“Uma ideia é um ponto de partida e nada mais. Logo que se começa a elaborá-la, é transformada pelo pensamento.”
Ponto de vista, ponto de encontro, ponto com, ponto br, ponto de partida ou de chegada, dê um ponto final nesta história, você chegou ao ponto em que eu queria, a equipe fez 40 pontos neste campeonato… Você já colocou reparo no quanto a palavra ponto está em nossa linguagem costumeiramente? Usada como expressão ou literalmente, dificilmente não é usada ao longo do dia. O ponto é que não se dá a devida importância para esse elemento primal da linguagem artística. Se Oscar Wilde estiver certo quando diz que a vida imita a arte mais do que a arte imita a vida, o homem está perdendo a capacidade de se reconhecer no espaço. Pois na arte, ao observarmos um quadro, por exemplo, o ponto é o elemento para onde os olhos se direcionam trazendo sensações e sentimentos de estabilidade, de segurança, de discernimento e de localização para citar poucos. Não existir relevância ou não trazer para consciência o elemento ponto é o mesmo que não perceber a si mesmo no espaço, o que gera naturalmente a experiência do vazio e da automatização da existência. Desta forma, temos muitos indivíduos vivendo suas vidas sem darem sentido para elas, como se a vida fosse um barco sem velas a deriva na vastidão do oceano existencial.
Existir sem pontos de apoio sólidos é uma tarefa difícil. Lembrando de outro escritor, o filósofo contemporâneo Baumam que apresentou o conceito de modernidade líquida, onde os valores perderam as certezas, encontramos uma sociedade na qual os pilares são quebradiços, vulneráveis, temporários e efêmeros, que formam indivíduos inseguros, pueris e frágeis. A exigência feita pela sociedade atual em se tornar um homem com atributos divinos (onipotência, onipresença e onisciência) resulta em um adulto frustrado sem autoestima com tendências depressivas e/ou suicidas por não atingir níveis expectados de performance inatingíveis. Publicações como a antiga revista Você S/A deixam claro o lugar do homem no espaço, um ser sem nome e sozinho que se distrai do seu próprio processo de evolução em detrimento de transitoriedades egóicas. Em meio a esse cenário, seja no alimento, no sexo, nos jogos ou nas tecnologias, sem pessoalidade e solitário, a compulsão pode passar a reger a vida de indivíduos de forma rápida e evoluindo para transtornos compulsivos obsessivos. A ausência de pontos que localizem o homem no espaço social começa a ser metaforizado como um grande vazio.
A palavra vazio se relaciona com a palavra vaidade que, por sua vez, pode ser interpretada como vanitas, do latim vacuidade, aquilo que é fútil. Vanitas está ligada a ideia de orgulho ou de soberba como alguns preferem e, sempre aponta para a pergunta: Será que isso basta? Por se tratar de um vazio metafórico, nunca será o suficiente o que é feito para preenchê-lo. O homem sem pontos que gerem perspectivas e sentido de vida cai no pecado capital do orgulho que, agostinianamente referido, é a manifestação exata da não aceitação da realidade em ser fracassado, limitado, impotente e dependente. Assim, toda essa frustração existencial é projetada no vazio interno que sente e vive como real, tentando compulsivamente amenizar a dor que ele trás com fantasias de preenchimentos. O orgulho aqui, dá base para outros pecados como a luxúria, a avareza, a gula, a raiva. Em contrapartida, à medida que o homem desloca seu interesse para o autoconhecimento, que pode acontecer por meio da arteterapia, sua vida ganha sentido.
A arteterapia tem um corpo específico e bem delineado, apesar de ter como base pilares de áreas distintas do conhecimento, a saúde física e mental e a arte, sua especificidade deve ser respeitada. Não se deve encará-la como mero mosaico destas áreas, pois ela não é estratégia, é objetivo. A arteterapia que se apoia em qualquer base teórica psicoterapêutica ou em qualquer técnica das artes visuais, como o desenhar ou o pintar com determinada tinta ao deixar de lado o pensar arteterapêutico está negligenciando a profundidade que a arteterapia propõe. E assim, no máximo, teríamos uma colcha de retalhos sem unidade. Seria como vários centros para a mesma circunferência.
Aquele que se propor a ser um profissional da arteterapia e não tem esses pilares como pontos de apoio de forma clara será um profissional manco. Pois, não conseguirá atingir a somatória dos pontos. Entretanto, a arteterapia é maior que o resultado da soma dos pontos que a constitui.
