Resumo: Este artigo analisa a transição de carreira na meia-idade à luz da psicologia analítica de C.G. Jung, compreendendo-a como expressão simbólica do processo de individuação. Ao articular os conceitos de persona, self, metanoia e daimon, propõe-se que a mudança profissional, longe de ser apenas uma resposta adaptativa ao mercado, reflete um impulso interno por autenticidade e inteireza. A crise, nesse contexto, atua como catalisadora de transformação psíquica. A partir de autores como Jung, James Hollis, James Hillman e William Bridges, argumenta-se que a reconexão com a vocação profunda representa um rito de passagem contemporâneo. O trabalho, então, deixa de ser apenas instrumento de sobrevivência e passa a ser expressão do self em ação. A travessia da meia-idade se revela, assim, como oportunidade de reescrever o destino com base em um chamado interior.
No contexto contemporâneo, caracterizado por rápidas transformações sociais, culturais e tecnológicas, observa-se um crescente número de pessoas questionando seus caminhos profissionais e repensando suas trajetórias de carreira.
Em uma sociedade na qual o trabalho ocupa papel central na construção da identidade, a mudança de profissão — especialmente na meia-idade — torna-se uma experiência intensa, muitas vezes acompanhada por crises existenciais. Assim, é interessante lançarmos luz sobre os aspectos simbólicos, existenciais e arquetípicos implicados nessas mudanças.
Mais do que uma simples reorientação funcional, esse movimento pode representar um mergulho psíquico em direção ao self, revelando o processo de individuação descrito por C.G. Jung.
Elemento central do pensamento de Jung, o chamado processo de individuação é aquilo por meio do qual que a pessoa vai se conhecendo, retirando suas máscaras, retirando as projeções lançadas anteriormente no mundo externo e integrando-as a si mesmo:
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Dessa forma, podemos traduzir ‘individuação’ como tornar-se ‘si-mesmo’ (Verselbstung) ou o realizar do si-mesmo (Selbstverwirklichung).
Jung, 1987, p. 49
O processo de individuação acontece em três movimentos gerais: o primeiro é o caminho para a diferenciação do coletivo; o segundo, a diferenciação de si, a realização de si-mesmo; e, por fim, o retorno ao coletivo, de uma forma mais integrada.
A diferenciação pressupõe o afastamento da conformidade pessoal e da coletividade, para depois voltar de forma mais autêntica e contribuir com uma nova dinâmica à coletividade.
A transição de carreira pode ser compreendida, também, à luz do conceito de persona de Jung, como um momento em que a máscara social que usamos — e que foi funcional em determinado período da vida — começa a mostrar sinais de inadequação ou desgaste em relação à totalidade do self.
Para Jung, a persona é a “máscara” que o indivíduo apresenta ao mundo.
Ela representa os papéis sociais que assumimos (profissional, familiar, social) e é necessária para a convivência e adaptação no mundo externo. A persona organiza a forma como nos apresentamos socialmente, mas não representa nossa essência profunda. É um compromisso entre o indivíduo e a sociedade. A transição de carreira, especialmente quando motivada por um impulso interno (e não apenas externo, como uma demissão), costuma ocorrer quando a persona vigente deixa de servir ao desenvolvimento psíquico. Nesses casos, “a persona profissional” pode ter sido construída para atender expectativas parentais, sociais ou culturais, porém, chega um ponto em que a rigidez dessa máscara começa a sufocar o self — o centro organizador da psique.
O trabalho, além de garantir sustento, oferece um sentido de pertencimento e contribui para a formação da identidade. A ocupação escolhida molda a autoimagem e influencia diretamente o modo como o indivíduo se percebe no mundo. No entanto, quando esta função perde o significado ou entra em conflito com aspectos mais profundos da psique, ocorre um deslocamento: o sujeito se vê impelido a buscar outra expressão de si no mundo.
Essa ruptura geralmente se intensifica na meia-idade, fase marcada, segundo autores como James Hollis, por uma série de questionamentos existenciais. Para Hollis a meia-idade é um momento de transição e mudança profunda na vida do indivíduo: a metanoia é um processo de “morte e renascimento“, onde a pessoa revisa sua vida e se reconecta com seus valores e propósito. É nesse período que o indivíduo revisita escolhas passadas, confronta a finitude, e busca ressignificar sua vida. A transição de carreira, nesse contexto, pode funcionar como um gatilho ou como consequência de um processo interno de desconstrução e reconstrução psíquica. A crise, portanto, assume papel de catalisadora de mudança e de crescimento.
A reinvenção de carreira na meia-idade tem características específicas.
Segundo Jung (1987), na primeira metade da vida gastamos parte da nossa energia para nos adaptar ao mundo exterior; na segunda metade é chegada a hora de nos voltarmos mais para nosso mundo interior.
A primeira metade da vida é um período de progressiva expansão. O jovem terá de renunciar aos hábitos de infância, aos aconchegos familiares, para atender aos desafios do mundo exterior. Terá de estudar, trabalhar e conquistar uma posição social. Terá de vivenciar em si mesmo a eclosão dos instintos e fará encontro com o sexo oposto. Ficará apto a gerar. […] Na segunda metade da vida as tarefas são diferentes. Acabou o tempo de expansão. Agora é tempo de colher, de reunir aquilo que estava disperso, de juntar coisas opostas, de concentrar.
