Este artigo tem o objetivo de propor uma conversa sobre dois movimentos: primeiro, os autorretratos tão frequentemente pintados por artistas nos séculos passados e o movimento contemporâneo das selfies, as fotos individuais tiradas e postadas com frequência nas redes sociais. Não é de hoje que o ser humano se interessa por se retratar. Divulgar sua própria imagem é algo mais novo. Mas o que há de diferente nestes dois movimentos? Como o pensamento de Jung e a psicologia analítica nos convida a compreender as diferenças destas atitudes? O que elas expressam sobre os seus respectivos tempos?
Eu ando pelo mundo prestando atenção Em cores que eu não sei o nome Cores de Almodóvar Cores de Frida Kahlo, cores
Esquadros, Adriana Calcanhoto
Resumo: Este artigo tem o objetivo de propor uma conversa sobre dois movimentos: primeiro, os autorretratos tão frequentemente pintados por artistas nos séculos passados e o movimento contemporâneo das selfies, as fotos individuais tiradas e postadas com frequência nas redes sociais. Não é de hoje que o ser humano se interessa por se retratar. Divulgar sua própria imagem é algo mais novo. Mas o que há de diferente nestes dois movimentos? Como o pensamento de Jung e a psicologia analítica nos convida a compreender as diferenças destas atitudes? O que elas expressam sobre os seus respectivos tempos?
Palavras-chave: Arte; Autorretrato; Selfie; Espírito do Tempo; Jung
Não é de hoje que o ser humano se interessa por se retratar.
Desde os áureos tempos, no universo da arte, temos um histórico de artistas de renome se representando nas telas. Dentre estes gênios, posso destacar aqui Rembrandt, Frida Kahlo, Van Gogh, Picasso, entre muitos outros. Este desejo de se retratar, com o passar dos tempos foi se moldando ao desenvolvimento tecnológico e hoje chegamos às famosas selfies – as fotos tiradas com os smartphones e postadas com frequência nas redes sociais.
Aqui, vem a pergunta: O que separa umas imagens das outras? Vamos fazer um olhar sobre como as mudanças foram acontecendo e o que isso tem a ver com a alma e como a psicologia analítica compreende estes fenômenos.
Os artistas e seus autorretratos
Para dar início a esta conversa, vale lembrar que o homem sempre utilizou a arte e as imagens como uma forma de expressão. Os artistas em suas obras representaram em suas produções cenas do cotidiano, a natureza os animais e as pessoas. No século XVII houve na Europa um crescimento na pintura de paisagens, mas ainda assim a figura humana nunca deixou de ser um objeto de desejo dos artistas, conforme Mullins (2024, p.144).
Na história da arte há registros muito antigos de autorretratos, como na Grécia antiga, onde eram criadas imagens de si mesmos. Conforme aponta Bugler (2019, p. 190), “Na Idade Média, a arte ocidental era extremamente voltada para a religião e os poucos retratos feitos eram de pessoas eminentes e poderosas como governantes ou líderes da igreja.” Continua a autora dizendo que, na época da Renascença o autorretrato ressurge, facilitado pelo avanço tecnológico da época: o espelho. Isto facilita em muito para os artistas a produção das suas autoimagens, uma vez que pagar modelos para serem retratados custava muito caro.
Os autorretratos serviam na época, como um “cartão de visitas”, onde o artista podia demonstrar seu talento e sua obra. Ao observar a imagem do próprio artista representada, aquele que queria seu retrato pintado poderia contratá-lo. Conforme o desenvolvimento socioeconômico da época, a temática da arte começa a se expandir e os retratos a se popularizar. Logo, pessoas de um nível social inferior aos altos escalões já podiam pagar por um retrato. Diz Bugler (2019) que um mercador bem-sucedido poderia encomendar um retrato de si mesmo e um artista poderia, do mesmo modo, expressar o orgulho de sua profissão e ter conquistas por meio de um autorretrato. Estes autorretratos demonstravam muito mais do que habilidade e uma capacidade técnica, por assim dizer.
Rembrandt – o grande retratista
Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606 – 1669), pintor holandês, foi um dos artistas que mais se representou por meio de autorretratos. Viveu na Idade Moderna e é um dos mais famosos representantes da época áurea holandesa (1600 – 1714). Hoje há um número de mais de 80 autorretratos deste artista. Ele foi um jovem talentoso. Professor de arte conhecido por ser esnobe e extravagante, pois dava mais atenção às suas autoimagens do que a seus clientes. Na meia idade o artista entra em falência. A Holanda, sua terra, começa a passar por uma crise econômica. Rembrandt continua a viver sua vida de forma modesta, atendendo a pedidos de seus clientes e sendo respeitado por sua arte. “Trabalhou até sua morte em 1669, e sua arte cresceu em esplendor pictórico e em profundidade de sentimentos até o fim.” (Bugler, 2019 p. 188).
