Lobisomens existem?
Todo mundo já tem uma resposta para essa pergunta, em livros, em filmes e em seriados: é claro que sim!
Os lobisomens existem e como veremos mais à frente, psiquiatria e medicina também o confirmam.
Então, se para esta pergunta, já achamos a resposta, imediatamente outra dúvida surge à mente: “Por onde será que andam os lobisomens na lua nova?”
Para responder a esta indagação e entender a relevância dessa mitologia para os dias atuais, proponho mergulhar na história do nosso relacionamento com esses seres mágicos – e empreguei o termo “mágico” de propósito, mesmo se parece contraditório, pois magia mais se entende como sendo luz, em oposição à sombra sanguinária que representam esses monstros, mas no meu dicionário a mais correta definição de magia é “apelar as forças do invisível para obter-se resultado visível”. E, novamente lembrando Jung e a prevalência dos “para quê” sobre os “porquês”, buscando entender qual mensagem essa imagem pode nos entregar, pois é fácil constatar que referências a esses monstros são mais e mais comuns nos dias de hoje, especialmente para mentes jovens, haja vista o sucesso da franquia “Moonlight” e outras frequentes referências nas artes e culturas recentes.
Há um fundamento de realidade em toda mitologia e somos obrigados a aceitar que existe uma mitologia dos lobisomens, mais conhecida do grande público que a mitologia grega. Com certeza, em todos os lugares do mundo, todos sabem que homens mordidos por monstros se transformam em lobos sanguinários e famintos, sempre que a lua cheia aparece no céu, para desaparecerem logo em seguida; que somente as balas de pratas podem vencê-los e que seus piores inimigos são os vampiros.
Não é fácil identificar como, onde, e nem quando nasceu a lenda do lobisomem, mas parece tão antiga quanto a humanidade. A transformação de homem em lobo já aparece na epopeia de Gilgamesh, um dos mais antigos escritos conhecidos, datado por volta do segundo milênio antes de Cristo e que conta, em diversos poemas, a lenda deste antigo herói da mitologia da Mesopotâmia que certamente foi rei da suméria. Gilgamesh que está representado numa escultura que se encontra no museu do Louvre como o mestre dos animais, recusou os avanços sexuais da deusa Ishtar-Inannaporquê ela havia usado de magia no passado para transformar um antigo amor em lobo.
Outra referência precoce aparece na mitologia grega quando Zeus transforma em lobo Lycaon, filho de Pelasgo e de Melibea, por ter-lhe servido carne humana como alimento em um banquete de boas-vindas à cidade de Arcádia na qual reinava, infringindo assim uma lei divina que não permitia qualquer tipo de sacrifício humano. Certamente, ali foi plantada a primeira semente de que chamamos de licantropia, nome dado à transformação do homem em lobo, pois há uma grande quantidade de filmes, livros e séries que ainda se referem aos Lobisomens como “Lycans”.
Na mitologia nórdica, lobisomens aparecem também na lenda dos Volsungs, quando o rei Sigmund descobre peles de lobos mágicas que, quando vestidas, transformam quem as carrega em monstros sanguinários que não conseguem parar de matar nem se despir das peles durante 10 dias.
Outra referência interessante se encontra nas lendas do Cáucaso, onde de acordo com o folclore local, o povo da Chechênia teria nascido de uma fêmea de lobo cinzenta, sendo a linha mestre no mito nacional, no qual o lobo solitário simboliza força, independência e liberdade, havendo ali um provérbio sobre os clãs: “Livres e igualitários como lobos”. Mesmo não se tratando a priori de história de lobisomem, é uma dentre outras referências que passarão a fazer mais sentido à medida do desenvolvimento do nosso argumento.
Na Alemanha e na França, nos séculos 16 e 17, a ficção começa a encontrar com a realidade e vários relatos muito similares aparecem, contando histórias de assassinatos selvagens com corpo mutilados, nas quais os suspeitos declararam que se transformavam em lobo para atacar suas vítimas após pactos feitos com o Diabo ou com espíritos para conseguir força e prazeres materiais.
Alguns casos de “serial killers” foram atribuídos a supostos lobisomens devido ao fato que muitos crimes violentos eram seguidos de canibalismo. A licantropia nesta época reunia todas as características para explicar tais fenômenos, incompreensível para as mentes comuns, sendo que ainda não existia a psicologia para trazer uma visão mais científica, como foi o caso de Gilles Garnier, o “lobisomem de Dole”, um eremita que foi preso após a descoberta de corpos de crianças com parte da carne de coxa e braços devoradas. Trata-se do único caso oficial de licantropia recenseado nos anais da polícia francesa.
