Época no qual a juventude é exaltada de forma exacerbada e a velhice é temida. Para Jung, o termo Espírito da Época, ou “Zeitgeist” em alemão, refere-se ao conjunto de ideias, valores, crenças, atitudes e comportamentos que predominam em uma determinada época ou cultura. É como um “clima psicológico” que molda a forma como as pessoas pensam, sentem e se comportam. O temor e a aversão ao envelhecimento permeiam tanto o inconsciente individual quanto o coletivo na contemporaneidade. Segundo a máxima de que “o que está fora também está dentro”, essa apreensão também pode estar profundamente ligada ao arquétipo do puer aeternus, o eterno jovem, pois reflete uma relutância em aceitar o processo natural de maturação e envelhecimento que caracteriza a jornada da vida.
Von-Franz (1992, p. 9) reflete acerca do puer aeternus como arquétipo do deus criança-divina, “o deus da vida, da morte e da ressurreição — o deus da juventude divina, correspondente aos deuses orientais Tamuz, Átis e Adônis.
O título puer aeternus, portanto, significa juventude eterna”.
O puer aeternus, ou “eterno jovem”, é um arquétipo que representa uma pessoa que se recusa a amadurecer emocionalmente, preferindo permanecer em um estado de juventude e irresponsabilidade. De forma apressada e bastante resumida, em sua polaridade negativa, os pueri (plural de puer e puella) apresentam relutância em assumir responsabilidades consideradas adultas; buscam continuamente liberdade e aventura; têm a tendência a evitar compromissos duradouros; se recusam em enfrentar as realidades do envelhecimento e da maturidade emocional; buscam (por vezes de forma desesperada) pela preservação da juventude e da vitalidade física; são muito impacientes e volúveis emocionalmente; possuem um donjuanismo e dificuldades em estabelecer vínculos afetivos como característica, e enorme dificuldade de adaptação a rotina.
O sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman (2001, p. 8) reflete que as principais características da modernidade líquida são: desapego, provisoriedade e acelerado processo da individualização, tempo de liberdade e, concomitantemente, de insegurança. Talvez o Espírito da Época esteja tão líquido quanto as relações estabelecidas pelo “espírito puer” que pulsa na contemporaneidade.
Os fluidos se movem facilmente. Eles ‘fluem’, ‘escorrem’, ‘esvaem-se’, ‘respingam’, ‘transbordam’, ‘vazam’, ‘inundam’, ‘borrifam’, ‘pingam’, são ‘filtrados’, ‘destilados’; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho… Associamos ‘leveza’ ou ‘ausência de peso’ à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos (Bauman, 2001, p. 8).
Como análise didática, trabalharemos a figura pública e polêmica de Neymar Jr, o “menino Ney”, para refletir não apenas o puer que o habita, mas a sombra projetada em seu estilo de vida.
A intenção é dialogar com a teoria no campo da Psicologia Analítica e das notícias coletadas na mídia, num exercício argumentativo e hipotético, sem nenhuma pretensão de limitar ou fechar o tema.
Neymar da Silva Santos Júnior, aos 11 anos de idade, chegou às categorias de base do Santos, de onde não saiu mais até tornar-se profissional. Dotado de grande talento e virtuosismo, à medida que o adolescente crescia sustentava precocemente a família com seu salário, promovendo gradativamente a melhora no padrão de vida parental[3].
Com suas jogadas criativas, Neymar possui singular capacidade de driblar em espaços apertados, escapar da marcação de vários jogadores e criar oportunidades de gol para si mesmo e para seus companheiros de equipe. Sua visão antecipa as jogadas e, por vezes, resulta em assistências decisivas. É um jogador extremamente criativo, buscando maneiras de surpreender seus adversários, pois não tem medo de tentar formas ousadas e inventivas em campo. Tudo isso temperado com um “jeito moleque”, conquistou o coração dos torcedores e a atenção dos clubes.
Hiper estimulado e protegido pelos pais, desejado e promovido pelos clubes, enaltecido e ovacionado pelos fãs, não demorou muito para sua meteórica ascensão.
Um profissional de alto rendimento como ele requer compromisso e dedicação, mas Neymar driblou as regras e viveu uma vida permeada de festas, romances, escândalos financeiros e sexuais. De certo modo, parte de seus admiradores o isentam de suas responsabilidades quando o tratam por “menino Ney”. Ao menino, tudo é permitido e concedido.
Em geral, aquele que se identifica com o arquétipo do puer aeternus “permanece durante muito tempo como adolescente, isto é, todas aquelas características que são normais em um jovem de dezessete ou dezoito anos continuam na vida adulta, juntamente com uma grande dependência da mãe” em boa parte dos casos (VON-FRANZ, 1992, p. 9).