Autores como Gompertz (2023) e Mullins (2024) falam de Rembrandt como uma persona, alguém capaz de desenvolver personagens diversos em suas representações, mas que conservava nas autoimagens uma imagem singular e penetrante, o que também realizava para aqueles que o contratavam. Diz Mullins (2024, p. 188) que ele se tornou “o artista mais importante para os comerciantes metropolitanos ricos e para as guildas da cidade”.
Sobre o artista, Gompertz (2023) comenta que Rembrandt se interessava pela essência em seus autorretratos, ao olhar para si era o que procurava captar e representar. Tinha em seu semblante um ato de dúvida, “de um mestre artesão conferindo se a mancha de empaste aplicada vigorosamente logo abaixo do olho esquerdo dá a impressão correta de uma profunda ruga na pele”. (Gompertz, 2023, p.78)
O autorretrato mais famoso de Rembrandt é o Autorretrato com dois círculos (1665), onde está em uma fase de vida mais introspectiva.
Ele havia perdido sua esposa, seus três filhos e sua amante. Neste autorretrato, ele expressa o que vai em sua alma:
Rembrandt tinha passado mais de quarenta anos desenvolvendo sua técnica, sempre se empenhando em obter um efeito que revelasse uma verdade para além do poder descritivo das palavras. […] É mais do que um autorretrato, é uma autoavaliação: um acerto de contas. Rembrandt montou laboriosamente a imagem com múltiplas camadas de tinta translúcida para criar essa apresentação inflexivelmente honesta da maneira como se via pouco antes de morrer. Ele está nos dando uma aula magistral sobre a arte da autopercepção. Cada músculo contraído, cada pequena ruga revela algo sobre o espírito interior.”
Gompertz, 2023, p.78
Autorretrato com dois círculos (1665) https://www.historiadasartes.com/rembrandt/. Acesso em 26/10/2025.
O autor continua dizendo que Rembrandt escolhia a si mesmo como modelo não apenas por praticidade ou economia, como já citado, mas também porque buscava compreender como a interioridade humana se reflete na aparência externa.
Esse estudo exigia um olhar intenso e honesto que poucos modelos suportariam. Ao se retratar, ele podia observar-se sem restrições e perseguir a verdade interior. Para Rembrandt, conhecer-se exigia sinceridade absoluta. Suas imperfeições e expressões revelavam aspectos profundos de si; pintar era, acima de tudo, um ato de autoconhecimento e autenticidade.
Frida Kahlo – suas dores, sua janela para o mundo
Uma outra artista famosa por seus autorretratos é a mexicana Frida Kahlo (1907 – 1954). Conforme Bugler (2019, p. 191) “Talvez a contribuição mais notável ao autorretrato na arte recente tenha vindo da pintora mexicana Frida Kahlo. Cerca de 150 pinturas suas são conhecidas, e mais de um terço, são autorretratos.”
Ela teve uma vida curta, marcada por tragédias pessoais e por um relacionamento bastante conturbado. Teve poliomielite na infância, sofreu um grave acidente de ônibus aos dezoito anos, que a impediu de estudar medicina, bem como de ter filhos (sofreu alguns abortos). Sua coluna, bacia e órgãos internos foram severamente atingidos neste acidente.
Afirma Mullins (2024), que Frida começa a pintar aos 18 anos após o grave acidente. Por estar imobilizada sua mãe providencia um cavalete especial para que pudesse pintar deitada. Os autorretratos que cria contém grande intensidade emocional e reflete o seu corpo fraturado. Lágrimas, sangue e feridas são imagens comuns em seus quadros.
Às vezes, pintava seu coração com as artérias se enroscando nos membros, ou sua espinha dorsal como a coluna de um templo grego, quebrada e desmoronando. […] é o fogo emocional da obra de Kahlo que nos fala mais alto hoje.
(Mullins, 2024, p. 233)
Em seus autorretratos costumava estampar suas dores. São imagens marcadas por cores fortes.
