RESUMO: O presente artigo examina o filme de realismo fantástico Canina. No longa, uma mulher interrompe a própria carreira após o nascimento do filho para dedicar-se exclusivamente à criança. Ao longo da trama, a protagonista transforma-se em uma cadela. Neste estudo, essa metamorfose é analisada sob a ótica da psicologia junguiana e ultrapassa as questões mais aparentes abordadas no filme — maternidade, profissão e sexualidade. Verifica-se como a metáfora da transformação em um animal resgata a mulher identificada com a persona, e essa metamorfose se relaciona com o movimento therian.
Palavras-Chave: maternidade; persona; identificação com animais; therian.
CANINA é um filme de realismo fantástico sobre a maternidade, inspirado no romance Nightbitch (2021), de Rachel Yoder. Na trama, uma mulher interrompe a própria carreira após o nascimento do filho para cuidar da criança em tempo integral.
O filme, repleto de simbolismo, provoca certo desconforto ao mostrar a protagonista em processo literal de metamorfose canina. A obra retrata uma maternidade visceral, instintiva e selvagem. Como essa metamorfose pode ser compreendida à luz da narrativa junguiana?
Para além das reflexões mais evidentes — maternidade, profissão e sexualidade —, a narrativa evidencia um ponto crucial: o grau de consciência da protagonista no momento da escolha em ser mãe em tempo integral.
A maternidade revela-se extremamente potente: é um chamado à individuação que permite profundas transformações psíquicas e amplia a consciência feminina.
Por seu caráter arquetípico, a mulher entra em contato com atributos de uma força primitiva, ambivalente e poderosa, conforme descrito por Jung:
Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal. (JUNG, 2014a, p. 88)
O arquétipo atua como um potente catalisador, gerando afetos que desencadeiam conflitos e sombras e exigindo que a mulher, agora mãe, confronte seus aspectos instintivos e criativos.
Jung (2014a, p. 107) explica que “a portadora do arquétipo é, em primeiro lugar, a mãe pessoal, porque a criança vive inicialmente em um estado de participação exclusiva, isto é, em uma identificação inconsciente com ela. A mãe não é apenas a condição prévia física, mas também psíquica da criança”.
Contudo, o ego pode sentir o peso do arquétipo da Grande Mãe.
Esse arquétipo materno constitui a base do complexo materno e, assim, a mulher pode, inconscientemente, desejar ser apenas mãe. Digo “apenas” porque ela renuncia a quaisquer outros aspectos de si mesma para corresponder a essa mãe perfeita e idealizada — aquela que parte da sociedade espera, mas que existe apenas em nível arquetípico, jamais humano.
Jung (2013b), em A natureza da psique, esclarece que os complexos possuem um grau relativamente elevado de autonomia: apenas até certo limite se submetem às disposições da consciência, podendo comportar-se como uma personalidade à parte.
Essa tendência pode gerar uma personalidade que funciona como uma entidade psíquica independente; desse modo, a mulher passa a conduzir a vida sob a regência do complexo e identifica-se quase exclusivamente com o papel materno, abdicando de outros aspectos — mulher, esposa, profissional, etc.
Há mulheres que se dedicam integralmente aos filhos e ao lar e se sentem plenas; outras mantêm suas carreiras e os filhos se beneficiam disso, pois são criados por mães que não se sentem ressentidas nem frustradas. Jung considera patológico o caso das mulheres que se deixam capturar por esse complexo. (JUNG, 2014a, p.104).
O aspecto central, ao decidir como prosseguir após o nascimento da criança, para que a escolha esteja alinhada ao que a vida espera dessa mulher, é o nível de consciência envolvido na decisão.
Estar consciente, entretanto, não equivale a simplesmente desejar.
No filme, a protagonista desejou, optou, mas com base em quais pensamentos e sentimentos? A cena que ilustra essa ambiguidade mostra a personagem culpando o marido pela decisão—por ele ter apoiado a interrupção de sua carreira—; o marido, porém, recorda que ela chorava no trabalho enquanto ordenhava o leite, sofrendo por estar ausente da rotina do filho.
