O presente artigo abordará a Psique e a Matéria como Unidade, a partir da perspectiva da Psicologia Junguiana. A relação entre psique e matéria é um dos grandes desafios da área do conhecimento da humanidade nos tempos atuais.
Ao terminar sua obra sobre sincronicidade, Jung começou a tatear sobre a possibilidade de um avanço no entendimento desta relação através dos arquétipos dos números naturais. Poucos anos antes de falecer, por se sentir sem condições de continuar nessa empreitada, ele deixou essa missão para Marie Louise von Franz, uma das mais importantes sucessoras de seu trabalho.
Apesar de ter tido dúvidas sobre se deveria realizar essa missão ou delegá-la para alguém mais capacitado do que ela, após a morte de Jung, o tema não a deixou em paz, fazendo com que ela tomasse para si esse empreendimento.
O presente artigo foi escrito tendo como base dois livros de von Franz em que ela discorre sobre o assunto: “Psyche and matter” (2014) e “Number and time” (1974).
Busca-se trazer uma perspectiva inicial sobre o tema, que será aprofundado na monografia de formação de membro analista do IJEP.
A descoberta da existência do inconsciente por Sigmund Freud e Carl Gustav Jung foi de fundamental importância para o entendimento da psique humana. Apesar de terem tomado caminhos bem diferentes, ambos foram responsáveis pelo trabalho empírico que permitiu ter algum tipo de conhecimento dos conteúdos inconscientes da psique. Sonhos, fantasias, atos falhos, sintomas, gestos involuntários, nos dão alguma noção do que se passa no infinito reino do inconsciente.
A partir da descoberta do inconsciente, Jung seguiu um caminho diferente de Freud e dos materialistas de sua época no estudo e entendimento da psique.
Para Freud, o inconsciente era um local onde eram despejados impulsos sexuais reprimidos e ele buscou conectá-los, através dos seus conhecimentos médicos, direcionando sua busca de entendimento em processos biológicos.
Jung preferiu outra abordagem, antes de assumir qualquer tipo de relação entre o inconsciente e o corpo, ele quis observar os fenômenos psíquicos em si, não por acreditar que essa relação não fosse válida, mas sim porque ele achava que naquele momento, esse caminho seria precipitado.
Da mesma forma, ele foi em oposição aos seus contemporâneos materialistas, que assumiram apressadamente que a psique seria apenas um aspecto secundário da personalidade, sujeito totalmente aos processos fisiológicos.
Ao seguir seu caminho, Jung chegou à descoberta do conteúdo mais importante da psique, os complexos.
“A via regia que nos leva ao inconsciente, entretanto, não são os sonhos, como ele (Freud) pensava, mas os complexos, responsáveis pelos sonhos e sintomas”
JUNG, 2000, §210
Através do uso do teste de associação de palavras, Jung descobriu a existência dos complexos. Complexos seriam um agrupamento de vivências semelhantes carregadas de forte carga emocional, que agem como uma personalidade com certa autonomia e que toda vez que são acionados provocam reações tanto emocionais quanto corporais fora do alcance da vontade do ego.
Esse grau de autonomia pode ser tão grande, que nós não temos complexos, são eles que podem “nos ter”. A partir do teste de associação de palavras, Jung percebeu que seus pacientes levavam um tempo ligeiramente maior para responder quando eram citadas palavras associadas a alguma vivência traumática.
Posteriormente, quando esse teste foi feito junto com psico galvanômetro, foi possível perceber que sempre que acontecia esse atraso na resposta, ocorria também um desvio na curva respiratória ou na permeabilidade elétrica da pele. Ou seja, obteve-se indicações de que os complexos tinham também efeitos fisiológicos nos indivíduos.
Com o conhecimento de psicossomática que se tem hoje, sabe-se que os complexos afetam o corpo de várias formas.
Os complexos impactam, por exemplo, o batimento cardíaco, a digestão, o aparelho respiratório, o urinário etc. Ou seja, o mundo inconsciente da psique não estaria relacionado apenas aos processos mentais. Mas sim do corpo como um todo, sendo que o cérebro teria a função específica de organizar nosso entendimento do mundo exterior.
Para Jung, os complexos têm forte relação com a personalidade e ele direcionou seus esforços no entendimento dessa relação.
É imprescindível trazer o conceito de psique segundo Jung. Começando com a consciência, temos que seu conteúdo é tudo aquilo que conhecemos, que temos consciência, que está no domínio do complexo do ego.
Ademais, além da consciência existe o imenso mundo do inconsciente. Em uma primeira camada encontra-se o inconsciente pessoal – no qual estão os conteúdos da vivência pessoal de um indivíduo.Já em camada mais profunda encontra-se o inconsciente coletivo – no qual estão abrigados conteúdos comuns à toda humanidade, a exemplo de sua capacidade criativa, tanto consciente quanto inconsciente, sendo a base da estrutura da psique.