Gompertz (2023) comenta que as obras de Frida fazem parte de uma capacidade de observação e percepção muito aguçadas; segundo o autor, ela usava sua dor para ver o mundo e o retratava assim como o percebia em suas pinturas e em seus autorretratos.
A artista casou-se precocemente com Diego Rivera, também artista e revolucionário, 20 anos mais velho, que alimentava muitos casos extraconjugais. Ele torna-se amante de Cristina, irmã mais nova de sua esposa. Isso aconteceu cinco anos depois de eles se casarem. Frida procura a ajuda do pai, um fotógrafo alemão, que ela considera amante da filosofia, mas um pai ausente e difícil no relacionamento. Frida se divorcia em 1939, depois de anos de sofrimento, e produz a obra As Duas Fridas, um famoso autorretrato.
Esta é uma obra de grandes dimensões quase em tamanho natural:
De acordo com Gompertz (2023), Frida pintava a sua realidade e não os seus sonhos. O cenário de fundo desse retrato é um céu de um azul intenso, com muitas nuvens. Na pintura, estão retratadas uma Frida com vestes mexicanas e outra com vestido de casamento em estilo colonial.
São dois aspectos ancestrais da artista expressos na imagem: as raízes indígenas maternas e suas raízes europeias germânicas paternas. As duas figuras se ligam por uma veia que vai de coração a coração.
A Frida vestida de noiva tem uma tesoura na mão e o vestido manchado de sangue que se funde com as flores vermelhas pintadas na barra do seu vestido. As Fridas olham diretamente para o observador. É um autorretrato que:
expõe suas dores, […] seu conhecimento anatômico […] o dualismo de suas origens, suas identidades, seu interior e exterior, o corpo e a mente, a Madonna e o Menino, a vida e a morte, a Frida europeia tem sangue nas mãos a Frida mexicana tem amor.
(Gompertz, 2023, p. 42)
Ela usou todas as suas experiências dolorosas como janela para compreender o mundo. A artista pode ser compreendida como uma força da natureza na expressão de sua arte. Frida, além de artista, foi também uma defensora e revolucionária, expressando por meio de sua arte os valores nacionalistas. Diz Gompertz (2023, p. 37) “O que ela dizia, pintava, vestia e escrevia era um manifesto sobre a independência e a cultura do México. Esse era seu tema. A dor era a lente pela qual o via.”
A fotografia entra na cena dos autorretratos
O advento da fotografia no século XIX trouxe um avanço tecnológico para o universo da arte. Como toda grande mudança, essa também não foi inicialmente bem aceita. Artistas pensaram que seria ali o fim da pintura. Na verdade, a fotografia trouxe para o universo da arte, depois deste susto inicial, novas maneiras de olhar e captar o mundo ao redor. Comenta-se que a pintura Mulheres no Jardim de Claude Monet provavelmente foi baseada em uma fotografia, e algumas de suas visitas aos bulevares parisienses foram inspiradas por fotos de Nadar, fotógrafo mais famoso da época, que as tirou de um balão de ar quente. (cf. Bugler, 2019, p. 229)
No cenário dos retratos, com a fotografia passando a ocupar um espaço no mundo contemporâneo, ela torna acessível a possibilidade das autoimagens àqueles que gostariam de ter seus retratos, mas que não tinham condições de arcar com os custos que isto representava. Artistas utilizavam da fotografia para minimizar o tempo e as dificuldades naturais de usar um modelo vivo.
Gompertz nos diz que a fotografia revolucionou a arte, ao passo que com a câmera o artista poderia modificar sua forma de ver; para o autor a máquina fotográfica:
“desafiou os artistas a fazerem melhor. Ela permitia criar uma imagem com perspectiva linear com muito mais rapidez e com um custo muito menor do que faria um artista, e com maior autenticidade.”
(Gompertz, 2023, p.175)
Para Walter Benjamin (1892 – 1940), ensaista alemão e um dos representantes da Escola de Frankfurt, o advento da fotografia representava um risco para as obras de arte. Segundo Benjamin (1933), as obras possuem uma “aura”, o que as torna autênticas e únicas, originais e vinculadas ao seu tempo-espaço de criação. Para o teórico, este caráter sagrado se perde, quando a técnica da fotografia passa a reproduzir de modo massivo as obras de arte.
Benjamim escreve, em 1933, um ensaio chamado A Obra De Arte na era de Sua Reprodutibilidade Técnica. Assim diz ele:
No início do século XX, a reprodução técnica tinha atingido um nível tal que começara a tornar objeto seu, não só a totalidade das obras de arte provenientes de épocas anteriores, e a submeter os seus efeitos às modificações mais profundas, como também a conquistar o seu próprio lugar entre os procedimentos artísticos.
