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Quando o feminino se torna sombrio para a sociedade

o feminino e a psicologia

O presente artigo trata da importância de resgatar o arquétipo do feminino para o desenvolvimento social e humano.

No meio de tantas discussões e confrontos atuais em relação ao feminismo e também ao machismo, percebemos uma parte considerável tanto de homens quanto de mulheres mais preocupados em levantar bandeiras do que buscar compreender as visões opostas e auxiliar para uma harmonização entre as polaridades. Percebemos esta característica em vários assuntos políticos, sociais, culturais, etc., sem que haja uma tentativa de diálogo entre eles. 

Tanto homens quanto mulheres encontram grandes dificuldades quando tentam dialogar com seu contraponto anímico da psique – chamado na visão analítica de anima e animus – fato este, que em muitas das vezes, leva o indivíduo à uma unilateralização, descartando a outra parte complementar da psique. Neste artigo, vou ampliar esta ideia focando nas mulheres e também em como as manifestações do arquétipo feminino se tornaram sombrias para a sociedade em que vivemos. 

Quando as regras são ditadas pelo coletivo, qualquer aspecto pessoal que vai contra a massa se torna sombrio para o indivíduo, permanecendo escondido e reprimido da consciência.

Hoje encontramos muitas mulheres nesta situação: se escondendo em troca de uma adequação aos padrões coletivos. Com isso, olhar para sua alma implica para a mulher olhar também para seus aspectos sombrios, uma vez que estão cada vez mais identificadas com a sua persona masculinizada, ou mesmo sendo influenciadas no nível inconsciente pelo animus negativo, olhar para sua alma feminina se torna o primeiro passo para uma busca de totalidade.

Ideia trabalhada pela autora Nancy QuallsCorbett e fundamentada pela junguiana Ann Unalov que afirma que o processo de individuação se inicia através do confronto inicial com o feminino.

“para o homem, através da anima, que leva ao si-mesmo; para a mulher, através do si-mesmo feminino, e não através de quaisquer elementos contrassexuais.”

(QUALLS-CORBETT, 2002 p. 71)

Ou seja, sendo de vital importância  o olhar para a energia feminina.

Todos nós estamos, de certa forma, acostumados a ver mulheres influenciadas por um animus negativo, alimentando diariamente uma atitude masculinizada e, qualquer mudança nesta condição acabará influenciando a todos, homens e mulheres – pois os homens também têm um lado feminino em sua psique. Jung, em sua obra, fala sobre a diferenciação psíquica da mulher e a sua importância também para o masculino quando cita a influência da anima: 

A mulher, com sua psicologia tão diversa da psicologia masculina, é e sempre foi uma fonte de informação sobre as coisas que o homem nem mesmo vê. É capaz de inspirá-lo e sua capacidade intuitiva, muitas vezes superior à do homem, pode adverti-lo convenientemente. Seu sentimento, orientado para as coisas pessoais, é apto para indicar-lhe caminhos; sem essa orientação, o sentimento masculino, menos orientado para o elemento pessoal, não os descobriria (JUNG, 2011b, p. 78). A História nos proporcionou grandes avanços culturais, sociais e tecnológicos, mas às custas da negação de outros aspectos, também importantes, como uma alma feminina.

“À medida que o princípio espiritual masculino se tornou mais dominante, a apreciação da natureza feminina instintiva retrocedeu para o inconsciente”

(QUALLS-CORBETT, 2002 p. 65).

Ou seja, as imagens arquetípicas do feminino se tornam sombrias para a mulher contemporânea. Para sobreviver no modelo atual da sociedade, principalmente no ambiente profissional, é imprescindível um animus positivo que a ajude a transitar pelo simbólico-relacional, porém, aqui estamos retratando quando ele é negativo levando a mulher a ostentar uma persona masculizada para se sentir aprovada.

Harding traz em seu livro: 

Esse desenvolvimento masculino está definitivamente ligado à sua vida no mundo dos negócios e, na maioria dos casos, é até exigido como um pré-requisito para se ganhar a vida no mundo, praticando uma profissão ou seguindo uma ocupação. A mudança de caráter, que tem acompanhado essa evolução, não existe só na parte profissional da vida de uma mulher, mas afeta a sua personalidade inteira, e tem causado mudanças profundas na sua relação consigo mesma e com os outros. (…) essas mudanças têm produzido para a mulher um inevitável conflito interno entre a necessidade de expressar-se através do trabalho, como um homem faz, e a necessidade interior de viver de acordo com sua própria natureza feminina (HARDING, 1985, p. 35).

