O despertador toca e lá vai você para mais um dia. Para se ambientar, você lembra que foi um sobrevivente de uma pandemia, não precisa mais de máscaras e já está no ano de 2023. Lembra, no entanto, que uma máscara especificamente você precisa – a do colaborador.
Afinal, hoje é segunda, dia de trabalhar. Ontem não foi um dia sem trabalho, você respondeu aquela mensagem de Whatsapp do chefe, deu uma conferida numa planilha ou outra e abriu a caixa de e-mails só para não se assustar amanhã.
No chuveiro, já relembra da planilha e pensa “eu não posso esquecer aquela alteração que eu pensei em fazer ontem! Tenho que fazer assim que me sentar no computador”. Então, vem o café da manhã, que tem que ser rápido, pois como é de praxe, você sempre demora para acordar na segunda-feira. Sim, a função “soneca” de todos os celulares trabalham mais nas segundas-feiras pelo mundo inteiro.
Seja presencial ou em home office, neste momento você está praticamente pronto para embarcar nas planilhas, planejamentos, atendimentos, reuniões, seja o que for. E, num piscar de olhos, você se cala com a boca de feijão.
Calar-se…
Mas esse calar-se não traz um silêncio ou um ócio. Traz as lembranças aceleradas da manhã de trabalho – do que deve ser feito ainda e do que pode ser melhorado. Nada pode ser deixado para trás. Afinal, é a sua carreira que está em jogo. Assim como o operário deve apertar todos os parafusos na fábrica e o motorista de Uber deve aceitar todas as corridas, você não pode deixar a oportunidade passar!
Curiosamente, apesar de você corresponder e responder prontamente as demandas do mundo de fora, no mundo de dentro acontecem coisas que dá vontade de ignorar: aquela ansiedade quando o despertador toca; aquela aflição quando o chefe envia mensagem ou e-mail; aquela angústia provinda dos lapsos de memória que levam você a se perguntar “eu tomei banho hoje?” “o que eu tomei de café da manhã?”. Sem falar da melancolia de domingo à noite ao som do programa Fantástico. Tanto ansiedade como aflição, angústia levam o indivíduo a um sentimento de “prisão”. Mas como poderia, se com a máscara do colaborador e seu status, seu dinheiro e suas férias você pode fazer o que quiser?
Tomemos a palavra “angústia” para análise.
A palavra “angústia” vem do latim “angustia”, que significa “estreiteza, aperto, constrangimento” e deriva de “angustus”, que significa “estreito”. O termo passou para as línguas românicas com um sentido mais abstrato, referindo-se a um sentimento de desconforto mental ou emocional. Este termo pode ser rastreado ainda mais para trás, até o proto-indo-europeu (uma língua reconstruída que é o ancestral comum de todas as línguas indo-europeias), na qual a raiz “*angh-” significa “apertado, dolorosamente apertado, angustiado”.
Enquanto o seu papel social, cheio de status, está poderoso, monetizado e relativamente livre nas férias, a sua alma está sofrendo. Este aperto é mais do que um simples aperto. É a alma se automutilando, devorando ela mesma. Assim como uma fera que depois de uma luta mortal tem sua barriga aberta e acaba comendo as próprias entranhas.
É nessa imagem que você se encontra.
Suicida e faminto à deriva oceânica do neoliberalismo, sozinho esperando o vento que te levará ao tesouro dos “1 milhão de reais aos 30 anos”. A palavra “oportunidade” que enfatizamos acima tem a ver com essa imaginação. Sua origem no latim “opportunitas“. Esta, por sua vez, vem de “obportus“, uma combinação de “ob-” que significa “em direção a” e “portus” que significa “porto”. Por sua vez, “obportus” pode ser entendido como um vento favorável levando um navio em direção ao porto. Na língua latina, a palavra “opportunitas” era usada para descrever a chegada conveniente ou a chegada no tempo certo e foi adotada nas línguas românicas, inclusive no português, para indicar uma circunstância favorável, um momento propício ou uma chance.
Ironicamente, este vento da oportunidade é mais próximo à alma do que à máscara. Existe uma relação etimológica entre “alma” e “vento” em muitas tradições culturais e linguísticas. Na tradição judaico-cristã, por exemplo, a palavra hebraica para espírito é “ruach“, que também pode significar “vento” ou “respiração”. No Novo Testamento, a palavra grega “pneuma” tem um significado semelhante. Estes termos são usados para se referir tanto ao espírito humano quanto ao Espírito Santo.
Em latim, a palavra “anima” pode significar “alma”, mas também “sopro”, “respiração” ou “vida”.
A palavra “anima” também deu origem à palavra “animal”, referindo-se a qualquer ser vivo que respira. Na filosofia grega antiga, a palavra “psyche“, que significa “alma”, também pode ser entendida como “sopro de vida”. Enquanto que na tradição hindu a palavra sânscrita “prana” refere-se à força vital universal que é inalada e exalada como a respiração – estabelecendo assim um vínculo entre a alma, o vento e a respiração. Portanto, embora as palavras “alma” e “vento” não tenham uma conexão direta etimológica em português, elas estão ligadas em várias tradições linguísticas e culturais por meio do conceito de respiração ou sopro de vida.
A máscara do colaborador não deixa de ser importante, mas usá-la a todo momento não te permite respirar em sua totalidade.
A alma precisa estar presente para qualquer oportunidade surgir. Na realidade, usar a máscara todos os dias garante uma alta produtividade, mas não garante criatividade e diversidade de vida. Neste mundo acelerado produtivista, o indivíduo torna-se disperso e dividido entre várias tarefas. Com a ânsia de manter-se atento e produtivo, o indivíduo contemporâneo sacrifica o tempo de integração dos vários aspectos da personalidade. Para Byung Chul Han, manter-se na máscara é estar de olhos bem abertos; já para sentir o vento da alma, é necessário fechar os olhos.
