Assisti Encanto (Disney, 2021) por acaso. Não estava na minha lista de filmes candidatos ao Óscar 2022, daqueles que vemos munidos de muitas expectativas. E se deixar fisgar por um filme talvez seja uma ótima forma de se relacionar com ele.
Num certo sentido, podemos dizer que, embora seja um filme infantil, ele permeia muitas narrativas de dominação.
A primeira: a película se passa na Colômbia. Portanto, aborda um país do Sul Global como o Brasil. Para quem ainda usa os termos obsoletos Terceiro Mundo, países desenvolvidos / subdesenvolvidos etc, pode ser uma boa ideia pesquisar esta expressão. Ela é muito contemporânea, embora tenha sido usada pela primeira vez, com um sentido político, pelo ativista político estadunidense Carl Oglesby para um artigo da edição especial sobre a Guerra do Vietnã do jornal católico Commonweal (OGLESBY, 1967).
Na obra, Oglesby argumenta que séculos de “domínio do norte sobre o sul global […] [convergiram] […] para produzir uma ordem social intolerável” (OGLESBY, 1967, p. 90). Estamos falando, portanto, dos conceitos de Norte Global e Sul Global, usado hoje em dia para descrever um agrupamento de países segundo características socioeconômicas e políticas. O Sul Global, que não se limita ao sul geográfico, é um termo frequentemente usado para identificar países de renda desigual. Como Colômbia e Brasil.
A segunda narrativa de dominação: a Colômbia do filme não é a do fantástico Parque Nacional Natural de Chiribiquete. Aliás, se você ainda não o conhece, invista quatro minutos e 21 segundos para se maravilhar com este vídeo, clicando aqui. Não, o pano de fundo do filme é o dos conflitos armados dos Pablos Escobares. É este gatilho que literalmente leva a então jovem Alma Madrigal a fugir de casa para salvar a família. Que então consistia em seus trigêmeos e o marido, Pedro.
Quando o assunto é deslocamento forçado, infelizmente eles não estão sozinhos. Segundo o relatório da Agência da Organização das Nações Unidas para refugiados, no final de 2020 haviam nada menos que 82.4 milhões de pessoas deslocadas de suas casas em todo o mundo como resultado de perseguição, conflito, violência, violações dos direitos humanos ou eventos graves perturbando a ordem pública (THE UNITED NATIONS REFUGEE AGENCY, 2020, p. 2).
Retomando: forçada por um conflito armado a fugir de casa, a jovem Alma Madrigal perde seu marido Pedro, mas consegue salvar seus filhos trigêmeos, Julieta, Pepa e Bruno.
Neste ponto, entra a tradição do realismo mágico que brilhou em obras do escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), como Cem Anos de Solidão (MÁRQUES, 2018). Por um “milagre”, a vela que Alma porta possui qualidades que eliminam seus perseguidores e, não menos importante, criam uma casa senciente, isto é, com capacidade de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. A metáfora aqui seria que ela possui luz, isto é, conexão com os aspectos mais sutis de seu self.
Protegidos sob esta luz, em sua “Casita”, por cinquenta anos os Madrigais podem tocar sua vida e ainda serem o epicentro de uma cidade que prospera sob sua proteção. Isto porque, em tese, todo membro da família possui superpoderes que usam para ajudar os habitantes da cidadezinha. Como a filha mais velha de Julieta, Luisa, que é superforte e levanta pencas de burricos de uma vez – numa representação do feminino que talvez não tivesse ocorrido há 30 anos.
Aqui entra a terceira narrativa de dominação: a matriarca Alma controla com pulso firme o destino da família (sim, estamos num filme de cultura latina).
Desta forma, seu filho Bruno, que tem o dom de antever eventos ainda não vividos – muitos deles que não se alinham com a visão da mamma –, é banido do clã por Alma. Da mesma forma, Mirabel, a mais nova da filha Julieta, é jogada para escanteio por aparentemente não ter sido “brindada” com um superpoder.
