Me levanto sobre o sacrifício de um milhão de mulheres que vieram antes e penso o que é que eu faço para tornar essa montanha mais alta para que as mulheres que vierem depois de mim possam ver além.
(Legado – Poema de Rupi Kaur)
Resumo: Nesse poema, a poeta Rupi Kaur nos convida a refletir sobre a responsabilidade de honrar e perpetuar a luta das gerações passadas para que possamos contribuir com a evolução das futuras gerações de mulheres. Através dele proponho refletirmos o processo da individuação feminina de forma não apenas pessoal, mas também em seu caráter coletivo e transformador.
Cada mulher que se conhece, se tornando aquilo que verdadeiramente é, com toda a sua força, sensibilidade e potência, amplia o campo psíquico do feminino arquetípico.
Segundo Jung (2013), “a individuação é a realização daquilo que é originalmente dado como totalidade, mas que só pode tornar-se consciente através do processo vital.”
O processo de individuação é a atividade de realização da nossa verdadeira personalidade, na busca pela sua integralidade, pois o sentido onde caminha a nossa existência é ser total e integral. É “tornar-se si-mesmo” ou “realizar-se do si-mesmo” (Jung, 2015). Para isso, é necessário integrar todos os nossos aspectos, até aqueles dos quais não nos orgulhamos, mas que também fazem parte de quem somos.
O início desse processo ocorre quando despimos as roupas da persona, nossa máscara social que nos protege, mas que também pode nos aprisionar. Esse desnudamento evidencia o nosso outro lado, a sombra.
É, assim, um processo dinâmico e, muitas vezes, dolorido, onde mortes simbólicas precisam ocorrer para que o nosso eu mais genuíno possa emergir.
Jung (2008) explica que “o caminho da individuação significa tornar-se um ser único, na medida que por individualidade entendemos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si mesmo.”
Embora seja a busca da nossa individualidade, em nada se confunde com egoísmo ou individualismo. Só podemos nos conhecer profundamente quando também entendemos que somos um todo. Jung (2015), segue esclarecendo que “na medida em que o indivíduo humano, como utilidade viva, é composto de fatores puramente universais, é coletivo e de modo algum oposto à coletividade.”
Assim, quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmas, através do autoconhecimento e do resgate do nosso feminino, mais ampliamos o entendimento que permite uma consciência ampliada de que afetamos o coletivo. Jung (2015) afirma que “É então que podemos constatar que o inconsciente produz conteúdos válidos, não só para o indivíduo, mas para outros: para muitos e talvez para todos“.
A individuação não é, portanto, um ato isolado. A mulher que “sobe a montanha”, que procura se conhecer, fortalecer e caminhar rumo o seu processo de individuação contribui para curar feridas ancestrais e para criar possibilidades de ser no mundo.
“Cada mulher carrega dentro de si a história de todas as mulheres. Tornar-se consciente disso é o primeiro passo da libertação.” (Nise da Silveira, 1981)
A montanha é um símbolo universal de desafio e força. O ponto de encontro entre o céu e a terra. O subir a montanha representa a jornada de autoconhecimento e evoca estabilidade e superação. Sua ascensão é representada em muitas culturas como meio de conexão com o divino e da conquista interior: foi sobre uma montanha que Moisés recebeu as leis e que Buda despertou.
Nos contos e mitos a montanha é muitas vezes usada como um símbolo para descrever os níveis de consciência que o herói ou a heroína precisa atravessar. A base representa a iniciação, o impulso no sentido de percorrer o caminho da realização do self. A parte central da montanha aparece como um estágio de amadurecimento dos aprendizados e desafios percorridos até então. Mas, também momento de provação, onde surge o cansaço, o perigo do desistir, a parte que nos testa. Já o cume representa o aprendizado consolidado, e a conquista do topo o ponto de encontro com a sabedoria e a plenitude. Na Bíblia, o cume simboliza um lugar de encontro com Deus.
Na cultura do montanhismo brasileiro temos o livro do cume que se trata de um caderno, que é guardado no cume de uma montanha para aqueles que lá chegaram possam colocar seu nome e registrar sua conquista. No baralho cigano temos também o simbolismo da montanha representando dificuldades, obstáculos e desafios, tanto externos quanto internos que exigem esforço e persistência para serem superados.
Na psicologia junguiana, a montanha pode ser compreendida como símbolo do movimento da psique em direção ao Self, o centro organizador da personalidade e expressão da nossa totalidade interior.
Segundo Jung (2008) “O Self é o arquétipo da ordem e da totalidade; é o ponto mais alto e mais profundo da psique humana.“
Cada mulher “torna a montanha mais alta” ao integrar aspectos sombrios, instintivos e reprimidos de si mesma. Ao escalar a montanha interior, entramos em contato com os nossos instintos, acolhemos nossas mágoas e raivas, curamos nossas feridas e reconhecemos nossa força. Despimos as ilusões e as exigências externas permitindo que sigamos de forma mais autêntica na nossa busca.