Olhar o ser humano através do ponto de vista da arteterapia é um privilégio. A psique nos mostra uma faceta do homem, a arte nos revela outra forma de ver a humanidade, mas olhar sob o ponto de vista da arteterapia muda a perspectiva. Seria leviandade afirmar que a arteterapia trás uma visão maior ou absoluta em comparação á qualquer outra ciência, mas, com certeza, ela possibilita a manifestação de conteúdos que já poderiam estar na consciência e só não estão pela incapacidade do próprio homem em reconhecer a arteterapia como esse instrumento. Como o ponto arquimediano capaz de, metaforicamente, levantar o mundo pela alavanca do autoconhecimento que ela proporciona.
Da linguagem artística recorto para esse artigo o elemento ponto. Elemento este que se destaca de forma simples de ser percebido no afresco A última ceia de Leonardo da Vinci. A figura pintada representando Cristo bem ao centro da pintura que também funciona como ponto de fuga convoca o olhar do espectador para si. Isso trás a sensação de estabilidade e foco. Já telas como Noite estrelada de Van Gogh, convidam para uma experiência dramática. No céu se vê como que rodamoinhos que propõe muito movimento em contraste com o silêncio estático do vilarejo pintado na base da tela. Ambas são belas, pois carregam o poder de despertar sentimentos e emoções por vezes nunca percebidos em quem as observa. Essa exposição e invasão geram naturalmente desconfortos, incômodos que são encobertos pela relativização da cultura. “Se tudo pode ser considerado arte, qual o propósito e o mérito de conquistar esse título?” (Scruton, 2013, pág. 107). A partir desta afirmação do filósofo Scruton, fica mais simples perceber o propósito de relativização do belo na arte. Pois, aquilo que não atravessa emocionalmente se domina. Porém, com a arte não é assim que funciona, chamar tudo de arte abre o pressuposto para “escultura” em bexigas (balão comumente usado como decoração em festa de aniversário) serem postas em museus e serem chamadas de arte. Se todo ato que não possa ser revelado, nem como foi feito, aponta para uma ação antiética, a arte que precisa ser explicada e gera desejo em ser levada para casa é no mínimo duvidosa em sua legitimidade e profundidade.
Obras de Van Gogh e Da Vinci provocam o deslocamento dos pontos outrora estáveis. Ambos produzem imagens que ativam conteúdos internos e autônomos que emergem para a consciência, em alguns casos apenas contaminando as decisões do ego e em outros casos predominantes na consciência. Jung chamou esses fenômenos de complexos. Complexo “É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitudes habituais da consciência.” (JUNG, OC XIII/2, §201). À medida que esses pontos não são estimulados a manifestarem o ponto de vista do indivíduo não muda. Sua perspectiva continua a mesma, a do ego supervalorizado. Com a arteterapia o olhar é outro.
Como recurso terapêutico a arteterapia recoloca o indivíduo em seu curso natural da vida, materializa os complexos em forma de símbolos, possibilitando a aproximação do inconsciente com o consciente levando à transcendência. Na ótica junguiana, a busca por esse propósito de se tornar um ser íntegro, indivisível e autorrealizado foi chamado pelo próprio de Jung de processo de individuação. Para Jung a essência do individuo não é estática, mas um vir a ser. Seria como uma jornada onde o ponto de partida é qualquer lugar onde se está e a meta é o ponto de chegada, ou seja, a individuação. Daí a importância em se localizar no espaço. Se não se sabe onde se está não se saberá para qual direção caminhar.
“A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. É uma necessidade natural”. Jung (OC 6 § 853).
A individuação organiza os diferentes fatores opostos, cria uma ordem que transforma o caos em cosmos. Reforçando que ordem não é algo estático, ela forma e transforma constituindo a essência da individuação. Para Jung, a transcendência era vital. Ele acreditava que cada pessoa precisa sentir sua vida na direção da realização de algo superior. Quando a vida é percebida sem maiores propósitos, com objetivos de pouca relevância, a angústia existencial prevalece. Na vida se faz necessário para fugir deste estado encontrar o ponto de onde tudo converge e diverge ao mesmo tempo. Esse ponto está dentro e não fora. Jung reconheceu e nomeou este ponto como Self, a imago Dei, imagem de Deus no homem. Inclusive é um dos pontos centrais de sua teoria.
