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Reimaginando episódio depressivo – psicopatologia afeto e sistema de valores II

​​​​​​​Poderia o transtorno depressivo ser reimaginado como a dominação unilateral de um conjunto de sistema de valores que, em cisão e reação de oposição e embate, produzem o que surge como sintomas? 
Através da narrativa Junguiana a noção de doença mental (psicopatologia) pode ser revista como o momento em que se configura a dominação unilateral de um padrão arquetípico que, em complexos, torna-se governo interior tirânico e com grande intensidade se coloca em oposição e embate contra manifestações diversas. Os complexos dominantes viveriam os elementos em cisão como inimigos a serem combatidos, o que constelaria todos os mecanismos automáticos de defesa e fariam com que estas manifestações surgissem como sintomas. 
Pode-se partir da descrição do episódio depressivo no X Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (CID-10 OMS , 1993) em que este é apresentado como:
“Em episódios depressivos típicos, (…) o indivíduo usual¬mente sofre de humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida levando a uma fatigabilidade aumentada e atividade diminuída. Cansaço marcante após esforços apenas leves é comum (…)” (CID-10 OMS, 1993, p.117)
Ao afirmar que se “sofre de humor deprimido perda de interesse e prazer e energia reduzida”, não está implícito um julgamento? Humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida seriam necessariamente e sempre vividos com algo que produziria sofrimento? O Poeta Fernando Pessoa na poesia intitulada “Liberdade” fala:
“Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada. (…)
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma. (…)”
(PESSOA, 1977, §195)
Neste poema falta de interesse em ler um livro, em cumprir um dever, não é descrito como sofrimento, mas como prazer e como liberdade. Ou seja, a vivência de sofrimento ou não, depende de uma interpretação do evento. O que é descrito como sintoma (perda de interesse) para ser vivido como sofrimento em uma determinada “situação de experiência” dependeria de uma interpretação. Haveria sempre um certo condicionamento psíquico que se interpõe ao imediatamente dado (JUNG, 1984, §195), pois o que apareceria na psique estaria sempre ligado a complexos. A teoria dos complexos permite ver a unidade da consciência como uma mera ilusão (JUNG, 1983, p.67) e cada complexo afetivo como uma imagem de determinada situação psíquica “dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia. ” (JUNG, 1984, §201). “Eles (os complexos) são grupos autônomos de associações, com tendência de movimento próprio, de viverem sua vida independentemente de nossa intenção. ” (JUNG, 1983, p.67).
Os complexos, com importante grau de autonomia do complexo do eu e da consciência, realizariam julgamentos seguindo sequencias associativas que se constituíram a partir de padrões arquetípicos (estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso, formas de viver, pensar e sentir), efetivando-se assim valores coletivos, transpessoais, em valores vividos singular ou particularmente em cada um, de acordo com a intensidade que o valor afeta o sujeito. Quanto mais valor, mais afeto. Este circuito de afetos julga e interpreta o “imediatamente dado”- o que parece certeza sensível – faz com que este evento seja visto e vivido como tendo determinado significado e sentido para este vivente.
Assim, humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida dependeriam de instâncias que julgam. Haveria uma perspectiva (complexo), que avalia, compara padrões (libido de parentesco ) e considera que havia mais prazer, energia antes do que agora e que isto é ruim. Não só há a comparação, como a valoração negativa para sofrimento e fadiga, enquanto que “atividade” aparece positivada – “levando a uma fatigabilidade aumentada e atividade diminuída”. Os outros sintomas, mais comuns, seguem a mesma lógica de avaliação (concentração e atenção reduzidas; autoestima e autoconfiança reduzidas; sono perturbado; apetite diminuído etc.). 