Outro conceito importante, relacionado ao inconsciente coletivo, é o de arquétipos
Arquétipos são estruturas psíquicas existentes a priori, não observáveis, uma vez que são estimulados por vivências similares. Sejam elas externas, um perigo que represente uma ameaça de morte, ou internas, levam às mesmas reações, sentimentos, emoções, fantasias, sensações em todas as pessoas, como acontece com os instintos.
A associação desses efeitos com emoções, como amor, medo, entusiasmo, etc., leva a efeitos físicos como aceleração do coração, ondas de suor, tremores e várias outras situações.
A partir dessa ideia, Jung fez um diagrama (Figura 1) para representar a psique, atribuindo a ele um espectro de cores, de forma que em um extremo está a parte puramente instintiva, que ele nomeou de infravermelho e no outro extremo está a parte puramente arquetípica, nomeada de ultravioleta. Entre eles existe um espaço em que o ego transita, e no meio desse caminho está a consciência, onde ele pode usufruir de uma certa autonomia de decisão.
Fora deste campo, a polarização em qualquer um dos lados pode levar o ego a ser tomado por um complexo como, por exemplo, a ninfomania ou a compulsão alimentar no extremo infravermelho, ou, ainda, a pessoa pode ser tomada pela ideia de que é um deus salvador no extremo ultravioleta.
Considerando este modelo, vivemos cotidianamente situações em que o mundo da matéria, percebido por nosso corpo, afeta nosso mundo psíquico. Reciprocamente temos também o mundo psíquico se manifestando no corpo. A existência dessa relação de mão dupla pode ser demonstrada de forma estatística e vem sendo objeto de estudo da medicina psicossomática. Mas como podemos descrever e entender a conexão entre psique e matéria?
Para Jung:
“os dois polos (infravermelho e ultravioleta) fazem parte de uma única e desconhecida realidade viva, e são vistas como dois fatores diferentes somente na consciência, Se nós somos afetados pelo físico ou o assim chamado eventos ‘materiais’ do mundo externo nós os chamamos matéria, se nós somos mobilizados por fantasias, ideias ou sentimento internos, nós chamamos isso de psique objetiva ou inconsciente coletivo.”
von Franz, Number and time, 1974, p. 5 [1]
Ao se aprofundar no estudo dos arquétipos (que não são acessados diretamente) Jung identificou as imagens arquetípicas nas religiões, mitos e contos de fadas. Mesmo com pontos de diferenciação, os arquétipos mantinham um padrão que se repetia. Além de estarem na base dessas imagens recorrentes, os arquétipos – que constituem a matriz criativa da inconsciência e do funcionamento da consciência, também estão na base da ciência e de suas premissas intelectuais.
No excelente livro, Die physikalische Weltbild in der Antike (“A imagem do mundo físico na antiguidade), S. Sambursky, demonstra de forma detalhada que todos os temas da física do Ocidente são derivados de imagens simbólicas primitivas intuitivas da filosofia natural grega.”[2] (S. Sambursky, apud von Franz, Matter and Psique, 2014, p.15)
Para os pitagóricos “os números são o alfabeto com que os deuses escreveram o universo”.
Na física moderna, uma das ideias mais importantes da filosofia que guia é a de que, no fim das contas, tudo o que se está lidando é com uma estrutura matemática. Os pitagóricos já tinham trazido isso para o mundo quando trouxeram que números naturais, e algumas relações entre eles são constantes da natureza, em até 95% (para guardar uma certa margem de segurança). Pois fazem parte da base da ciência natural moderna, são imagens do divino, o que provoca tanto interesse sobre elas.
Um dos exemplos mais conhecidos de uma constante da natureza que representa uma imagem divina é a proporção áurea, 1,6180. A proporção áurea pode ser obtida de forma aproximada na sequência de Fibonacci. Esta última, por sua vez, é uma sequência infinita construída, em que um termo é a soma dos dois anteriores: (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, …).
Apesar de alguns matemáticos afirmarem que os números são apenas uma questão de nomenclatura, eles foram nomeados como um, dois, três e assim por diante e da mesma forma poderiam se chamar X, Y, Z … E essa troca não teria nenhum efeito, para este grupo a forma como nos referimos aos números seria uma mera convenção inventada pela consciência.
Esse grupo certamente pode ser considerado dentre aqueles que acreditam que somente a consciência e o ego compõem a psique
Se imaginarmos um processo em que “inventamos” os números a partir de uma contagem de algum elemento, como ervilhas por exemplo, vamos fazendo o levantamento e vamos nomeando o agrupamento de ervilhas de “um”, “dois”, “três”, e assim por diante.
Este é um processo totalmente criado pela nossa mente e, como fizeram os pitagóricos, várias características desses números foram descobertas. Números pares, ímpares, primos, e mais do que isso, foram descobertas também relações entre eles que ainda hoje não foi possível desvendar a explicação totalmente. Se essas características tivessem sido criadas da mesma forma que os nomes que nós atribuímos aos números, certamente seríamos capazes de falar tudo sobre eles.