(Benjamim, 1933, e-book)
Benjamin (1933) compreendia, inclusive, que a reprodução de uma obra de arte, como um exercido de aprendizado de um novo artista, é altamente compreensível e inclusive recomendável, onde este estaria sendo treinado em sua nova profissão. A crítica vem da reprodução massiva e realizada por um meio tecnológico, o que tira o indivíduo da realização manual e da presença. Assim, ainda que bem reproduzida, a obra perde “o aqui e o agora”, que na visão do autor é o que vincula a obra a seu tempo. Esse modo de observar a entrada da fotografia no espaço da arte nos remete ao mundo contemporâneo.
É verdade que, com o passar do tempo, a fotografia se populariza e amplia a possibilidade de vermos imagens captadas, tornarem-se eternizadas. Além dos retratos pessoais, as fotografias congelam cenas de eventos, lugares, vivências, pessoas. Elas criam memórias que foram se acumulando em álbuns de retratos. Com o passar do tempo, esses álbuns armazenam as imagens fotográficas de forma tecnológica, por meio de imagens digitais, agora guardadas nas nuvens!
As selfies e as autoimagens nas redes
Chegamos então à época das redes sociais. Recheadas de imagens criadas primeiro pelas máquinas dos celulares, depois por solicitação e montagens feitas pela inteligência artificial. Em seu livro Existências Penduradas, Norval Baitello Júnior (2019) nos presenteia com pequenos textos que provocam reflexões importantes acerca de como, em nosso mundo contemporâneo, estamos lidando com as imagens que criamos.
Conforme já foi apresentado, quando falamos de uma obra de arte, falamos de imagens que vão além do artista. Vimos que, quando o artista retrata numa pintura sua autoimagem, ele expressa emoções complexas e símbolos universais, presentes no espírito de seu tempo, como também nas feridas de sua alma.
Mas o que retratam as selfies, queridinhas das redes sociais?
Baitello (2019), em suas reflexões compreende que a selfie surge como um fenômeno, parte de um cenário global sendo disseminada pelos celulares, que cabem na mão e que contém um mundo em si. As fotos são realizadas de forma muito simples: “A mão direita ou a esquerda levantada à frente e acima do corpo, o rosto voltado para o alto. Ao fundo, em frente, ou no fundo, logo abaixo, um cenário espetacular qualquer” (Baitello, 2019 p. 14). Continua Baitello (2019, p. 15) a dizer que nesta imagem, todo o restante, o entorno perdem seu valor, dando lugar a um “corpo pendurado diante de um cenário”.
Em sua obra, o autor questiona se estamos vivendo no mundo real ou nas imagens de nós mesmos e nos provoca a pensar, que ao seguir este padrão comportamental de nosso tempo, estaremos propensos a habitar mais as imagens do que o mundo. Nestas imagens somos imortais, transfigurados (vide os milhares de filtros fornecidos hoje pela IA). O homem encontra-se em uma encruzilhada entre viver nas fantasias de “eus” fictícios e imortais e a realidade de uma vida plena, sujeita às adversidades das dores, do envelhecimento e da morte. Para Baitello (2019) este cenário contemporâneo nos coloca em um paradoxo – estamos nelas e, ao mesmo tempo, fora delas – uma coexistência entre presença e ausência, em certo ponto, similar ao que apontava Benjamin (1933).
Baitello, no decorrer de seu livro, vai ampliando estas imagens sobre as selfies e suas representações e nos traz diversas provocações como “expressão de desamparo” (2019, p.19).
Em consonância com Benjamin (1933), ele comenta sobre o valor massivo capitalista das imagens “Isso é o valor da exposição, a grande moeda do nosso tempo.” (p. 53); e sobre o fato dessas imagens circularem ou orbitarem nas redes, o autor diz: “Orbitar é permanecer, ainda que como lixo!” (p. 84).
Há diversas outras pontuações como estas, o que nos faz compreender, como as selfies e sua profusão nas redes sociais representam não mais um alinhamento genuíno e profundo, com a alma do artista (quando estes se retratavam), mas um verdadeiro distanciamento do indivíduo de si mesmo e de sua alma.