Os valores estarem em oposição não impediriam a progressão da energia psíquica caso não estivessem desagregados, ou seja, quando ter e não ter interesse estão em composição as ações na vida seguem o fluxo de acordo com as demandas do contexto presente. Num processo de progressão , valores identificados positivamente não funcionariam separados dos valorizados negativamente – “o impulso e contra impulso, o Sim e o Não, chegam a uma ação e influências reciprocas regulares. ” (JUNG, 2013, §61). No entanto, se os elementos se desagregam (ou tem ou não tem interesse) a cisão se instala e com isto o represamento da energia psíquica. Quanto mais tempo represada a energia psíquica, mais se eleva o valor das posições opostas; isto aumenta o conflito com tentativas de reprimir um dos lados. Quando um dos lados consegue suprimir o outro instala-se a dissociação (cisão). O lado dominante na consciência, embora possa ter aspecto de que está agindo por deliberação livre, estaria funcionando de forma reativa, assombrado pelos aspectos suprimidos. Por exemplo: não ter interesse deixa de acompanhar as ações interessadas e passa a funcionar como uma ameaça constante cada vez que a consciência se pergunta sobre o interesse em determinada ação. Quanto maior for a dominação imperativa de que o sujeito “tem de ter interesse” qualquer sinal de desinteresse seria rapidamente identificado como inimigo a ser combatido – isto seria valido para os demais sintomas. Uma vez constelada a ameaça a atitude preparatória e de expectativa seria automaticamente desencadeada . Com o tempo o vivente passa a ser levado a ficar cada vez mais atento aos traços de desinteresse do que ao que teria interesse. A regressão ativaria todas as associações ligadas aos traços de desinteresse incluindo as que a consciência não tem acesso (inconscientes) . Isto é descrito como a necessidade de adaptação ao “mundo psíquico interior” (JUNG, 2013, §66); mas mundo interior da própria imagem (no sentido usado na narrativa junguiana), não é algo exclusivamente individual ou de uma pessoa, pois a imagem é configurada por padrões coletivos transpessoais que por terem valor social marcaram as vivencias singulares. 
Com esta configuração, eventos que fizessem surgir na psique humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida tenderiam a ser mais facilmente interpretados como ameaças ou mesmo catástrofe. O sentido de ameaça, desespero, desamparo, catástrofe estaria constelado e os mecanismos de defesa diante da interpretação do evento seriam ativados. 
Entretanto como a perspectiva que avalia “perda de interesse e prazer e energia reduzida” como necessariamente ruim ou desvalorizado não é exclusivamente pessoal, depende de valores coletivos, quanto mais forte numa cultura, sociedade ou contexto a norma ideal saudável for você tem que ter interesse e prazer, mais os sujeitos serão levados a acreditar que apenas assim terão uma vida bem-sucedida. Quanto mais se estiver sendo conduzido por critérios firmes e estáveis que interesse e prazer tem um único sentido e significado, que são necessariamente bons e, portanto, deve-se mantê-los estáveis ou ao menos não reduzi-los (só se deve aumentá-los); qualquer diminuição que acontecesse (que não for interpretada como circunstancial, efêmera e relativamente controlável) teria que instabilizar os valores que orientam a ação, ou localizar o acontecimento numa doença e preservar a forma de vida que assim valora.
A instalação do sintoma poderia estar diretamente relacionada com a intensidade com que determinados valores dominam, unilateralmente, uma sociedade, cultura, relações familiares, relações de trabalho etc. e com isto afetando o vivente . A doença, entretanto, depende do quanto o vivente está absorvido pelo meio (no caso normas ou valores sociais, coletivos), afinal “o que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações novas. ” (CANGUILHEM, 2000, p.160).
Retomando a teoria dos complexos que permite ver a unidade da consciência como uma mera ilusão pode-se reler que há um complexo bastante ativo no vivente em crise; este que ataca, critica, sistematicamente vai aos traços de lembranças do passado buscar ameaças do que deu “errado” e segue produzindo cenários de futuro onde também são identificados tudo o que poder dar “errado”. A este complexo não falta energia, prazer, animo, disposição, atenção, concentração ou memória. Ele alimenta-se sistematicamente dos elementos coletivos mais fortemente valorizados e impregnados nas relações familiares, sociais etc.
A descrição do episódio depressivo no CID X permite depreender quais os elementos normativos mais valorizados (coletivamente e nos sujeitos em crise) pois aparecem como os mais ameaçados pelos sintomas; estes são: prazer, energia, concentração, atenção, autoestima, autoconfiança, utilidade, não se sentir culpado, visões otimistas de futuro, ideias de auto-conservação, sono sem perturbações e um apetite estável. 