A mulher que nega sua alma, asfixia sua criatividade e também o desenvolvimento pessoal. É preciso desenvolver um diálogo entre as polaridades, aprender a se relacionar com ele e usá-lo ao nosso favor. Normalmente a mulher tomada pelo animus negativo não tem consciência de que é ele quem está dominando uma vez que ele age de modo inconsciente.

Sobre esta ideia, Jung escreve:

A mulher tomada pelo animus corre sempre o risco de perder sua feminilidade, sua persona adequadamente feminina. (…) tais transformações psíquicas do sexo implicam-se pelo fato de que uma função interior se volta para fora. O motivo desta perversão é, naturalmente, a insuficiência ou o desconhecimento total do mundo interior, que se ergue, autônomo, em oposição ao mundo exterior; as exigências de adaptação ao mundo interior igualam às do mundo exterior.

(JUNG, 2012b, p. 100)

É notável que a mulher demasiadamente identificada com a sociedade patriarcal tem uma tendência de supervalorizar a persona masculinizada. Com isso, cria-se um ideal de dominação de si-mesma, ou seja, de controle absoluto de tudo – e este é um pensamento tipicamente masculino -, que só se consegue às custas da repressão de sua sensibilidade. Ela se ‘esquece de olhar para dentro e de se questionar o que faz sentido para sua vida. Jung destaca que quando uma mulher está tomada pelo animus negativo, “ela reprime também certas emoções como se fossem fraquezas femininas” (JUNG, 2011a p. 50).

Ao fazer isso, essa feminilidade e sentimentalidade reprimida se acumulam e se tornam sombrias tanto para a própria mulher quanto para o coletivo.

O resgate da alma feminina na psique da mulher é vital “se as mulheres quiserem entender a si próprias, mas também se o mundo patriarcalmente masculino, adoecido graças à sua unilateralidade extrema, quiser re-cobrar a saúde”, enfatiza Neumann (2011, p. 5).

É de vital importância que a mulher entenda a importância de se olhar simbolicamente, de resgatar e respeitar os valores da sua alma. Se o caminho para a individuação é buscar um equilíbrio ou aprender a lidar com a tensão entre os, a mulher de hoje tem um caminho um pouco mais longo para percorrer. Mais do que aprender a usar o lado masculino interior a seu favor, a mulher precisa antes se conhecer, voltar a acolher seu lado feminino da alma, para então entender e aprender a ressignificar também a imagem que ela terá do masculino. Entendendo que o homem não pode ser mais um adversário dela, mas sim também um aliado, um companheiro de jornada.

Uma mulher que se respeita, abre espaço para outras mulheres poderem se expressar. Uma mulher com consciência das suas polaridades melhora a imagem do feminino tanto para outras mulheres quanto para os homens. E sabendo que para o processo de individuação masculina é necessário aprender a relacionar com o feminino interior dele, teremos um ganho onde o homem também aprenderá a valorizar a imagem de mulher dentro e fora dele. Como reflexo desta reação, a mulher tem hoje um trabalho duplo: resgatar e aprender a conhecer tanto seu lado feminino quanto seu lado masculino; só assim ela conseguirá acessar sua totalidade, sem negar nenhum dos lados.

Desta forma, podemos concluir que o arquétipo do feminino se tornou sombrio para o desenvolvimento humano.

A tomada de consciência para este fato e a iniciativa de resgatá-lo é vital para o desenvolvimento e saúde da mulher e também para a mudança da sociedade. Não podemos ficar na ilusão de que hoje as mulheres ganharam tanta autonomia que têm a liberdade de serem quem elas quiserem. É preciso se desprender das regras e exigências impostas pelo animus, que inibem a expressão da sua totalidade. É preciso lutar para o seu feminino ter voz, e a expressão da sua alma ser valorizada justamente por ser quem se é.   

Marcella Ferreira – Psicoterapeuta junguiana, taróloga, membro analista em formação pelo IJEP

marcella@conhecendojung.com.br

 www.conhecendojung.com.br

Espaço Leela (consultório) – Vila Mariana – SP

Referências:

HARDING, Mary Esther. 1985. Os mistérios da mulher. São Paulo : Paulinas, 1985.

JUNG, Carl Gustav. 2011a. Civilização em transição. 4º. Petrópolis : Vozes, 2011a. Vol. 10/3.

 -. 2012b. O eu e o inconsciente. 24º. Petrópolis : Vozes, 2012e. Vol. 7/2.

NEUMANN, Erich. 2011. O medo do feminino. 2º. São Paulo : Paulus, 2011.

QUALLS-CORBETT, Nancy. 2002. A prostituta sagrada. 1º. São Paulo : Paulus, 2002.

Marcella Helena Ferreira

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