Em sua polaridade positiva, os pueri são muito criativos, estimulantes e mantém o charme da juventude. São divertidos, interessantes, agradáveis de conversar desde que sejam conversas superficiais, não gostam de situações convencionais. Geralmente o charme juvenil do puer aeternus se prolonga até os últimos estágios da vida (VON-FRANZ, 1992, p. 9).
Não é novidade que Neymar tem um lado religioso e não esconde de ninguém.
Evangélico e conservador, suas polêmicas são antigas… Em 2015 usou faixa na cabeça escrita 100% Jesus ao ganhar a Liga dos Campeões jogando pelo Barcelona durante a comemoração no estádio olímpico de Berlim, após a vitória por 3 a 1 sobre o Juventus. Tal manifestação causou polêmica na França, e os torcedores o acusaram nas redes sociais de proselitismo religioso[4]. Outra polêmica foi ostentar um enorme crucifixo ao desembarcar na Arábia Saudita, para se apresentar ao seu time (islâmico) contratante Al Hilal[5]. Numa atitude desrespeitosa e arrogante, o puer Neymar percebe-se como alguém especial, e que “não tem necessidade de adaptar-se, pois as pessoas é que têm que adaptar-se a um gênio como ele” (VON FRANZ, 1992, p.10).
Paradoxalmente, o lado evangélico de Neymar é facilmente sublimado pelas festas babilônicas que promove. Numa combinação de ostentação, mulheres, bebidas e sabe-se lá quais outras situações dionisíacas, algumas de suas festas duram dias, promovidas de casas à cruzeiros.
Como vimos anteriormente, desde menino, ao revelar sua enorme habilidade, obteve o apoio obsessivo e incondicional do pai, ex-jogador fracassado, que incentivou o jovem a alavancar sua carreira. Neymar Jr vive a vida não vivida de seu pai; este mesmo que, ao projetar sua vida frustrada no filho, o impede de crescer e ser responsável por seus atos.
Neymar pai, assume as inconsequências do filho para que os problemas não atrapalhem sua performance dentro de campo. Problemas como sonegação de impostos na Espanha; liberação da acusação de amigos por estupro; atenuar as acusação do filho de traições amorosas; minimizar os flagras das festas quando deveria estar recluso se recuperando de lesões entre outros escândalos. Hiper protegido pelo pai e blindado das consequências de seus atos, o menino Ney é mantido cativo numa espécie de Terra do Nunca pela figura paterna.
Não assumir a consequência de seus atos faz com que a sombra emerja, pois, conforme Jung (2013, OC 9/2, §14) “a sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais”. Neste processo de conscientização, é necessário reconhecer os aspectos sombrios da personalidade como eles realmente são. Essa prática é uma base essencial para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, costuma enfrentar resistência significativa.
A relação com a mãe é de quase reverência. Seu iate, palco de várias festas, foi batizado de Nadine, em deferência a ela. Em seu Instagram pessoal, Neymar fez uma homenagem no dia das mães se referindo como “minha super heroína”.

Fonte: Instagram – acesso em 12 mar. 2023
Jung (2001, p. 98) diz que o aspecto negativo do puer aeternus indica o “si mesmo preso no inconsciente e que não se realiza na prática. O desenvolvimento bloqueado depende muitas vezes de uma ligação muito estreita do filho com a mãe”.
Por sua vez, a mãe não esconde uma predileção em namorar homens muito mais jovens, atléticos, na mesma faixa etária do filho. Podemos arriscar a pensar em projeção, uma vez que, para Jung (2013, OC 6, §881), projeção significa “transferir para o objeto um processo subjetivo” e que “pertencem à esfera da sombra, isto é, ao lado obscuro da própria personalidade” (JUNG, 2013, OC 9/2, §19).
Essa idealização da mãe pelo filho ocorre devido a uma série de razões, que pode incluir a tentativa de preenchimento do vazio emocional na busca por realização pessoal através do sucesso dele.
Neste caso, a mãe pode demonstrar comportamento superprotetor e manipulador em relação ao filho, além de codependência emocional, onde ela inconscientemente espera que o filho atenda suas necessidades; tentativa de controle; dificuldade em aceitar a falibilidade do filho (que, aos olhos dela, é sempre perfeito).