Num certo sentido, é como se todos estes três níveis das narrativas de dominação dessem uma tessitura densa à personalidade de Alma, uma vez que não há vilões na obra, com a possível exceção dos guerrilheiros iniciais, e ela certamente é durona, mas não má.
É como se esta tríade na qual se funda a narrativa fossem representações de complexos, que enfeitiçam de povos a indivíduos. Isto porque, como lembra a analista junguiana suíça Verena Kast, o fundamento essencial da personalidade é a afetividade (KAST, 2019, p. 11). Sem conexão contínua e atualizada com o sentimento, a sensibilidade, o afeto e a emoção, o indivíduo não consegue regular sua relação com seus mundos interno e externo e reagir de forma adequada às novas experiências. Fica preso em crenças, experiências, ideias, lembranças e valores do passado, que não necessariamente estão ajustados às demandas do presente.
Alma era uma jovem que foi arrancada do aconchego de sua casa com trigêmeos nos braços e perdeu o marido, mas conseguiu salvar a família do desastre– e isto tem altíssimo mérito. Contudo, sua liderança no presente – ainda que por amor –, não é mais adequada para manter o valor mais importante que a personagem possui: a união da família.
Não vamos entrar em mais detalhes do filme para não dar spoiler (realmente vale a pena ver o filme), mas é óbvio que a trama da casa que literalmente cai (ops!) vai ser resolvida pelos membros excluídos da família.
Como diz Jung ao falar dos tipos psicológicos, a função que falta é aquela que permite à personalidade atingir uma expressão mais integral: “sob a pressão das exigências culturais, há de ocupar-se cada um de desenvolver aquela faculdade para a qual está favoravelmente predisposto pela natureza” (JUNG, 2012, § 109). Segundo ele, “por isso não se há de procurar ou encontrar sempre nesta função o maior valor individual, mas talvez apenas o maior valor coletivo” (JUNG, 2012, § 109).
Alinhada com as demandas de seu tempo histórico e social, Alma gerencia diligentemente as coisas para garantir a sobrevivência de sua família. Mas, como Jung sugere: “Poderá facilmente acontecer que, entre as funções desprezadas, permaneçam escondidos valores individuais maiores que, apesar de sua pequena importância para a vida coletiva, são da maior importância para a vida individual” (JUNG, 2012, § 109).
Valores, portanto, “capazes de proporcionar à vida do indivíduo uma intensidade e beleza que ele procurará, em vão, em sua função coletiva (…), aquela satisfação e alegria de viver que apenas o desenvolvimento de valores individuais pode proporcionar” (JUNG, 2012, § 109).
Quando a casa cai e Alma despotencializa o seu complexo, integrando suas sombras, finalmente pode deixar a vida fluir. E é neste momento de inclusão do que estava apartado que, mais leve, o novo pode se construir. E em vez do arquétipo da velha, deixar-se fluir com o da sábia. Ou, como diz a analista junguiana estadunidense Connie Zweig em sua nova obra, shift from role to soul, em tradução livre fazer a transição do papel para a alma (ZWEIG, 2021). No Brasil, Zweig é mais conhecida por sua obra publicada em 1991, Ao Encontro com a Sombra (ZWEIG; ABRAMS, 2012).
Monica Martinez – Analista em formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata
Referências
HELLINGER, B.; HEILMANN, H.-L. Meu trabalho, minha vida: a autobiografia do criador da constelação familiar. São Paulo: Cultrix, 2020.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos (OC 6). 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
KAST, V. Jung e a Psicologia Profunda. São Paulo: Cultrix, 2019.
MÁRQUES, G. G. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 2018.
OGLESBY, C. Vietnam crucible: an essay in the meanings of the Cold War. In: OGLESBY, CARL; SHAULL, R. (Ed.). . Containment and change: two dissenting views of American foreign policy. New York: Macmillan, 1967. p. 3–176.
THE UNITED NATIONS REFUGEE AGENCY. World at War: UNHCR global trends forced displacement 2020. Geneva: UNHCH, 2020.
ZWEIG, C. The inner work of age: shifting from role to soul. Rochester, Vermont: Park Street Press, 2021.
ZWEIG, C.; ABRAMS, J. Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.