É certamente nesta época, por volta de 1570, que começa a aparecer a relação da transformação do homem em lobo com a lua cheia. Na Europa do norte não existía luz elétrica nem calefação, e, como é bem conhecido, não se fazia muito uso de banho. Portanto, faz muito sentido imaginar que um eremita se cobrisse de peles de animais para se aquecer no inverno e que, faminto e malcheiroso, se sentia obrigado a pedir e até agredir pessoas por comida, aparecendo como homem-animal violento na luz da lua cheia, único momento no qual de noite haveria luz para poder enxergar o agressor.
Outros fenômenos físicos podem ter alimentado a crença na existência dos lobisomens, como a Hipertricose, doença causada por mutação genética, também conhecida popularmente como “síndrome do lobisomem” e que tem por principal sintoma o crescimento de pelos em toda a superfície do corpo. É provável que pessoas acometidas por essa condição tenham sido confundidas com animais, tanto quanto o era em tempos remotos quem sofria de Síndrome de Down.
A psiquiatria, por sua vez, também identifica como Licantropia clínica, dentro das zoopatologias, a condição em que um paciente acredita se transformar em lobo. Tanto é que a literatura atesta essa afirmação quando Stephen King o famoso escritor norte-americano disse: “Monsters are real, ghosts are real too. They live inside us, and sometimes, they win”, (Monstros são reais, fantasmas são reais também. Eles vivem dentro da gente, e, as vezes eles vencem),
O próprio Jung indaga:
“O pensamento é real? Provavelmente” e esclarece: “O Pensamento existiu e existe mesmo que não se refira a uma realidade palpável e produz inclusive efeitos exteriores.” (JUNG, 2019, §744).
Portanto, se após assistir a um filme, você não consegue dormir tranquilo sem antes verificar que todas as janelas e portas estão perfeitamente trancadas é porque continua vivenciando o medo que causou o monstro, criando o efeito da insegurança que somente passa se houver atitude externa, material, de tornar a sua casa segura. O efeito do medo é real e, portanto, a causa deste medo também, o monstro, é real. Por mais que se trate de uma realidade psíquica, essa situação retrata uma necessidade real, verdadeira, de quem a vive.
A respeito do Lobisomem, especificamente, Jung escreveu muito pouco e somente deixou algumas referências em que os equipara a bruxas e outras figuras folclóricas tratando-as como símbolos de projeções arquetípicas, ou seja, relativas a imagens primordiais, a referências universais, comportamentos, desejos, medos e instintos, compartilhados por toda a espécie humana e que constroem o que ele chamou “inconsciente coletivo”.
No entanto, a licantropia, como o dissemos anteriormente, pela psiquiatria, faz parte de um leque mais abrangente de zoopatologias, que traduzem a ilusão de transformar-se em animal. E este comportamento é encontrado em várias culturas, de parte e outra do globo, como o observou Mircea Eliade. É o boto que seduz as meninas nas lendas amazónicas, transformações nas lendas dos povos nativos das Américas, narrativas xamânicas ou mesmo os druidas celtas que tomavam formas de bichos para poder aproveitar suas forças vitais, “homens gatos”, na novela “SleepWalkers” (sonâmbulos) de Stephen King ou no filme cult de 1982 “Cat People” (A marca da pantera) do diretor Paul Shrader, em que os instintos sexuais levam uma mulher a se transformar em uma monstruosa onça parda, igualmente a Zeus que tomou forma de animal para poder conquistar objetos de paixão.
Podemos, portanto, considerar este fenômeno como arquetípico, pois é atemporal, transcultural e ligado a instintos e conceitos primordiais dos homens.
Com esta percepção, relembramos imediatamente Jung quando disse em Psicologia e Religião: “É surpreendente a transformação que se opera no caráter de um homem quando nele irrompem as forças coletivas. Um homem afável pode tornar-se um louco varrido ou uma fera selvagem” (Jung, 2019_1 – §25)
“Na realidade basta uma neurose para desencadear uma força impossível de controlar por meios racionais” (Jung, 2019_1- §26)
Se estivéssemos falando de licantropia clínica, de distúrbios mentais, estaríamos conseguindo, agora, enquadrar o mistério dos lobisomens na teoria da psicologia analítica e aproximá-lo a um “complexo”, este aglomerado de energias afetivas em volta de um núcleo arquetípico, que pode chegar a se sobrepor ao ego, tomar conta da atitude da consciência, e levar a pessoa a se tonar uma forma de encarnação do mal. No entanto, estes casos são extremamente raros e esse tipo de entendimento ja é bastante conhecido quando se trata de serial killers e atos de loucura ou crimes ligados a episódios de esquizofrenia.