Por outro lado, o filho fica inconscientemente estigmatizado na condição de “pequeno príncipe”, infantilizado e fragilizado, e tem a tendência de buscar a mãe projetivamente em suas companheiras. Uma espécie de “donjuanismo” faz com que o filho inconscientemente reproduza as dinâmicas experimentadas com a mãe em seus relacionamentos amorosos, buscando parceiras com características semelhantes a ela. O menino Ney coleciona beldades e pouco se fixa nas relações, numa falta de comprometimento afetivo com as mulheres que se envolve. Num misto de encantamento e tédio, envolve-se amorosamente, mas trai suas companheiras, expondo-as, por vezes, a situações públicas e constrangedoras.
Além deste imbróglio familiar que foi levantado de forma tão didática e despretensiosa neste texto, temos os amigos. Neymar é como Peter Pan cercado por seus “parças”, os amigos inseparáveis que decidiram ter como missão na vida desfrutar do reino do amigo-príncipe. E o acompanham pelo mundo, aplaudindo, incentivando, defendendo e desfrutando de privilégios que nunca teriam, graças à fortuna do menino Ney, sem jamais o contrariar ou o questionar. Os “parças” são uma espécie de meninos perdidos da Terra do Nunca, que veem em Peter Pan seu ídolo, inspiração e chefe.
Neymar é talentoso, milionário, vive de forma luxuosa, se relaciona com as mais lindas mulheres. Com mais de 221M de seguidores[1] no Instagram, seu estilo de vida é cobiçado por milhares de fãs.
Fica a reflexão que talvez Neymar seja uma espécie de receptáculo da sombra coletiva, pois, “a sombra coletiva, agregada e institucional sempre contém a sombra não examinada de cada um de nós. Aquilo do qual somos inconscientes, ou não desejamos enfrentar, contribuirá para nossa sombra coletiva e institucional” (HOLLIS, 2010, p. 138).
No caso de Neymar, a figura do puer aeternus resplandece com força arquetípica. Ele é o menino eterno, brincante, seduzido pelo instante orgástico, pela leveza irresponsável do agora. Esse puer, ainda que fascinante, provoca inquietação, pois nos lembra tanto o desejo secreto de viver livres das amarras quanto o risco de sermos devorados pela própria recusa em amadurecer. Sua conduta desperta nossas sombras individuais e coletivas, pois revela aquilo que por vezes ocultamos: a nossa dificuldade em sustentar escolhas, limites, consequências, e o desejo de uma sedutora vida permeada de luxos e facilidades.
Neymar encarna, assim, uma mensagem ambígua e um tanto sombria: a de que a juventude e a liberdade podem ser buscadas a qualquer custo, mesmo quando o preço é a erosão do compromisso, o adiamento da responsabilidade e a impossibilidade de sustentar um eixo interno mais maduro. Ele nos confronta com o dilema eterno entre o impulso do puer brincante e a exigência transformadora da vida adulta, dilema que, no fundo, pertence menos ao atleta e mais ao inconsciente deste “homenino”.
Me. Daniela A. Euzebio – Didata em Formação do IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade liquida. Rio de Janeiro: Zahar,
2001
HILLMAN, James. O livro do Puer: ensaios sobre o Arquétipo do Puer Aeternus. São Paulo: Paulus, 1998.
HOLLIS, James. A sombra interior. Por que pessoas boas fazem coisas ruins? São Paulo – Novo Século, 2010.
JUNG, Carl Gustav. Cartas, Volume I. São Paulo: Ed. Vozes, 2001.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas v. 6).
JUNG, Carl Gustav. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas v. 9/2).
VON FRANZ, Marie-Louise. Puer Aeternus: a luta do adulto contra o paraíso da infância. 2ª ed. São Paulo: Paulus,1992.
[1] Acesso em 22 de abril de 2024
[1] Fonte: https://www.sbcp-sp.org.br/na-midia/cirurgias-plasticas-devem-somar-2-milhoes-de-procedimentos-em-2023-aponta-pesquisa/. Acesso em 29 jan. 2023.
[2] Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/expectativa-de-vida-sobe-de-768-para-77-anos-no-brasil-diz-ibge/. Acesso em 29 jan. 2023.
[3] Fonte: Wikipedia. Disponiível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Neymar#Biografia. Acessado em: 19 fev. 2024.
[4] Fonte: Le Figaro. Disponível em https://www.jusbrasil.com.br/noticias/le-figaro-diz-que-faixa-de-neymar-100-jesus-foi-vista-como-proselitismo-por-torcedores/197437074#:~:text=Campe%C3%A3o%20pela%20primeira%20vez%20da,o%20jornal%20%E2%80%9CLe%20Figaro%E2%80%9D. Acesso em 22 abr. 2024
[5] Fonte: Metrópole. Disponível em https://www.metropoles.com/entretenimento/neymar-chama-atencao-ao-chegar-na-arabia-saudita-com-crucifixo-veja. Acesso em 22 abr. 2024.