Ocidente e oriente
Comparando as visões ocidentais e orientais sobre os números, temos vivências significativamente diferentes entre os dois, enquanto no ocidente temos uma visão predominantemente quantitativa, no oriente temos uma perspectiva qualitativa.
No seu livro “Adivinhação e sincronicidade – A psicologia da probabilidade significativa”, von Franz cita uma história que muito bem ilustra a perspectiva qualitativa dos números para os chineses. Em uma certa batalha, onze generais tinham que decidir se prosseguiriam com a guerra ou se bateriam em retirada. Não houve unanimidade entre eles. A decisão foi votada, sendo que oito deles votaram pela retirada e três votaram por continuar e atacar.
Diferentemente do que uma mente ocidental acharia. Justamente porque três é o número que representa a unanimidade eles partiram para o ataque e foram vitoriosos (von Franz, Adivinhação e sincronicidade – A psicologia da probabilidade significativa, 1980, pp. 99, 100).
Ampliando essa diferença de percepção para a visão sobre psique e matéria temos que: “Enquanto muitos no Ocidente gostariam de derivar tudo da matéria, ao contrário, no Oriente, por exemplo, os tântricos dizem que a matéria nada mais é do que a definição do pensamento de Deus.”[3] (von Franz, Matter and Psique, 2014, p. 17)
Jung focou seus esforços em explorar como o mundo do inconsciente pessoal e coletivo afetavam a pessoa. Nesse sentido, ele se deparou com um desafio, pois, até então, o mundo psíquico só podia ser percebido em seu próprio meio. Diferentemente dos físicos que levavam a vivência da matéria para o mundo mental, psíquico.
Sincronicidade
Ao formular o conceito de sincronicidade, que Jung sabia que enfrentaria muita resistência do racionalismo ocidental, o autor nos trouxe uma nova perspectiva de entendimento da relação entre psique e matéria.
Um evento sincrônístico é uma imagem simbólica constelada no mundo psíquico interior, um sonho, uma imaginação ativa, ou um palpite repentino originado no inconsciente, que coincide de uma forma “milagrosa”, não explicável de forma causal ou racional, com um evento similar do mundo exterior (von Franz, Number and time, 1974, p. 6).[4]
O I Ching, um livro chinês de adivinhação e sabedoria, é totalmente baseado na sincronicidade. Deixarei a análise mais profunda desta relação para a monografia de formação de membro analista do IJEP.
Entretanto, acho interessante deixar registrado aqui um fato que nos chama a atenção: quando pensamos na relação entre a psique e matéria, que a quantidade de hexagramas do I Ching, 64, é exatamente a mesma de combinações possíveis do código genético dos seres humanos.
Com o conceito de sincronicidade, em que um evento psíquico se espelha no mundo exterior da matéria, foi possível pensar na existência de uma unidade que está na base da dualidade entre psique e matéria de forma mais compreensível. A partir disso, Jung utilizou o termo unus mundus para designar essa unidade de existência.
Psique e matéria
Jung reconhecia que ele próprio não tinha mergulhado nas profundezas desse abismo do entendimento da unidade de existência entre psique e matéria.
Apesar disso, ele nos deixou a seguinte pista:
“Nessa conexão eu sempre me deparo com o enigma dos números naturais. Eu tenho um sentimento distinto de que eles são a chave para o mistério, desde que eles são ao mesmo tempo descobertos e inventados, quantidade e significado”
von Franz, Number and time, 1974, p. 9 [5]
Dulce Ayako Kurauti – Membro analista em formação pelo IJEP
E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Bibliografia
von Franz, M.-L. (1974). Number and time. Northwestern University Press: Evanston.
von Franz, M.-L. (1980). Adivinhação e sincronicidade – A psicologia da probabilidade significativa. São Paulo: Cultrix.
von Franz, M.-L. (2014). Matter and Psique. Boston & London: Shambhala.
[1] (…) the tvvo poles partake of one and the same unknown living reality, and are registered only as two different factors in consciousness. If we are afTected by the physical or so-called “material” events of the outer world, we call it matter; if we are moved by fantasies, ideas, or feelings from within, we call it the objective psyche or the collective un- conscious.
[2] S. Sambursky, in his outstanding book Die physikalische Weltbild in der Antike (“The Image of the Physical World in Antiquity”), demonstrates in a detailed fashion that all the basic themes of modern Western physics are derived from the intuitive primal symbolic images of Greek natural philosophy.
[3] Whereas many in the West would like to derive everything from matter, conversely, in the East, for instance, the Tantrics say that matter is nothing other than the definiteness of God’s thought.
[4] (…) a symbolic image constellated in the psychic inner world, a dream, for instance, or a waking vision, or a sudden hunch originating in the unconscious, which coincides in a “miraculous” man- ner, not causally or rationally explicable, with an event of similar meaning in the outer world.
[5] n this connection I always come upon the enigma of the natural number. 1 have a distinct feeling that number is a key to the mystery, since it is just as much discovered as it is invented. It is quantity as well as meaning.