Nesse momento, o complexo também captura o marido (CANINA, 2024). Segundo Jung:
Tudo o que age a partir do inconsciente vai aparecer projetado no outro. Não que os outros sejam inteiramente inocentes, pois mesmo a pior das projeções sempre se ‘engancha num gancho’ que — por menor que seja — foi de fato fornecido pelo outro. (JUNG, 2013a, p.67)
O choro da protagonista, recordado pelo marido, evidencia a carga afetiva da situação. Naquele momento, ele apoiou a decisão de ela interromper o trabalho para cuidar exclusivamente da criança, pois a via triste e abatida. Contudo, quem realmente optou por abandonar a carreira: a mulher — em ato consciente — ou algum complexo constelado?
Por vezes, é o próprio complexo que “escolhe”, devido a sua autonomia. Ele se manifesta tanto na mãe que permanece em casa e se anula totalmente quanto naquela que retorna ao mercado de trabalho tentando manter a mesma disponibilidade de antes.
No filme, a protagonista abdica de si mesma: ignora as próprias emoções, descuida da aparência, abandona a prática de atividade física, afasta-se da profissão e da sexualidade, reduzindo o cotidiano à função materna. Essa dedicação exclusiva visa unicamente ao bem-estar da criança, mas repercute negativamente no casamento e na relação que mantém consigo.
Escolhas tão relevantes, feitas em período intenso e exaustivo, quando o ego pode estar fragilizado, favorecem a identificação com a persona. Segundo Jung, persona “é uma expressão muito apropriada, pois designava originalmente a máscara usada pelo ator, indicando o papel que ele iria representar” (JUNG, 2015, p. 46).
A identificação com a persona leva a protagonista a desempenhar somente esse papel. É como se, na dança da vida, ela conseguisse dançar apenas um ritmo. Tal fenômeno — amplamente estudado por Jung — constitui uma fonte fecunda de neuroses (JUNG, 2015, p. 84).
Não há um movimento reflexivo: a protagonista identifica-se com a persona da mãe idealizada e tradicional — padrão socialmente chancelado como o da “boa mãe”, aquela que abdica de tudo pelos filhos. Esse é o padrão externo com o qual a personagem se identifica.
Ao analisarmos a persona, dissolvemos a máscara e descobrimos que, aparentando ser individual, ela é no fundo coletiva; em outras palavras, a persona não passa de uma máscara da psique coletiva. No fundo, nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que “alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo. (JUNG, 2015, p. 47)
Contudo, conforme Jung trata na mesma obra, a escolha da Persona não é acidental, aleatória, pelo contrário, também há um padrão interno que se identifica com esses aspectos da psique coletiva.
Seria incorreto, porém, encerrar o assunto sem reconhecer que subjaz algo de individual na escolha e na definição da persona; embora a consciência do ego possa identificar-se com ela de modo exclusivo, o si-mesmo inconsciente, a verdadeira individualidade, não deixa de estar sempre presente, fazendo-se sentir de forma indireta. (JUNG, 2015, p. 47)
Nesse contexto, compreende-se que a persona não se limita ao que o meio social espera do indivíduo; ela inclui igualmente aquilo que o próprio sujeito passa a exigir de si mesmo.
O aspecto central, ao decidir como prosseguir após o nascimento da criança e manter a escolha alinhada ao sentido de vida dessa mulher, é o grau de consciência envolvido no ato decisório. No caso da protagonista, que parte dela optou por se dedicar integralmente ao filho? Em que circunstâncias essa decisão foi tomada? Quem, dentro dela, frustrou-se?
O ideal seria que a mãe suportasse o desconforto — seja pela impossibilidade de dedicar-se exclusivamente à maternidade, seja pela impossibilidade de dedicar-se exclusivamente à carreira —, mantendo o conflito entre consciência e inconsciente até que um terceiro elemento emergisse para reconciliar os opostos; Jung denomina esse processo de função transcendente (JUNG, 2013a, p.13).
Manter essa tensão favorece a criação de alternativas imaginativas.
