A antropologia franciscana nos traz uma visão de homem integral, não negligenciando sua pertença à Natureza, sua espiritualidade, sua condição de irmão de todos os seres, seu dever de cuidar de tudo que foi legado ao homem por sua condição de ser consciente, portanto, responsável por tudo que se apresenta sem condição de discernimento e de autocuidado.
No Renascimento o homem se colocou no centro do mundo, acima de toda natureza, acreditando poder tirar dela todo proveito porque ela lhe “foi dada”. Sem a consciência da limitação dos recursos terrenos, sem um olhar aos seres irracionais que partilham conosco o medo, a dor, o abandono e o sofrimento. Se colocou como “dono” da terra.
Até hoje se mata e morre pela terra. Usurpam as áreas protegidas, avançam sobre biossistemas frágeis, invadem reservas, e, em nenhum momento questionam as consequências. Cada um luta pelo que quer, por aquilo que acredita poder usurpar, tomar, arrancar. Esta condição tanto vale para o indivíduo como para os governos. Guerras e lutas se justificam pela tomada de terras.
Mas e Gaia? Esse ser tão poderoso e ao mesmo tempo tão frágil, que tanto nos proporciona e não é respeitado. Há um limite para que a Terra supra as necessidades humanas. De há muito já extrapolamos o número de humanos que os recursos possam dar conta. Perdemos a medida. Membros de crenças fundamentalistas acreditam, cada qual, que devem aumentar o número de descendentes para serem maioria e colocar toda humanidade sob sua doutrina, sua crença.
Século XXI e acreditamos em liberdade. Utopia. Somos manipulados todo o tempo, por um sem número de interesses que não os nossos. Viver o Mito do Significado fica cada vez mais distante. Querem-nos massa e na massa não há individuação.
Francisco de Assis foi um raro indivíduo que se entregou ao Self, contrariando toda expectativa familiar e social, até mesmo pessoal. Nasceu em 1182, em Assis, região da Úmbria, se tornara um “Jovem de “bem viver” , família abastada, mãe aristocrata, pai que projetava neste único filho sonhos inalcançáveis para ele mesmo que não nascera nem rico, nem aristocrata, fazia de tudo para que o filho alçasse voos dentro da sociedade burguesa que se estabelecia.
Francisco parte para a guerra como um príncipe, seu pai queria que sua armadura e seu cavalo resplandecessem e todos pudessem ver sua condição diferenciada, como se fora um príncipe. Francisco já experienciara a guerra e a prisão anteriormente, desta vez volta da guerra, fugido, doente, mais da alma de que do corpo. Sofre profundas depressões, tudo que vivera até então perdeu o brilho e sentido. Seus concidadãos o consideram um covarde.
Em Espoleto, Francisco tivera um sonho que o tocara profundamente. Sabia que já não era o mesmo, aquele sonho o transformara de maneira profunda, sua alma fora tocada pelo “Totalmente Outro” como dizia Jung. Sabia que o jovem leve, alegre e irresponsável já não existia mais. Ouvira o chamado, e mesmo sem saber exatamente o que dele era esperado, abandona a guerra e volta para casa. No sonho ele ouve:
“- Francisco, é melhor servir o Soberano ou o servo?
– Ó senhor, ao Soberano, é claro.
– Então por que você está tentando transformar seu soberano em um servo?
– Senhor, que queres que eu faça?
– Vá para casa, Francisco, e pense a respeito de sua primeira visão. Você viu somente as aparências e não o coração da glória e da fama. Você está tentando fazer sua visão servir a seu próprio e impaciente desejo por Nobreza.” (Murray Bodo; Francisco A Caminhada e o sonho )
Assim como ocorreu com Budha a dor, o sofrimento, as mortes, a prisão, as guerras dilaceraram o jovem Francisco. Mergulhou profundamente em seu inconsciente, assim como Jung pós infarto. E, assim como este, sofreu muito ao voltar à consciência.
Quando o indivíduo tem uma experiência com o Numinoso, um chamado do Self, a Imagem de Deus em nós, fica transformado, não há volta para o que fora antes, é chamado para algo que ao mesmo tempo que o significa, lhe transcende.