Se “o doente é doente por só poder admitir uma norma. ” (CANGUILHEM, 2000, p.149), quanto maior a cisão e a expectativa com exigência imperativa de ter que ter prazer, energia, concentração, atenção, autoestima, autoconfiança, utilidade etc, mais tudo que divergir destes elementos será vivido como ameaça desta forma de vida. Só seria tolerado o que ameaçasse estes valores quando relacionado à alguma circunstância temporária ou controlável. Não sendo o caso, só poderiam ser o resultado de uma doença, um “transtorno” ou seria necessário rever os valores saudáveis idealizados. 
Contextualizando e Reimaginando a “depressão”, ela fala de uma forma de vida que valoriza e tenta manter sob controle o que coloca como ideal de saúde os elementos citados acima . Quanto mais absorvido por estes ideais como imperativos e menor a distância destas normas ideais o sujeito tiver, mais o complexo dominante em cisão entraria em embate. Cada vez que o sujeito sinta algo como desprazer, falta de energia etc. a cisão fará que isto seja vivido como ameaça aos valores e ideais “saudáveis” configurando-os como sintomas. Diante da ameaça todos os sistemas de defesa seriam automaticamente acionados intensificando o embate e com isto o que é descrito como episódio depressivo.
Através da OMS a psique configuraria o “episódio depressivo” no CID X para poder realizar o seu trabalho de patologizar. A psique cria patologia, para poder localizar “quais ideias, comportamentos, e fantasias estão errados (…) fantasia é a primeira realidade da psicopatologia” (HILLMAN, 2010, p.172). O natural tende a ser idealizado e é utilizado moralmente naquilo que desvie das leis gerais, padrões idealizados morais ou imorais. Pode-se entender o que é chamado saudável ou doente depende de normas que se sustentam em alguns conceitos que podem ser estéticos como harmonia ou equilíbrio ou conceitos morais como controle, regulação, contenção e mesmo políticos como ordem, hierarquia etc. Assim saúde ou doença seriam efeitos de determinações valorativas vividas, individual e coletivamente, como naturais, biológicas e literais. A psique trabalharia através das configurações dissoluções de vasos ou constelações onde alguns temas podem ser revistos. 
A teoria da progressão e regressão da libido (energia psíquica) descrito na narrativa Junguiana (JUNG 2013, §60 a 76) pode fazer refletir que, se por um lado a cisão, dissociação e unilateralidade dominante em embate configuram o que surge como sintoma, a regressão da energia psíquica faria com que aumentasse o valor dos conteúdos excluídos no processo, ou seja, os elementos inconscientes adquiririam maior influência, ultrapassariam o limiar e exerçam maior força sobre a consciência. 
Na clínica é frequente observar que os conteúdos sintomáticos como humor deprimido (tristeza), falta de interesse e prazer e energia reduzida passam a ter muito mais importância e valor que outros conteúdos. É como se algo no sujeito ficasse em prontidão constante esperando que um destes elementos aparecessem. Por vezes este complexo fica buscando traços destes elementos ameaçadores nos diversos contextos e mesmo quando não surgem, tem a impressão de que algo está errado; que será atacado por um evento destes ou mesmo que está acontecendo o ataque, mas não se conseguiu percebe-lo direito. Basta que um traço semelhante seja identificado numa conversa, num gesto, tom de voz ou olhar para que tudo se confirme. Os períodos em que os conteúdos sintomáticos não são reconhecidos perdem o valor; um período “melhor” não significa nada, porque em seguida voltou-se a sentir a mesma ameaça. Só conta ou só tem valor o período ameaçado. 
Entretanto, se for possível ultrapassar julgamentos fundados no senso comum, em preconceitos ou aparências superficiais, pode-se vislumbrar nos conteúdos intensificados pelo processo de regressão não só restos incompatíveis e por isso rejeitados da vida cotidiana ou tendência condenáveis do homem animalesco, mas também “(…) os germes de novas possibilidade de vida (…) possibilidade de uma renovação existencial” (JUNG 2013, §63). 