O feminino se ergue sobre as dores e conquistas das que vieram antes, sustentando o desejo de fortalecer as que virão. Ao honrar as mulheres que vieram antes, sem permanecer aprisionada às suas dores, a mulher contemporânea ergue novos degraus na montanha simbólica da consciência. Seu processo interior torna-se legado, herança viva para as que ainda virão.
Ao caminhar cada vez mais no seu processo de individuação, a mulher não apenas realiza uma jornada pessoal de autoconhecimento, mas contribui para a ampliação do inconsciente coletivo do feminino, elevando simbolicamente a “montanha” que sustenta essa força.
A jornada de subida, entretanto, não se faz sem o confronto com as sombras. A montanha é também símbolo de desafio, solidão e esforço interior. Assim como o herói ou a heroína dos mitos precisa enfrentar forças obscuras antes de alcançar o cume, a mulher, em seu processo de individuação, é chamada a descer às profundezas do inconsciente, revisitando feridas, memórias e complexos que moldaram o feminino ao longo da história.
O inconsciente coletivo feminino carrega, há séculos, as marcas do patriarcado, com um longo processo de silenciamento, repressão e submissão. A mulher moderna, mesmo vivendo conquistas sociais e intelectuais, ainda se confronta com as heranças emocionais das que vieram antes.
O poema de Rupi Kaur reflete justamente sobre a responsabilidade de nós mulheres em honrar e perpetuar a luta e dores das gerações passadas.
Devemos reconhecer e se sentir gratas pelo caminho percorrido pelas mulheres que vieram antes de nós, transformando gratidão em ação. Honrar a ancestralidade é mais do que reverência, é um ato ativo de continuidade que evidencia o senso de dever e de necessidade de seguir o legado. A “montanha” que a poeta quer subir simboliza a voz, atos e caminhos que todas nós devemos percorrer para o avanço dos direitos e oportunidades para as mulheres.
O desejo que as futuras gerações “vejam mais longe’’ expressa a essência do processo de individuação. Um ato contínuo que não termina com cada geração ou mulher, mas na contínua subida do coletivo.
Quando uma mulher decide curar-se, ela transforma-se numa obra de amor e compaixão, já que não se torna saudável somente a si própria, mas também a toda a sua linhagem.
BERT HELLINGER
A mulher é, por natureza, geradora de vida e essa capacidade não se limita ao ato de gerar vida de forma literal, mas também se manifesta em nossas relações, em nossos gestos de cuidado e em nossa capacidade de amar e nutrir. Geramos vida através do nosso servir, da nossa forma de ser doar e amar.
A energia feminina é integradora, sabe unir opostos, transitar entre sensibilidade e força, vulnerabilidade e coragem, intuição e ação.
Ao se autoconhecer, a mulher transcende as limitações do ego e se conecta com o “tempo sagrado”, revelando uma sabedoria profunda e uma presença que harmoniza opostos. A individuação, nesse sentido, é também, portanto, um ato coletivo, pois cada mulher que desperta, desperta junto o inconsciente das demais.
Durante séculos, fomos ensinadas pelo patriarcado a competir entre nós. No entanto, o verdadeiro feminino sabe integrar. Quando nos reunimos, curamos juntas. A força avassaladora de uma mulher vem de dentro, das profundezas do seu ser, e tem o poder de transformar tudo ao redor.
Tudo é possível para as mulheres quando encontramos a nossa voz, honramos a nossa identidade, batalhamos juntas por um objetivo comum e permanecemos de braços abertos aos céus, como a antiga Deusa Mãe, numa postura de orgulho e reconhecimento da sacralidade do feminino.
MAUREEN MURDOCK, 2022
O coletivo feminino permite o reconhecimento do nosso poder e o honrar o nosso legado resgata imagens positivas de mulheres, de nossos corpos, de nossas vontades, de nossas mães e avós, recordando-nos de que somos plenas.
“Subir a montanha” é, enfim, uma metáfora para o próprio movimento da psique rumo à individuação. O poema que inspira este artigo nos convoca a reconhecer o sacrifício ancestral não como peso, mas como base sólida sobre a qual podemos erguer uma nova consciência do feminino.
A individuação feminina é um ato de amor e responsabilidade. Amor pelas raízes que sustentam e responsabilidade pelo legado que deixamos. Cada mulher que integra seus opostos, acolhe sua sombra e se reconcilia com o instinto e o sagrado, amplia a visão da montanha para todas as outras.
Juntas nos curamos!
Itala Resende – Membro Analista em Formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Referências:
JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Vol. VII/2. Petrópolis, RJ: Vozes. 2015.
JUNG, C. G. Aion. Vol. Petrópolis, RJ: Vozes. 2008.
SILVEIRA, Nise Imagens do Inconsciente, 3ª Edição, Tipo, RJ, 1981.
MURDOCK, Maureen, A Jornada da Heroína, Sextante, RJ 2022.