O indivíduo de olhos bem abertos tem a alma faminta pois o que ele ingere não a alimenta. A cada dia ele consome um excesso de positividade, de produtividade e de estimulações midiáticas dopaminérgicas. E quando ele escuta o ronco faminto da alma, o que reverbera na angústia sem igual, faz ela se calar consumindo benzodiazepínicos.
Mas a alma não adormece, ela continua em seu ato fago-suicida. Levando o indivíduo a um estado de constante cansaço e esgotamento. Han chama esse estado social de “sociedade do cansaço” ou da exaustão. O verbo “exhaurire” pode ser dividido em duas partes: 1) “ex-“, que significa “fora”, e 2) “haurire” que significa “tirar” ou “drenar”.
A alma foi drenada ou tirada de cena nessa sociedade.
Byung Chul Han defende a ideia de ócio ativo e do lazer como uma saída para esta situação, o que se aproxima de Carl Gustav Jung quando aponta: é olhando para dentro que encontraremos a verdadeira oportunidade e criatividade do viver.
Curiosamente, a palavra “lazer” é também relacionada a “oportunidade”. A palavra “lazer” em português tem suas origens na língua francesa. Ela vem da palavra “loisir“, que por sua vez vem do latim “licere“. “Licere” em latim significa “ser permitido”, o que indica uma atividade que é livre para ser realizada, sem obrigações.
No francês antigo, “loisir” também tinha o significado de “oportunidade” ou “tempo livre”, que se assemelha ao nosso uso moderno da palavra “lazer”. Com o tempo, essa palavra passou para o português como “lazer”, mantendo o sentido de tempo livre para atividades que não são trabalho ou obrigações.
Nada obstante, Byung Chul Han afirma que a própria noção de lazer está sendo corrompida, transformando-se em um meio de aumentar a produtividade em vez de ser um momento de reflexão, repouso e recuperação. Em contraste com a visão de lazer como um tempo livre e relaxante, Han propõe que estamos numa era de “trabalho de lazer” (Freizeitarbeit) em que as atividades recreativas são, frequentemente, incorporadas na lógica da maximização da produtividade e do autoaperfeiçoamento constante. Isso reflete uma sociedade em que cada momento, inclusive o lazer, é mercantilizado e torna-se outra oportunidade para “melhorar” as máscaras.
Um pouco de Foucalt e Nietzsche
Michel Foucault aponta que vivemos em uma sociedade panóptica, em que estamos constantemente sendo vigiados e, portanto, nos disciplinamos para atender às normas sociais e às expectativas de desempenho.
Este conceito se aplica também ao lazer, onde cada atividade pode ser monitorada e avaliada. Redes sociais, por exemplo, tornaram-se espaços onde as atividades de lazer são exibidas. Transformando o lazer em um ato performativo e de busca por monetização.
Assim como quando Nietzsche olha para o abismo e ele olha de volta, o usuário da rede social olha para a imagem midiática, a imagem midiática olha para ele, em um ato punitivo.
O panóptico foucaultiano foi internalizado. Este fenômeno pode levar a uma sensação de obrigação de “fazer lazer” de maneira produtiva e visível, o que, por sua vez, assassina a essência do lazer como uma oportunidade para desacelerar e desfrutar.
Percebe-se, enfim, que o contexto social contemporâneo conduz o indivíduo a um ciclo incessante de trabalho, a um ritmo cada vez mais acelerado e mecanizado. A máscara do colaborador, necessária para a adaptação ao ambiente externo, transforma-se em uma casca dura, sufocando a alma e privando-a de respirar, de viver plenamente.
Angústia e oportunidade
Nesse ínterim, a angústia, fruto de um intenso aperto interno, emerge como um alerta contínuo da necessidade de nos reconectarmos com nossa essência.
Nesse contexto, a ideia de “oportunidade”, inicialmente ligada à máscara do colaborador, deve ser ressignificada para se alinhar com a alma, trazendo à tona a respiração, o sopro de vida. É imperativo para a autonomia do indivíduo que o foco não seja apenas na produtividade, mas também no espaço para a reflexão, a criatividade e a diversidade de experiências de vida.
Por outro lado, a atual concepção de lazer é desafiada pela lógica da produtividade. Lógica essa que insidiosamente se infiltra até mesmo em nossos momentos de descanso. Ao invés de ser um momento de descompressão, o lazer torna-se outro palco para a performance e a autopromoção, uma vez que a sociedade panóptica nos impele a estar constantemente vigiados e a exibir nossas vidas nas redes sociais.
Cabe-nos questionar e refletir sobre esses modelos impostos.
A máscara do colaborador é necessária, mas não pode ser a única face da existência.
Oportunidades, em sua essência mais pura, devem estar alinhadas à alma, ao sopro de vida. O lazer precisa ser recuperado como um tempo livre, como um espaço para a reflexão e a recuperação, não apenas outra arena para a demonstração de produtividade.
Reconhecer a necessidade de harmonia, dar voz à angústia e resgatar os alimentos da alma são passos fundamentais para a construção de uma existência mais plena, autêntica e integrada.
Enfim, em vez de ser meramente um colaborador sobrevivente na deriva oceânica do neoliberalismo, é necessário reivindicar nossa condição como seres humanos cheios de multiplicidade, capazes de navegar com consciência e propósito nas águas tumultuadas do mundo contemporâneo.
Membro Analista em Formação: Leonardo Torres
Membro Analista Didata: Waldemar Magaldi
REFERÊNCIAS:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª ed. São Paulo: Vozes, 1999.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2. ed. ampliada. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. Obras Completas. Petrópolis: Vozes.
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