Estava refletindo sobre algo que me atravessou recentemente: a sensação de não existir para além do consultório. Tudo começou quando ouvi o relato de uma colega durante a supervisão. Ela falava sobre a morte de uma paciente sua e o impacto que isso teve nela.
O que mais a afetava não era apenas a perda, mas o fato de que, depois de anos acompanhando aquela pessoa, ela simplesmente desapareceu. Nenhum familiar entrou em contato, nenhuma explicação. O silêncio. A única notícia que chegou foi através das redes sociais, como se o vínculo entre terapeuta e paciente, tão intenso e profundo, se desfizesse no ar assim que a vida do paciente terminasse.
Isso me fez pensar: e eu? Será que existo além da sala de atendimento? O terapeuta é alguém que escuta, acolhe, acompanha, testemunha processos profundos… Mas quando esse processo acaba, seja porque o paciente vai embora ou porque a vida se impõe, o que sobra de nós? Essa pergunta me pegou de jeito.
Percebi que, muitas vezes, o terapeuta não é um sujeito para além do consultório, mas uma função. Uma representação. Ele existe ali, naquela dinâmica, mas fora dela? Para quem ele é? Isso me fez questionar o quanto estamos, talvez, apegados à persona de terapeutas e o quanto podemos estar nos identificando excessivamente com esse papel.
Jung fala que:
A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir um determinado efeito sobre os outros e, por outro lado, a ocultar a verdadeira natureza do indivíduo. Só quem estiver totalmente identificado com a sua persona até o ponto de não conhecer-se a si mesmo poderá considerar supérflua essa natureza mais profunda.
(Jung, 2014, p. §305)
E se essa sensação de “não existência” for, na verdade, um confronto com nossa própria sombra? E se o que realmente assusta não for o fato de sermos esquecidos pelo paciente, mas sim o medo de não saber quem somos além desse papel?
Neste artigo, quero explorar essa ideia: a existência do terapeuta dentro e fora do consultório, as armadilhas da identificação com a função, e como essa dinâmica pode afetar não só nossa prática, mas nossa própria individuação.
Como nos tornamos inteiros quando parte do que somos só existe na relação com o outro?
Esse é um convite para uma reflexão mais profunda sobre nosso papel e nossa identidade. Porque, no fim das contas, o terapeuta é um guia para o paciente, mas será que estamos conscientes do nosso próprio caminho?
O terapeuta veste um papel. Isso é um fato. No consultório, assumimos uma postura, um tom de voz, um jeito de olhar, de escutar, de acolher. E essa construção não é um acaso, ela faz parte de algo muito maior: a persona. Jung descreve a persona como a máscara que usamos para interagir com o mundo, um arquétipo que organiza nossos papéis sociais e nos permite navegar nas relações. Mas o problema começa quando nos esquecemos de que a persona não é quem realmente somos.
Quando me deparei com a ideia de que posso não existir para além do consultório, percebi o quanto essa persona pode ser traiçoeira. Se eu me identifico demais com ela, começo a acreditar que sou apenas aquilo: aquele que escuta, aquele que compreende, aquele que sabe ler as respostas do inconsciente. Mas o que acontece quando essa máscara cai? O que sobra quando a relação terapêutica acaba?
Talvez seja por isso que, quando um paciente morre, desaparece ou simplesmente encerra a terapia sem aviso, sentimos um certo vazio. Se, inconscientemente, estávamos apegados à imagem de terapeuta, perder um paciente pode ser sentido como perder a nós mesmos.
Mas será que essa perda é real? Ou será que é só um confronto com o fato de que nosso papel, por mais importante que seja, não nos define por completo?
Essa reflexão me levou a um incômodo maior: será que estou existindo de forma plena fora da terapia? Será que sei quem sou além do profissional que exerce essa função? Ou será que, sem perceber, minha identidade está tão amarrada ao papel de terapeuta que, quando ele não é mais necessário, me sinto inexistente?
A persona é necessária, mas ela não pode ser tudo o que somos. Se nos agarramos demais a ela, acabamos caindo na armadilha de projetar nossa identidade apenas nesse espaço profissional. E quando esse espaço desaparece, nos vemos sem chão.
Essa percepção me levou a outra questão: e se essa necessidade de “ser importante para o paciente” for um sintoma de algo ainda mais profundo? Algo que não tem a ver com a relação terapêutica em si, mas com nossas próprias sombras…
Se a persona é a máscara que usamos para existir no mundo, a sombra é tudo aquilo que fica escondido atrás dela. Não podemos nos esquecer que para Jung:
A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral, ele se defronta com considerável resistência.
(Jung, 2015, p. §14)
E foi exatamente esse confronto com a sombra que senti quando me deparei com a ideia de não existir para além do consultório.