Há autores como Safatle (SAFATLE, 2009) que fazem uma crítica, baseada em mudanças sócio-históricas, indicando que a sociedade ocidental teria passando de uma sociedade repressiva para uma sociedade do consumo. Se até a primeira metade do século XX ainda havia muito valor no ideário do mundo capitalista do trabalho ligado à ética protestante levando ao ascetismo e a acumulação, o mundo do consumo conduziria a um imperativo que diz apenas um puro: “não ceda em seu desejo”, sem nenhum conteúdo normativo; ou seja, sem dizer como nem qual o objeto adequado. Os mecanismos de repressão ou refrear teriam sido substituídos pelos de cobrança de gratificação irrestrita. Se antes os sujeitos eram conduzidos a conter, reprimir ou administrar as formas de satisfação, passa-se a uma sociedade da insatisfação administrada onde, por mais e quanto mais se tenha ou troque, mais se fixa o permanente sentimento de insatisfação. Limitar, refrear, tomar distância, alienar perderam o lugar de valor. Instala-se, hegemonicamente, um estilo de consciência onde estes movimentos não devem ocupar lugar valorado ou fazer parte do horizonte ético de realização. Esta configuração sociocultural pode ajudar a compreender porque a mudança da predominância de sintomas de histéricos, que pressupunham instâncias repressoras, para os transtornos de ansiedade e de humor. Isto pode ser referendado pelo estudo epidemiológico dos transtornos mentais realizado entre 2005 e 2007 em São Paulo – Megacity – que aponta os transtornos de ansiedade com os de maior incidência (19,9%), seguido dos transtornos de humor (11%) e entre estes o transtorno depressivo maior (9,4%) e a Distimia (1,3%) (ANDRADE L H, 2012).
Tomando a categoria psicopatológica “episódio depressivo” como resistência a norma fundamentalista dominante unilateral na sociedade de consumo, ela pode atualizar os fracassos anteriores e transformá-los em germes de novas possibilidade de vida e renovação existencial. Assim, transformar o que aparece como sofrimento em valor de vida que resiste a dominação do padrão de cobrança imperativa de “não ceder em seu desejo”, de gratificação irrestrita, com seus correlatos – prazer, energia, concentração, atenção, autoestima, autoconfiança, utilidade, não se sentir culpado, visões otimistas de futuro, ideias de auto conservação, etc. E com esta leitura, poder viver outros estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso, formas de viver, pensar e sentir onde possa ter valor limitação, desprazer, redução de energia, sem que isto seja necessariamente vivido como ameaça ou catástrofe. Abrir possibilidades de outros sentidos e significados para estas vivencias. Poder valorizar não apenas autoconfiança, auto estima e ideias de auto conservação ligados a noção de individuo como substância de uma unidade autônoma, independente, autodeterminada; que deveria se guiar exclusivamente por padrões de unidade, identidade, espontaneidade e autenticidade expressiva, mas poder valorar positivamente confiança, estima e conservação de outros, muitos outros (externos e internos); poder ter lugar na vida para o inútil; a culpa poder falar da onipotência do complexo do ego e da sua identificação como poder tirânico com traços de uma supra humanidade demoníaca. A perda do prazer pode propor um corte numa máxima hedonista ou mesmo questionar o prazer que esta forma de vida tem em massacrar, com ataques, tudo que se coloca com limites, na experiência. Então a vida poderia se afirmar como tensão entre determinação e indeterminação, como devir, afinal ” (…) a transformação é expressão de vida. ” (JUNG 2013, §80). 
Fernando Pessoa em uma de suas máximas afirma: “Ter opiniões definidas e certas, instintos, paixões e carácter fixo e conhecido – tudo isto monta ao horror de tornar a nossa alma um facto, (…) viver é um doce e fluido estado de desconhecimento das coisas e de si próprio. ” (PESSOA,1996, p.208)
Referências
ANDRADE L H, WANG Y P, ANDREONI S, Silveira C M, ALEXANDRINO-SILVA C, et al. “Mental Disorders in Megacities: Findings from the São Paulo Megacity Mental Health Survey,.” PLoS ONE 14 de fevereiro de 2012. .
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
CID-10 OMS . Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da Organização Mundial da Saúde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 2010.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.
-. Energia Psíquica. Vol. 8/1. Petrópolis: Vozes, 2013.
-. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.
-. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.
NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Vol. I. Campinas: Unicamp, 1996.
-. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S A, 1977.
SAFATLE, Vladimir. “Um supereu para a sociedade de consumo: Sobre a instrumentalização de fantasmas como modo de socialização.” 2009. 19 de setembro de 2016. .

SALVADOR, Ajax Perez. PSICOPATOLOGIA AFETO E SISTEMA DE VALORES.

 Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa – IJEP. São Paulo, 17 de 10 de 2016.

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