Ao provocar essa comparação, não tenho o interesse de demonizar o que acontece no mundo atual e nem retirar o valor da nossa evolução tecnológica. A comparação entre estas dois mundos nos servem para uma reflexão sobre a polaridade racionalista e distanciada do sentido da vida que estamos vivendo. A vida hoje se dá em um mundo regido sob a égide de um conjunto de normas sociais que nos coloca num estado de alerta constante.
Parece que estamos em vias de perder a capacidade de fazer aquilo que uma obra de arte nos convidava a fazer: parar, contemplar, observar. Tudo é muito rápido, tudo é muito instantâneo. A um clique, você posta uma selfie, que é uma imagem sua. O artista, quando apresentava o seu autorretrato como referência do seu trabalho, tinha que ser fidedigno, como era Rembrandt, aos traços, às emoções, às expressões. Se pensarmos no que era o autorretrato, uma imagem trabalhada com muito cuidado, com muito apreço, com muita cautela. A alma do artista, de algum modo, estava expressa ali.
Várias são as questões que surgem aqui:
A alma de uma selfie está onde? Essa rapidez de pensamentos e sensações permite a contemplação? Será que há tempo de se pensar nessa selfie como um espelho da alma do indivíduo que se retrata nas redes sociais?
Se Jung estivesse hoje acompanhando esse movimento, fico imaginando aqui o que ele diria. Uma das falas que penso ilustrar essa breve análise é a seguinte, presente na OC 8/2:
A psicologia analítica é uma reação contra uma racionalização exagerada da consciência que na preocupação de produzir processos orientados se isola da natureza e assim priva o homem de sua história natural e o transpõe para um presente limitado racionalmente que consiste num curto espaço de tempo situado entre o nascimento e a morte […] A vida se torna então insípida e já não representa o homem em sua totalidade […] Vivemos protegidos por nossas muralhas racionalistas contra a eternidade da natureza a psicologia analítica procura justamente romper essas muralhas ao desencavar de novo as imagens fantasiosas do inconsciente que a nossa mente é racionalista havia rejeitado.
(Jung, OC 8/2, §739)
Claro que as selfies não são arte, mas estão vinculadas a um registro fotográfico, que tem origens e desdobramentos artísticos por sua natureza de reproduzir imagens pictóricas. Assim, as autoimagens se transformam em quadros “pendurados”, como conceitua Baitello (2019), distanciando-se da corporificação de quem as produz. Vale lembrar que, vinculado ao espírito de seu tempo, os autorretratos serviam para expor o talento do artista, mas também para expressar de forma autêntica, singular e genuína a profundidade anímica de quem produzia aquela pintura, muito além da técnica.
O vazio mecanicista e massivo das selfies representam uma linha bem diferente.
Estas autoimagens traduzem o espírito de nosso tempo, em que se apela por pertencimento e aceitação. O meio ou o externo é mais importante. São imagens fragmentárias das identidades contemporâneas. Versões múltiplas de si mesmo, efêmeras e desconectas da expressão da alma.
Jonathan Haidt (2024, p. 200 – 202) em seu livro A Geração Ansiosa, comenta que as meninas são mais afetadas pelas imagens nas redes sociais do que os meninos. É mais comum, também, que as meninas façam mais selfies do que os meninos – uma vez que este meio, com este fim expositivo, as atraem bem mais.
O modo como elas são afetadas é descrito pelo autor, com os seguintes pontos:
Há uma maior tendência das adolescentes se afetarem mais pela comparação social e pelo perfeccionismo;
O fato de as adolescentes serem mais sensíveis a agressões do tipo relacional, logo, serem vítimas fáceis de bullying, que as remetem exatamente a esse lugar das comparações e do ideal de imagem difundida nas redes sociais;
As meninas são mais abertas a exporem suas emoções, suas dificuldades, tornando-as, de algum modo, mais vulneráveis aos ataques e suas consequências;
Por serem mais vulneráveis, ficam mais expostas e mais sujeitas às cenas de assédio.
Continua o autor, dizendo que as redes sociais se tornam uma grande armadilha, tendo ela um poder sobre relacionamentos para meninos e meninas, o que traz sérios desdobramentos para a saúde mental e uma tendência à solidão que disparou entre as meninas no início da década de 2010 (cf. Haidt, 2024, p. 202).
A partir desta análise, temos aqui uma questão evidenciada nas selfies: aspectos do espírito de um tempo, infelizmente, vazio, que não privilegia a contemplação, a possibilidade de uma conversa, a possibilidade de expressão de alma.