Silveira, 1997, pp. 156-157
Demandas sobre o sentido da vida e o que fazer no futuro promovem um mergulho nas profundezas da alma e, ao mesmo tempo configuram-se em possibilidade de renovação, metaforicamente expressa por Jung: “Precisamente ao meio-dia, o Sol começa a declinar e esse declínio significa uma inversão de todos os valores e ideais cultivados durante a manhã (…) É como se recolhesse dentro de si os próprios raios” (2013, p.354). Ele complementou, afirmando que entramos despreparados na segunda metade da vida: “Não podemos viver a tarde de nossa vida segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer” (2013, p. 355).
A transição de carreira na meia-idade transcende os limites de uma simples reorientação funcional ou de uma resposta estratégica às demandas do mercado.
Quando abordada sob a perspectiva da psicologia analítica, ela se revela como um movimento psíquico profundo — uma travessia simbólica que atualiza o processo de individuação. Trata-se, portanto, de um deslocamento do eixo da vida: do ego adaptado à persona para o self como centro regulador da totalidade psíquica.
Jung já apontava que “a realização do si-mesmo é o maior de todos os valores humanos” (Jung, 1987, p. 56), mas essa realização não ocorre sem rupturas.
A persona, outrora útil, começa a ruir, sinalizando que o que antes servia à adaptação ao mundo já não atende mais à alma. Nesse momento, surgem sintomas, crises, angústias — expressões da psique que exigem escuta e reorientação. A crise, nesse sentido, é uma oportunidade. Como afirma Hollis (2011), “toda crise, mesmo a mais devastadora, carrega em si uma convocação à transformação”.
A meia-idade é terreno fértil para essa convocação. Segundo Jung, é nesse período que somos impelidos a buscar o que nos foi deixado de lado na construção da persona: “O encontro com o si-mesmo é muitas vezes experimentado como uma derrota para o ego” (Jung, 2013, p. 357). Essa derrota, porém, não é destrutiva — é uma rendição necessária ao daimon interior, que exige expressão e autenticidade. Como observa James Hillman, “o daimon é a imagem do destino pessoal, o portador do nosso sentido mais profundo” (Hillman, 1996, p. 41).
William Bridges, renomado consultor americano que trouxe grande contribuição para o gerenciamento da transição para indivíduos e empresas nas últimas décadas, contribui com uma compreensão fenomenológica do processo de transição, descrevendo-o como um ciclo composto de fim, zona neutra e novo começo. Ele enfatiza que a zona neutra — essa fase de vazio e ambiguidade — é “o local onde a criatividade e o renascimento se tornam possíveis” (Bridges, 1999, p. 135). É nesse espaço liminar que os antigos referenciais se dissolvem e algo novo, ainda indefinido, começa a se formar. Tal como nas fases da alquimia, é no nigredo que se inicia o processo de transformação.
A escuta do daimon — que Jung via como “uma força interior compulsiva” (apud Staub, 1981, p. 121) — exige coragem.
Não se trata de uma escolha racional, mas de um assentimento existencial àquilo que nos move de forma inegociável. Hollis (2011) afirma: “Podemos escolher uma carreira, mas não escolhemos uma vocação. A vocação nos escolhe.” Essa dimensão vocacional, que se manifesta muitas vezes por meio de sintomas, inquietações ou súbitas inspirações, remete a algo maior do que o ego: trata-se de um chamado à autenticidade e à integração.
Neste contexto, a mudança de carreira torna-se um rito de passagem contemporâneo, em que o trabalho deixa de ser apenas instrumento de sobrevivência e passa a ser expressão simbólica do self em ação no mundo.
Como escreve Jung em Memórias, Sonhos e Reflexões: “Todos os meus escritos são, de certa forma, tarefas que me foram impostas de dentro. Nasceram sob a pressão de um destino. O que escrevi transbordou da minha interioridade. Cedi a palavra ao espírito que me agitava.” (Jung, 1987, p. 194-195). Essa integração entre vida interior e realização exterior é o verdadeiro sinal da individuação em curso.
Por fim, ao acolhermos a possibilidade de reescrever o destino — não como um ato voluntarista, mas como escuta ativa do que nos habita — nos aproximamos da inteireza. Como nos lembra Nietzsche, “torne-se quem tu é”. Quando a vida profissional se torna reflexo da alma, a transição já não é apenas uma mudança de rumo, mas uma reconciliação com aquilo que sempre nos habitou — silenciosamente — à espera de ser vivido.
Maria Helena Soares Marinho – Analista em formação IJEP
Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
BRIDGES, William. Managing Transitions: Making the Most of Change. 2. ed. Cambridge, MA: Da Capo Press, 1999.
HILLMAN, James. O Código do Ser: Um guia arquetípico para o destino e o caráter. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.
HOLLIS, James. A passagem do meio. São Paulo: Paulus, 2011.
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. ed. Nova Fronteira, 1987.
JUNG, Carl Gustav. A dinâmica do inconsciente. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. (Obras completas de C. G. Jung, v. 8).
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. (Obras completas de C. G. Jung, v. 16).
SILVEIRA, Nise da. Imagens do Inconsciente. 6. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997.
STAUB DE ÁVILA, Regina. A Descoberta do Si-Mesmo na Psicologia de C.G. Jung. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1981.
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