O que acontece quando percebemos que nossa importância na vida do paciente é limitada? Que, uma vez encerrada a terapia, muitas vezes desaparecemos sem deixar rastros? Se isso nos incomoda, talvez seja porque projetamos parte de nossa identidade nessa função. Se o terapeuta existe apenas no espaço do consultório, o que acontece com ele fora dali?
É aqui que entra o perigo do apego ao papel profissional. Se nos identificamos demais com a função de terapeuta, podemos acabar usando esse papel como uma forma de evitar nossos próprios vazios. O consultório se torna um lugar onde nos sentimos relevantes, necessários, validados. Mas e quando a porta se fecha? Quem somos quando não estamos escutando alguém?
Esse apego pode ser um reflexo de uma necessidade inconsciente de ser significativo para o outro. Pode ser um sintoma de uma dinâmica interna que não resolvemos, de uma busca por pertencimento ou reconhecimento. E é exatamente aí que a sombra se manifesta.
A sombra pode nos fazer acreditar que o valor do nosso ser está no que oferecemos ao outro, e não em quem somos de fato. Se nos enxergamos apenas como guias, podemos nos esquecer de que também precisamos nos guiar. Jung alertava que aquilo que não reconhecemos em nós mesmos acaba nos controlando de forma inconsciente.
Então, se a ideia de não existir além do consultório nos perturba, talvez seja hora de perguntar:
O que dentro de mim teme essa ausência? O que estou projetando na relação terapêutica que, na verdade, pertence a mim?
Se sentimos um vazio quando um paciente desaparece ou encerra a terapia, pode ser um sinal de que algo nosso estava projetado nessa relação. Será que estávamos nos alimentando da posição de guia? Será que, de alguma forma, precisávamos ser significativos para o outro para validar nossa própria identidade?
A verdade é que, muitas vezes, o terapeuta se torna um arquétipo dentro da psique do paciente. Ele pode ser um mentor, um sábio, um curador, mas nunca é visto como um ser humano completo. E essa é uma armadilha perigosa: se nos identificamos demais com esse papel simbólico, podemos perder de vista quem realmente somos. Jung nos alerta que:
Projeções de natureza arquetípica envolvem uma dificuldade particular para o analista. Toda profissão tem seus entraves, e o da análise é de tornar-se infeccionada de projeções e transferências, principalmente das de natureza arquetípica, quando o paciente supõe que o analista é o preenchimento dos seus sonhos, não um médico comum, mas um herói espiritual e uma espécie de salvador; é evidente que o terapeuta dirá: ‘Mas que bobagem! Isso é doentio, não passa de um exagero histérico’. Não obstante, esse endeusamento é uma tentação; a coisa parece ser boa demais.
(Jung, 2015, p. §353)
Por isso, é fundamental refletirmos: estamos conscientes das projeções que recaem sobre nós? Estamos diferenciando o que é nosso e o que é do outro?
O terapeuta precisa ser um espelho para o paciente, mas não pode esquecer de olhar para o próprio reflexo. Caso contrário, pode acabar se perdendo na imagem que o outro vê.
Essa reflexão começou com uma pergunta simples, mas profunda: será que eu existo para além do consultório?. O relato da minha colega sobre a morte de sua paciente me fez perceber que, em muitos momentos, o terapeuta pode ser reduzido a uma função, a um papel que desaparece assim que o paciente se vai.
Mas essa sensação de inexistência pode ser um convite para algo maior. Se nos sentimos perdidos quando deixamos de ser “o terapeuta”, é porque ainda há partes nossas esperando para serem reconhecidas. A sombra pode estar nos dizendo que há algo dentro de nós que precisa ser integrado, algo que não pode ser preenchido apenas pela validação do outro.
Ser terapeuta é uma parte importante da nossa identidade, mas não pode ser a única. Se nos identificamos demais com essa persona, nos arriscamos a esquecer quem somos quando não estamos no papel de guias.
No final, talvez a questão não seja sobre nossa existência para os outros, mas sobre nossa existência para nós mesmos. Se conseguimos nos ver como seres inteiros, que transitam entre diferentes papéis sem perder a essência, então o que acontece no consultório se torna apenas um reflexo de algo muito maior: a nossa própria jornada de individuação.
E essa é uma jornada que, assim como a do paciente, nunca acaba.
Daniel Gomes – Membro Analista – IJEP
Waldemar Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP
Referências:
Jung, C. G. (2014). O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Ed. Vozes.
Jung, C. G. (2015). A vida simbólica. Petrópolis: Ed. Vozes.
Jung, C. G. (2015). Aion – Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo. Petrópolis: Ed. Vozes.
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