O mundo moderno expõe mecanicamente imagens de pessoas, na busca de uma comparação, de uma referência irreal, massificando a possibilidade do alcance de uma identidade que converse com as reais demandas do indivíduo.
Jung, os artistas e suas obras
E o que é que a psicologia analítica, então, tem a ver com tudo isso? Para Jung (OC 15), o artista é um mediador. Como humano, é uma pessoa que possui um potencial criativo, mas que está a serviço de seu tempo e do sentido da sua época. Sobre isto, ele diz o seguinte:
Ainda que a obra de arte e o homem criador estejam ligados entre si por uma profunda relação, numa interação recíproca, não é menos verdade que não se explicam mutuamente. Certamente é possível tirar de um deduções válidas no que concerne ao outro, mas tais deduções nunca são concludentes. (Jung, OC 15 §134)
Com esta afirmação, Jung nos convida a refletir sobre como a arte nasce de processos psíquicos profundos. Há uma intencionalidade inconsciente e um trabalho simbólico da alma. A tentativa de compreender o artista não pode ser vista separadamente da possibilidade de compreender o próprio funcionamento da psique humana. Quando o artista cria uma obra, ele torna-se um canal por meio do qual manifesta-se o inconsciente coletivo e o sentido pulsante do espírito de seu tempo. A arte, neste sentido tem pra Jung uma função compensatória, trazendo à luz da consciência daquilo que precisa ser reconhecido e integrado. Assim, a visão de Jung sobre o artista se dá da seguinte forma: “Enquanto pessoa, tem seus humores, caprichos e metas egoístas; mas enquanto artista ele é, no mais alto sentido, “homem”, e homem coletivo, portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade.”
(Jung, OC 15, § 157, grifos do autor)
Assim, a arte não é compreendida por Jung simplesmente como um sintoma da vida pessoal do artista, nem a psique do artista se reduz à sua criação. Jung enxerga a autonomia da obra de arte. Depois de criada, ela adquire uma vida própria, em uma existência simbólica independente de seu autor. O vínculo entre o criador e sua obra é profundo, mas não causal nem explicativo no sentido estrito. Assim, as possíveis análises de uma obra de arte não podem se propor a fechar uma reflexão. Elas devem ser amplas, do mesmo modo que Jung compreende o sonho. Não se deve perder a riqueza simbólica que uma obra carrega em todos os elementos que ela possui.
Jung dizia que a psique se expressa por meio de imagens.
São muitas as suas afirmações a este respeito, mas uma em particular, tem um trecho na OC 8/2 que vem contribuir para a análise que está sendo desenvolvida aqui. Para o autor:
Somente quando nos contemplamos no espelho da imagem que temos do mundo é que nos vemos de corpo inteiro. Só aparecemos na imagem que criamos. Só aparecemos em plena luz e nos vemos inteiros e completos em nosso ato criativo. Nunca imprimiremos uma face no mundo que não seja a nossa própria; e devemos fazê-lo, justamente para nos encontrarmos a nós próprios, porque o homem, criador de seus próprios instrumentos, é superior à Ciência e à Arte em si mesmas.
(Jung, OC 8/2, §737)
Partindo deste ponto, fico imaginando Frida Kahlo, dada a delicadeza e a profundidade de suas autoimagens, sendo expostas num imediatismo sem reflexão das redes sociais. Suas obras, além de expressarem sua dor e o seu físico vilipendiado, expressam marcas do seu tempo. Não há na obra de arte os tais filtros que disfarçam e que mascaram aquilo que a alma pretende dizer.
Os filtros das redes funcionam como personas, máscaras midiáticas e digitais, por meio das quais as pessoas tentam aparentar o que não são, na tentativa de se adaptar a um mundo que não os aceita em sua forma autêntica.
BAITELLO JÚNIOR, Norval. Existências penduradas: ensaios sobre o mundo da imagem e o pensar. São Paulo: Unisinos, 2019.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. 1933, E-book.
BUGLER, Caroline [et al.]. O Livro da Arte. 1. ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
GOMPERTZ, Will. Como os artistas veem o mundo. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
HAIDT, Jonathan. A Geração Ansiosa: como a Grande Reconfiguração da Infância está causando uma epidemia de doenças mentais. 1. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2024.
JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis: Vozes, 2017 OC 15
JUNG, Carl Gustav. A natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1991. OC 8/2
MULLINS, Charlotte. Uma breve história da arte. Porto Alegre: L&PM, 2024.