Na arte, quando se desenha um ponto descentralizado dentro de um quadrado, por exemplo, é como se o ponto estivesse em movimento de saída do espaço delimitado. Porém, se o ponto estiver ao centro do polígono, a sensação é de estabilidade. O mesmo acontece com aquele que coloca sua energia vital em pontos descentralizados de sua própria existência. Vidas regidas pelo Você S/A, pela busca da onipotência / onisciência / onipresença, pelos morredouros papeis sociais estão fadadas a estagnação. Já os que canalizam a mesma energia para o centro psíquico poderão sentir a plenitude da estabilidade do e no Self. Alguns ainda pensam que individuar é se excluir do mundo. A confusão existe pelo fato de que entrar em contato com o Self é um ato individual. Toda via, individuar não tira do mundo, pelo contrário, aproxima mais o indivíduo do mundo. Isso acontece porque a individuação desnuda o Self dos vários invólucros das personas que tanto interferem.
A meta da individuação é a síntese e ao mesmo tempo a análise. Pois na experiência do Self não há opostos, assim como na arte, um ponto desenhado no centro do círculo é o inicio e o fim simultaneamente.
O círculo é a forma perfeita. Num mandala, o centro é o espaço de Deus ou o âmago da psique, é o Self, o arquétipo da totalidade e o centro regulador da psique. A partir deste arquétipo o ego pode transcender e integrar conteúdos do inconsciente. As experiências do Self possuem um dado de numinosidade, que só pode ser encontrado em revelações de cunho sagrado. Jung apresenta a ideia de não haver diferenças essenciais entre o Self, enquanto Imago-Dei, e a experiência da psique em relação ao divino. Mostra ainda que o indivíduo afastado de Deus não conseguirá opor-se ao poder do mundo externo e ficará polarizado. Viver esse encontro é estar no processo de individuação. “Quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta” (JUNG, 2015), disse em carta para senhora Bowditch no outono de 1922. Essa conhecida frase revela para onde a energia psíquica deve estar concentrada.
A física quântica trás em sua base pontos que nos servem como analogias. Ela mostra que matéria e luz se comportam de forma diferente de acordo com o ponto de vista do observador. A título de exemplo, os lápis como objetos são apenas ideias na mente daqueles que os percebem. Desta forma, todo e qualquer objeto só existe quando é percebido e só existe como existe de acordo com quem idealiza o objeto. Para ajudar na minha analogia trago o divisionismo ou como é mais conhecido, pontilhismo, que tem na essência de sua existência receber as projeções do observador.
No pontilhismo, movimento artístico do final do século XVIII início do XIX, o artista compõe sua obra pintando vários pequenos pontos, geralmente em cores básicas, um ao lado outro formando a imagem desejada. Icônico deste movimento, Geroge Seurat, pintor francês que adorava Francisco de Goya, combinava arte e ciência muito bem. As ideias da física quântica rondavam o imaginário do artista de modo a serem expressas em suas obras. Além de defender que a obra de arte deveria transmitir valores maiores, teriam descoberto a fórmula óptica para a arte.
A técnica pós-impressionista entregava a imagem ao observador apenas se o mesmo observasse com certa distância a obra. Olhando de perto era possível ver cada ponto pintado, mas não compreender a imagem total. A constituição da imagem acontecia no momento da observação, assim como a luz, segundo a física quântica, se comporta de forma diferente se há um observador. Fecho este artigo convidando você para essa analogia:
Faz-se necessário observar os pontos em uma obra de arte que geram estabilidade e segurança. E, ao mesmo tempo, identificar a imagem resultante da somatória destes mesmos pontos. No pontilhismo, a imagem acontece com o olhar do observador, inicialmente são apenas pontos que encontrando correspondência no mundo das imagens, produzem ideias que ganham materialidade na própria obra. Assim é com a psique. Pontos de segurança e estabilidade são imprescindíveis para uma vida psiquicamente saudável. E, o que é possível observar para além dos pontos de apoio são frutos de projeções do mundo interno. A cosmovisão de cada indivíduo limita o modo de ver o mundo. Reconhecer os pontos é conhecer que se é. Autoconhecer-se é o único caminho para a individuação. Desta forma, o elemento da linguagem artística ponto dá a possibilidade de reconhecermos onde estamos de onde viemos e para onde estamos indo.
Willian Silva – Analista Junguiano em Formação pelo IJEP
Analista didata responsável: Waldemar Magaldi
Referências
JUNG, Carl G. Letters, Volume 1: 1906 – 1950. New York, NY – USA. Routledge. 2015.
___________. Tipos Psicológicos. Rio de Janeiro- Ed. Vozes. 2011.
SCRUTON, Roger. Beleza. São Paulo. Editora É realizações. 2013.
OSTROWER, Fayga. Universo da arte. São Paulo. Ed. Unicamp. 2013.
Imagem: Georges Seurat – CENA DE BANHO EM ASNIÉRE – Ano: 1883/1884