De volta a casa por muito tempo ficara calado, caminhando a ermo por Assis. Evitava todas as pessoas. Fora “chamado” a igrejinha de São Damião que estava abandonada, decrépita. Olhou para o crucifixo pendido no altar e falou:
“ – Senhor Jesus, que queres que eu faça? Todos os dias questiono meu sonho de Espoleto e me pergunto se realmente eras Tu quem falava comigo ou se era apenas minha excitação pelo meu vindouro batismo de fogo como Cavaleiro. Senhor, meus sonhos me afligem tanto! O que eles significam? Por que me ocorrem tais sonhos e vozes? Que tipo de homem sou eu, Senhor?” (idem).
Sua sinceridade provinha do mais profundo do Si-mesmo, os olhos do Cristo se tornaram vivo e do crucifico surge a voz:
“- Francisco, vá agora e restaure minha igreja que, como você vê, está ruindo.” (idem)
A humildade de Francisco toma ao pé da letra as ordens de Jesus e começa a ajuntar pedras e a reconstruir a pequena igrejinha. Seu ego não abarcara a profundidade da solicitação, mas o Self a compreendera perfeitamente e a mudança profunda ocorrida no POVERELLO arrasta muitos jovens ao seu encontro.
A transformação de Francesco, do jovem inconsequente para o poverello de Deus, atraia aqueles que viam ali uma manifestação do Sagrado. Como diz Leonardo Boff, a mística transforma e contagia. Atrai aqueles que percebem uma manifestação numinosa, porque o indivíduo que os atrai é possuidor do carisma.
Os jovens franciscanos trabalhavam duro nos campos atrás do sustento, restauravam igrejinhas pela região, cuidavam dos pobres, leprosos e deficientes. Viviam uma pobreza extrema, desapego total dos desejos humanos, quando apenas a vontade maior (do Self, da imago dei) dirigia seus passos e suas atitudes.
A cada dia, esta numinosidade de Francisco, atraia mais indivíduos “tomados” pelo seu carisma. Claro, não há luz sem sombra e os indivíduos de Assis reclamavam seus filhos abandonando a burguesia para seguir Francisco. A oposição foi muito forte, queimaram lhes a Porciúncula, mas esta violência só fortalecera o propósito da irmandade.
Francisco aceitara incondicionalmente seu chamado. Cantava e dançava pelas ruas de Assis, seus irmãos eram felizes. Servir tornara-lhes puros e felizes.
“Francisco gostava muito de cantar. Isto libertava seu espírito e transformava a voz humana, tantas vezes um órgão de egoísmo e pecado, em um instrumento de celebração.” (idem)
Francisco chamava a pobreza de Irmã, assim como todos os seres e situações. Até a morte era sua irmã, não a temia. Quando você vive o chamado do Self, a eternidade é uma certeza, pois o inconsciente vive no continuum espaço tempo relativos. O ego teme a finitude porque está preso a condição de espaço tempo absolutos.
Os franciscanos tinham amor por todos os seres, reverenciavam a Creação. Desapegados dos desejos podiam viver a leveza da plenitude da alma. Sim, servir para eles era uma alegria, servindo ao irmão, serviam a Deus. Aprenderam com os pobres o frio, a fome, a falta de um teto, certamente por isso sabiam o valor da partilha.
E nós? Neste mês de maio de 2020, com uma pandemia avassaladora impondo o medo, a insegurança, a fome, a dor, o sofrimento e a insegurança. O que virá?
Como e onde partilhamos o que temos? Qual o nosso chamado? O quê de Francisco há em nós que nos faz olhar o outro como irmão?
“Senhor, fazei-me um instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu semeie o amor.
Onde houver ofensa, o perdão;
Onde houver dúvida, a fé;
Onde houver desespero, esperança;
Onde houver trevas, luz;
E onde houver tristeza, alegria.
Ó Divino Mestre,
Não me deixes tanto buscar ser consolado
Que consolar;
Ser compreendido que compreender;
Ser amado que amar.
Pois é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se nasce para a vida eterna.”
Dra E. Simone D. Magaldi
Pedagoga, filósofa, mestre e doutora em CRE.
Diretora do IJEP