Nesses casos, é necessário “dar espaço” ao complexo, reduzindo-lhe a carga afetiva; assim, a mãe — antes atravessada pela culpa de sua ausência temporária — passa a perceber as consequências de cada cenário e a conceber desfechos que eram impensáveis enquanto o complexo permanecia constelado. Jung descreve tal situação da seguinte forma:
Existem, é verdade, atitudes coletivas extremamente duradouras, que possibilitam a solução de conflitos típicos. A atitude coletiva capacita o indivíduo a se ajustar, sem atritos, à sociedade, desde que ela age sobre ele, como qualquer outra condição da vida. Mas a dificuldade do paciente consiste precisamente no fato de que um problema pessoal não pode se enquadrar em uma norma coletiva, requerendo uma solução individual do conflito, caso a totalidade da personalidade deva conservar-se viável. Nenhuma solução racional pode fazer justiça a esta tarefa, e não existe absolutamente nenhuma norma coletiva que possa substituir uma solução individual, sem perdas. (JUNG, 2013a, p. 17)
A protagonista, submetida simultaneamente às pressões sociais e às dinâmicas do próprio mundo interno — tomada pelo complexo materno e identificada com a persona —, recebe do inconsciente a figura animalesca.
A figura da cadela surge como um contraponto da maternidade idealizada, sendo uma maternagem estritamente instintiva, a mãe alimenta o filho, brinca com ele e o protege, mas sem o revestimento civilizatório, em determinadas cenas, a protagonista e a criança simulam latidos, alimentam-se em comedouros para animais e, à noite, ela sai à caça de presas.
Esse realismo fantástico contrapõe-se à imagem da mãe idealizada. Todos aspectos negados por essa persona, são vivenciados quando a protagonista se transforma na cadela. A rigidez e apatia dão lugar a leveza e a espontaneidade, mas sem a devida adaptação ao social.
O filme retrata a mãe e filho se comportando como cachorros durante suas atividades com outras famílias. Ela, ao jantar com os amigos rechaça qualquer norma de etiqueta à mesa, latindo, devorando a refeição como um animal.
Tal irrupção configura uma enantiodromia, ou seja, um movimento compensatório que visa restabelecer o equilíbrio psíquico:
Quando a consciência subjetiva prefere as ideias e opiniões da consciência coletiva e se identifica com elas, os conteúdos do inconsciente coletivo são reprimidos. A repressão tem consequências típicas: a carga energética dos conteúdos se adiciona, até certo ponto, à carga do fator repressivo cuja importância efetiva aumenta em consequência disto. Quanto mais o nível da carga energética se eleva, tanto mais a atitude repressiva assume um caráter fanático e, por conseguinte, tanto mais se aproxima da conversão em seu oposto, isto é, da chamada enantiodromia. (JUNG, 2013a, p. 169)
Nesse ponto do filme, é possível reconhecer a função dessa enantiodromia., a mãe, totalmente identificada com a persona da mãe idealizada não conseguia descolar dessa máscara, sem ser possuída pelo oposto de seu ideal de maternagem. O filme representa esse resgate do ego por meio da metáfora da transformação em animal.
Atualmente, um tema que se popularizou é o movimento therian.
O termo “teriantropia” vem do grego theríon, que se traduz como “fera”; e anthrōpos, que se traduz por “ser humano”.
Por meio das redes sociais esse movimento tem ganhado visibilidade e refere-se à percepção que uma pessoa tem de si como um animal, não é apenas uma fantasia, essas pessoas sentem ligação com algum animal e se identificam como o bicho em questão.
Em 2023, na estação ferroviária de Potsdamer Platz, em Berlim, aproximadamente mil pessoas que se identificam como cães realizaram um protesto em defesa dos chamados “direitos caninos”. No mesmo ano, o japonês conhecido como Toco — que utiliza uma fantasia canina hiper-realista — ultrapassou um milhão de visualizações no canal do YouTube Eu Quero Ser um Animal, onde publica vídeos em que se comporta como um cão, incluindo passeios e interações com outros animais.