De fato, o lobisomem como retratado em filmes não existe, até que se prove o contrário, mas a lenda ainda está presente e a mitologia até se mantém viva.
Em seu livro “The nature of the beast”, Carys Crossen conta que o lobisomem sempre foi uma metáfora para as pulsões sombrias da humanidade em direção à violência e, mais recentemente, para as dificuldades dos adolescentes em lidar com os instintos. Isso vai muito de encontro com os pensamentos de Jung como ele ilustra em Mysterium Conuinctionis (§269 e §279) que a função psicológica mais inconsciente, mais sombria costuma aparecer na mitologia na forma de grandes animais com o leviatã, a baleia, o dragão e o lobo.
Crossen também complementa que dos anos 70 até hoje, a mitologia dos lobisomens vem se alterando de uma forma constante. Inicialmente, a vítima se transformava em lobo, o animal; depois apareceu se transformando em homem-lobo somente uma vez e morria assim, como exposto no filme “Um lobisomem americano em Londres”; posteriormente, começou a viver histórias onde ia se transformando em monstro e voltava à forma humana, ciclicamente, de acordo com o ciclo da lua. Atualmente, em literatura e seriados contemporâneos, já nem aparece mais na forma do lobo, mas somente tem sua força interna como combustível de violência e motivo de conexão com a natureza, como no seriado canadense Bitten, de 2014.
Podemos então pensar que se a mitologia vai evoluindo ao longo do tempo, porém sem se afastar completamente da história original, mas mantendo uma atração popular suficiente para que se invista nela imensos volumes de dinheiro, é porque ela ainda é necessária para a projeção dos mesmos conteúdos arquetípicos, das mesmas necessidades e medos ancestrais para a gerações mais novas.
Ou seja, o lobisomem nos dias de hoje continua sendo uma realidade psíquica que precisa se expressar por meio das várias narrativas e ilustrações que encontramos principalmente nas telas de cinema e de televisão.
Para podemos entender um pouco mais sobre essa necessidade ainda tão real e da relevância que tem para as civilizações atuais, precisamos focar no que se mantém fixo nas lendas através dos tempos.
O que chama imediatamente atenção é que o lobisomem é a expressão do mal que tomou conta do homem de bem. E recordando André Malreaux quando disse que nas guerras os homens dão aulas ao inferno, basta observar passivamente o mundo como ele se apresenta para ter certeza de que se trata de uma realidade. Às vezes, o mal toma conta.
A primeira lição aparece com a metáfora da bala de prata que é uma solução mágica para resolver de uma vez por todas um problema maior que todo entendimento racional. Um único tiro certeiro acaba para sempre com a expressão do mal. Porém essa solução não é desprovida de consequência e tem um alto preço a pagar. Matar o lobisomem tanto quanto matar Mister Hyde significa também matar o doutor Jekyll, o homem que ele era antes, o homem que ele ainda é quando entra a lua minguante.
John Sanford nos lembra em “Mal, o lado sombrio da realidade”, que o mal é necessário pois quando nos confrontamos com ele, de alguma forma sofremos e em consequência incentiva a ativação a função sentimento, sem a qual não poderíamos ser verdadeiramente humanos. Eliminar o mal também é eliminar o humano na gente.
Outro aspecto bem interessante e que merece destaque, é que nas várias representações de lobisomem é extremamente raro ver transformação de mulher em lobo. Se há vários exemplos de transformações de mulheres em outros animais, raramente aparece uma “lóbis-mulher”. E é mais estranho ainda quando lembramos que, na maioria das fantasias, as figuras de lobos são em geral de fêmeas de lobo cinzento ou são animais acompanhando bruxas ou outras figuras femininas. A analista junguiana australiana Chantal Bourgault Du Coudray argumenta que a lua é a representação de um arquétipo feminino e que o ciclo da lua ao qual o lobisomem responde derramando sangue pode ser interpretado como um símbolo do ciclo menstrual e que a figura do lobo que toma conta do ser seria, em verdade, uma loba.
Toda transformação em lobisomem seria, portanto, o aparecimento de uma figura feminina inconsciente e, sendo que a figura principal é de um homem e que o terceiro elemento produzido pela transformação, é de fato uma loba, faz todo sentindo então pensar que o lobisomem é a expressão de uma anima, lutando para aparecer.
