Blog IJEP

Precisamos imaginar Afrodite velha

“Aceite-me. Eu sou o convite. Aquilo que encontrares se me aceitar és tu mesmo, pois sou a diferenciação. Sou de prata, sou sim o sinal de declínio do ouro, porém, aquele que permanece no ouro perde-se de si. Chegou o momento de revisares a ti mesmo, abandonares a falsa importância que tu seguraste tão firme desde então. Duvida-te de ti. Quem és tu se não tiveres este ofício; quem és tu se não tiveres este dinheiro ou esta dívida; quem és tu se morasses em outro lugar, com ou sem religião, com outra família ou solitariamente, com outro ou até mesmo sem o amor? O que fizeste até então, valeu para que? Pois essa te respondo: para nada. Tudo é pó e ao pó retornarás.”

É uma manhã de segunda-feira normal. Acorda-se com a ressaca do dia anterior. O trabalho aguarda. Mas, antes, o banheiro pede urgência, como esperado. Após as necessidades básicas e o banho, você se encontra frente a frente do espelho. Espantado.

O espanto é tão grande que perde a noção se é você que olha o seu reflexo ou se é o seu reflexo que olha para você. Devido ao espanto, podemos admitir que algo te dominou, portanto, o reflexo ganhou dessa vez. Devido ao espanto, novamente, sabemos que essa palavra está ligada a phantom: fantasma.

Um fantasma chegou. Ele não é uma pessoa atrás de você ou qualquer coisa do tipo – é, na realidade, um fio prateado surgido em meio à cabeleira escura dos dias anteriores. Solitário, branco, inesperado, diferente em cor e textura de todos os outros. “É um intruso”, pensa-se. Diante do espanto, são necessárias medidas drásticas: “arranque-o e não se fala mais nisso”. Elimine e mantenha no top secret.

Outra semana se passa e mais uma vez o espanto retorna ao cotidiano matinal de segunda-feira. Outro fio prateado. E já sabemos: se continuar arrancando, a imagem evocada é a “puxando os cabelos” – uma expressão de um estado de angústia, aflição ou desespero diante de uma situação problemática ou insolúvel.

O fio voltará na semana seguinte. Não tem mais jeito. Porém, a teimosia em negar a evidência semanal prateada torna-se bélica. Visto que é uma guerra, necessita-se de instrumentos. Não somente as mãos ou a pinça, mas medidas químicas podem ser tomadas: tintura e sprays coloridos são úteis. Tudo que possa disfarçar os intrusos prateados.

A cada novo ciclo: a lua prateada. Mais fios e fios refletem o satélite. Assim como a lua, o humor oscila entre a irritação e a melancolia. A falsa autoestima pautada na estética juvenil, trabalhada na academia e nos centros estéticos, antes inabalável, começa a ruir. Fantasia-se ao sair de casa: “será que estão falando de mim? Será que notaram os intrusos?”.

Essa fantasia não pode ser destacada. Quem são estes outros? “A sociedade”, pode-se responder. Uma sociedade tão padrão quanto a cabeleira escura até então. Cada fio de cabelo colorido é um fio que prende aos outros, nessa fantasia. O único que possui uma voz diferente é o branco. Mas, em meio às vozes laudas dos fios escuros, uma voz sutil e nívea pode ser encontrada. Ela é um sussurro da alma: “aceite-me”.

“Aceite-me. Eu sou o convite. Aquilo que encontrares se me aceitar és tu mesmo, pois sou a diferenciação. Sou de prata, sou sim o sinal de declínio do ouro, porém, aquele que permanece no ouro perde-se de si. Chegou o momento de revisares a ti mesmo, abandonares a falsa importância que tu seguraste tão firme desde então. Duvida-te de ti. Quem és tu se não tiveres este ofício; quem és tu se não tiveres este dinheiro ou esta dívida; quem és tu se morasses em outro lugar, com ou sem religião, com outra família ou solitariamente, com outro ou até mesmo sem o amor? O que fizeste até então, valeu para que? Pois essa te respondo: para nada. Tudo é pó e ao pó retornarás.”