Fato incontroverso é que não há como generalizar que toda pessoa que se identifica com um animal tenha algum transtorno. Primeiramente, não há diagnóstico psiquiátrico específico para a therianthropia no DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).
Nesse diapasão, é importante ressaltar que, desde a antiguidade, esse fenômeno é amplamente retratado na mitologia. Entre os xamãs, por exemplo, a prática de invocar espíritos animais é habitual; entretanto, a forma como isso se manifesta na contemporaneidade com o movimento therian — tal como no filme analisado — pode indicar um sintoma de uma sociedade excessivamente civilizada.
Jung estudou de maneira abrangente a identificação simbólica do homem arcaico com animais e, em certos aspectos dessa pesquisa, recorreu ao conceito de participation mystique, formulado por Lévy-Bruhl:
Lembremo-nos, porém, que a psicologia da consciência provém de um estado original de inconsciência e de indiferenciação. A este estado Lévy-Bruhl chama de participation mystique. Por conseguinte, a consciência da diferenciação constitui uma aquisição tardia da humanidade; provavelmente ela é um recorte relativamente pequeno no campo incomensurável da identidade original. (JUNG, 2015, p. 96).
Por ser a participation mystique (LÉVY-BRUHL, 1910) um traço mais frequente entre povos originários — que, devido à sua absoluta objetividade e à ausência do viés moral civilizatório, percebem-se como parte intrínseca da natureza —, esses grupos jamais se sentem separados do mundo e identificam-se plenamente com os animais.
Em Civilização em Transição, Jung ressalta essa diferença, entre o homem arcaico e o contemporâneo:
Achamos difícil entender a “alma silvestre” porque nos causa perplexidade a concepção concreta de uma alma absolutamente separada, vivendo num animal selvagem. Quando chamamos alguma pessoa de camelo, não queremos dizer que, sob todos os aspectos, seja um quadrúpede deste tipo, mas simplesmente que se parece de alguma forma com ele. Separamos uma parte de sua personalidade ou psique e é esta parte que personificamos como camelo. Também a mulher-leopardo é uma pessoa, só que sua “alma silvestre” é um leopardo. Como toda a vida psíquica inconsciente é concreta para o primitivo, o apelidado de leopardo possui uma alma de leopardo, ou, numa dissociação ainda mais profunda, a alma de leopardo vive soba forma de verdadeiro leopardo na selva. (JUNG, 2013c, p. 76).
Jung (2013c, p. 76) demonstra que, ao traduzirmos concretamente tais metáforas, alcançamos o ponto de vista dos “povos primitivos”[1]. Na medida em que a sociedade contemporânea nega o aspecto primitivo, instintivo e selvagem inerente ao ser humano, é possível considerar que o fenômeno therian configure uma resposta ao excesso de civilização.
Tal excesso impacta negativamente a condição humana e sua natureza primitiva: os therians emergem como um movimento de autorregulação da psique em busca de cura, nos moldes já identificados por Jung, segundo o qual “o excesso de animalidade deforma o homem cultural; o excesso de cultura cria animais doentes” (JUNG, 2014b, p. 39).
O desfecho do filme reforça essa interpretação: ao final, a mãe civilizada e a mãe animalesca são representadas pela protagonista, agora artista, em suas obras. Dessa forma, ela cria um espaço simbólico no qual os aspectos até então reprimidos podem ser experienciados por meio da arte.
Por isso, na clínica, é fundamental compreender o contexto psicossocial em que o indivíduo se encontrava quando emergiu a identidade com o animal, pois tal fenômeno pode representar uma tentativa de afastá-lo de uma identificação patológica com a persona.
Jaqueline Carvalho – Analista em formação IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
Referências:
CANINA (Nightbitch). Direção: Marielle Heller. Produção: Anne Carey; Christina Oh; Amy Adams et al. EUA: Searchlight Pictures, 2024. Filme (98 min.).
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2013c.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014a.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014a.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2015.

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[1] A expressão “povos primitivos” é a terminologia empregada pelo autor no período. Atualmente o termo é considerado obsoleto.