A lenda do Lobisomem retrataria, portanto, o combate interior entre um feminino ferido, oprimido por não se expressar, dominado por um masculino incapaz de se harmonizar com ele. Por isso, quando ganha a batalha e consegue “sair para fora”, corre, uivando para a lua, a grande mãe.
Mas talvez o elemento mais importante para os dias de hoje a aprender na mitologia do homem lobo e que certamente passa o mais despercebido, é que tudo começa por uma mordida. É o veneno, o vírus inoculado pela besta que enfiou seus dentes na carne do homem que vai, aos poucos, correndo pelo seu sangue, infectar o ser até que se torne incapaz de lutar contra, que o mal o submerge e o torne uma fera de que nenhuma razão pode dar conta.
E quando, novamente, observamos o mundo percebemos que a história é cíclica. O que uns chamam de mal e que se achava domado, de alguma forma reaparece. Em “Aspectos do drama contemporâneo” Jung nos mostra como forças negativas não assimiladas pela população reaparecem em símbolos de Deuses sombrios como Wotan. E, de fato, nos tempos de hoje, vemos bestas sanguinárias voltando a tomar conta do planeta e da humanidade que nele habita, quando voltam aparecer os monstros do nazismo, em narrativas russas e fascistas ao redor do globo, na Turquia, na Hungria e especialmente na Itália, sem esquecer obviamente no Brasil; quando a purificação étnica bate à porta da Síria e junto com a expansão territorial azeri acha justo invadir novamente a Armênia ou quando o masculino invade o feminino sem pedir licença nem consentimento.
E, é neste momento, quando somente conseguimos enxergar o mal nos olhos do outro, por mais que nada desculpe a expressão da violência, se quisermos domar a besta para sempre, devemos lembrar a origem do mal. Devemos lembrar que que tudo começou com uma ferida.
E talvez seja isso a lição que vem nos ensinar o Lobisomem. Não é a besta à nossa frente que devemos abater, mas é da sua ferida invisível, histórica, inconsciente que se tornou um complexo coletivo que devemos cuidar. Uma das metáforas utilizada entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial pela propaganda nazista, para ganhar a opinião do homem de bem da Alemanha, foi da facada nas costas supostamente dada pelo povo judeu, que gangrenou até levar o partido nacional socialista alemão a tomar o poder. É a falta de cuidado, de tentativa de entendimento das circunstâncias socioeconômicas que levaram à ditadura de Mussolini na Itália que permitiram a volta do fascismo na pessoa de Giorgia Meloni.
Certamente, na situação completamente polarizada em que se encontra o Brasil, onde pelos olhos da metade do País, a outra parte representa uma encarnação do mal a ser eliminada, havemos de lembrar que não há solução mágica. Se no cenário político existem duas feras a serem destruídas, no ponto de vista de cada parte envolvida, e porque há, na base, duas feridas coletivas, sejam elas consequência da mordida da fome ou da mordida da insegurança, que cresceram na população até que o monstro do medo tomasse conta das consciências. E que o primeiro que atirar no outro qualquer bala de prata, também matará a nossa humanidade.
E então, sei que querem perguntar, por onde anda o lobisomem na lua nova?
A resposta é simples: dentro da gente.
Membro Analista em formação: Sebastien Baudry
Analista didata: Maria Cristina Guarnieri.
Referencias:
JUNG, Carl Gustav. Mysterium Coniunctionis. OC. 14/1. Petrópolis: Vozes, 2011.
_______________. A Natureza da Psique. OC. 7/2. Petrópolis: Vozes, 2019.
_______________. Psicologia e Religião. OC. 11/1. Petrópolis: Vozes, 2019_1.
D’ARBOIS DE JUBAINVILLE, H. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. São Paulo: Madras, 2003.
ELIADE, MIRCEA, Ritos e Símbolos de Iniciação, Birth and Rebirth. Londres: Harvill Press,1958
CROSSEN, Carys . The nature of the beast, Transformations of the Werewolf from the 1970s to the Twenty-First Century. Cardiff, País de Galles: University of Walles Press, 2019
SANFORD, John A. Mal o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 2019.
CHANTAL BOURGAULT DU COUDRAY (2003) The Cycle of the Werewolf: Romantic Ecologies of Selfhood in Popular Fantasy, Australian Feminist Studies, 18:40, 57-72, DOI: 10.1080/0816464022000056376