Nenhuma cabeleira grisalha é a mesma. Cada fio contribui para a composição grisalha singular, uma manifestação visível do pedido de diferenciação. As tonalidades variam. As texturas se alternam entre fios lisos e sedosos, fios ondulados e volumosos, fios crespos e rebeldes. É, sim, uma diferenciação que se estampa na cabeça, literalmente. Também, é um convite à metáfora e reflexão, mesmo que os prateados fios sejam escondidos. A cabeça é um símbolo da reflexão, do pensamento, em nosso paradigma ocidental: um chamado para olhar para dentro e reconhecer algo que até então estava oculto.

O oculto não pode ser dito nesse artigo, pois, seria uma traição aos fios grisalhos. Porém, podemos refletir sobre a aceitação do pedido de diferenciação que o primeiro fio grisalho clama. Neste estágio, deve-se questionar: é possível reconhecer uma beleza que não se sintetiza à juventude estética, mas à singularidade? Se estamos falando de beleza, estamos falando de Afrodite. Isto é, imaginar Afrodite grisalha, velha?

Em artigo anterior, apontei como Afrodite não se encontra mais na estética atual (https://blog.ijep.com.br/afrodite-nao-esta-no-espelho-uma-critica-aos-padroes-esteticos-da-contemporaneidade/). Mas, talvez, ela possa ser encontrada no momento de espanto e maravilha diante do espelho que aqui estamos contextualizando. A beleza ou Afrodite só surge se o espanto e a maravilha da impermanência forem aceitos.

Pode-se pensar numa rosa colhida como uma representação da impermanência, que atinge seu esplendor máximo quando começa a murchar, defendendo que a beleza humana se manifesta em cada fase da vida. Bobeira. Hoje as rosas estão todas iguais, assim como seus arranjos e buquês. Todos buscam as rosas mais perfeitas e imperecíveis. Ninguém mais colhe uma rosa para a sua amada – compra na máquina capitalista e manda entregar.

No fundo, há um desejo de continuar belo como no passado. Defender que agora é um novo ciclo, mais espiritual e tentar esquecer do desejo de ser belo como quando jovem é reprimir o desejo da beleza bem como aceitar que o padrão estético contemporâneo venceu. Precisamos, na realidade, imaginar Afrodite velha. Há beleza tanto literal quanto metafórica no envelhecer. Sofia, a sabedoria, não emerge se não reconhecermos que nela há beleza, Afrodite.

Por isso, é importante aprender com as árvores de Ipê. A seca, um dos sintomas do envelhecer humano, também atinge os Ipês. Porém, para eles, isso pode significar morte. Nada obstante, curiosamente, a seca é um dos fatores que desencadeiam o processo de hiperfloração. O Ipê entra em um estado de alerta, assim como o espanto diante do espelho. A árvore interpreta a falta de água como um sinal de que precisa se reproduzir para garantir a perpetuação da espécie. É nesse momento que ele concentra suas energias na produção de flores e sementes.

Se Afrodite se apresenta diante da seca nessas árvores, por que não se apresentaria também para os humanos? Se refletirmos sobre a metáfora, não são as sementes juvenis, nem flores da juventude. São flores e sementes diante da imagem do envelhecer e, consequentemente, do espanto da impermanência neste mundo. Essas flores e sementes que desabrocham em meio à aridez representam a força que persiste diante do envelhecimento. Refletir sobre essa metáfora nos leva a questionar como queremos florescer junto aos novos fios brancos que tecem a individualidade, é essencial para escolher como envelhecer e, por fim, como morrer.

Que Afrodite possa nos acompanhar nessa jornada de espanto, de sentidos e memórias. E que possamos desejar, e nos regozijar, com os tons melancólicos e terroso do outono e, após, com o brilho sutil e prateado do inverno tanto quanto nos exaltamos com os reflexos furta-cor da primavera e com o dourado imponente do verão. Afinal, é no outono e no inverno que as mais belas auroras boreais podem ser avistadas.

Leonardo Torres – Analista Didata em formação IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP

Canais IJEP:

Aproveite para nos acompanhar no YouTube: Canal IJEP – Bem vindos(as)! (youtube.com)

Acesse nosso site e conheça nossos Cursos e Pós-Graduações com Matrículas AbertasIJEP | Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa.

*Psicossomática

*Psicologia Analítica

*Arteterapia e Expressões Criativas

Promoção especial para o próximo semestre (março/abril 2025):

Exit mobile version