A busca de ajuda pelos clientes nos consultórios em grande parte se deve ao fato deles perceberem que sofrem de angústias e desconfortos que não conseguem explicar, mas que trazem impactos negativos em suas vidas. Em muitos casos essas angústias e desconfortos assumem intensidade mais forte, tornando-se o que hoje parece ser uma epidemia, que dependendo dos sintomas pode ser chamada de depressão, crises de ansiedade, pânico etc.
Segundo Jung, os conflitos da vida civilizada surgem por conta da grande exigência que é feita para que a consciência tenha uma atitude dirigida para a execução de um fim, tornado-a unilateral, o que pode levar a um distanciamento do inconsciente. Quanto maior for essa distância “tanto maior é a possibilidade de surgir uma forte contraposição, a qual, quando irrompe, pode ter consequências desagradáveis.” (JUNG, 2000, §139)
Esses conteúdos inconscientes, que precisam ser integrados à consciência, para equilibrar sua atitude unilateral, são tanto as características da personalidade que são incompatíveis com os objetivos da consciência, quanto os complexos, que se formam a partir de experiências afetivas de caráter traumático que no momento em que foram vividos não puderam ser mantidos na consciência.
Jung deu a seguinte definição para o complexo:
O que é, portanto, cientificamente falando, um “complexo afetivo”? É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, se comporta, na esfera do consciente, como um corpus alienum corpo estranho, animado de vida própria. Com algum esforço de vontade, pode-se, em geral, reprimir o complexo, mas é impossível negar sua existência, e na primeira ocasião favorável ele volta à tona com toda a sua força original. (JUNG, 2000, §201)
Um complexo ativo, ou constelado, como se costuma dizer, faz com que a pessoa fique num “estado de não-liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas” (JUNG, 2000, §200), sendo que, a intensidade dessas manifestações está relacionada com a carga emocional e afetiva da situação que a originou e o quanto a pessoa está inconsciente dela.
Jung diz também que a situação psíquica que gera um complexo é um “trauma, um choque emocional, ou coisa semelhante, que arrancou fora um pedaço da psique. (…) Regra geral, há uma inconsciência pronunciada a respeito dos complexos, e isto naturalmente lhes confere uma liberdade ainda maior.” (JUNG, 2017, §204)
Para se atenuar esse efeito que os complexos têm sobre a consciência, de tirar a autonomia de sua vontade e assumir personalidades indesejáveis o trabalho a ser feito é tornar consciente seus conteúdos inconscientes. A necessidade de se resgatar esses conteúdos, que estão inconscientes, faz com que a fotografia seja um recurso muito eficiente no auxílio desse processo, dada a sua capacidade de registrar a história de uma pessoa e trazer à tona lembranças que foram apagadas de sua memória.
A relação da fotografia com a memória já pode ser entendida a partir do entendimento da origem grega da palavra, phos ou photo, que significa “luz”, e graphein, que quer dizer “marcar”, “desenhar” ou “registrar”, ou seja, registrar com a luz um momento.
Além do fato, do momento em si, em seu trabalho em que relaciona fotografia e memória, Fábio d‟Abadia de Sousa (2010, p. 7), fala sobre a capacidade de a fotografia trazer à tona memórias sensoriais e afetivas envolvidas naquele momento.
Cada foto é capaz de recriar aquilo que se sentiu em torno de uma viagem, um casamento, um aniversário ou um momento ordinário da vida. São comuns os relatos de pessoas que ao reverem fotografias de seu passado, além daquilo que aparece na imagem, também recordam uma série de acontecimentos relacionados ao instante registrado, como pessoas, lugares, espaços, texturas, sabores, cheiros, ódios, amores, alegrias, tristezas, vitórias, derrotas, enfim, ocorre um avivamento pleno de experiências passadas aparentemente perdidas na memória. (SOUSA, 2010, p. 7)
Dada essa capacidade da fotografia fazer emergir essa profusão de memórias, ela pode ser utilizada na arteterapia junguiana como um recurso para o resgate da história de uma pessoa, identificação de complexos e sua ressignificação.
Existem várias formas de usar a fotografia no processo de arteterapia junguiana. Vou apresentar aqui uma metodologia aprendida nos encontros de supervisão com Dra E. Simone Magaldi, membro didata do IJEP, como uma possibilidade a ser considerada.
O primeiro ponto a ser observado é que essa técnica não é indicada para o início do processo terapêutico, é importante que o terapeuta tenha tido um tempo para conhecer o cliente, e avaliar se o seu ego está em condições de lidar os conteúdos que podem surgir na vivência, pois no processo de resgate de memória, uma lembrança mais dolorosa pode ser acessada e não é possível interromper o fluxo de emoções e afetos que irrompem na consciência.
No modelo considerado trabalha-se com fotografias de forma a se conseguir percorrer a história do cliente de forma exaustiva. Como forma de apoiar uma divisão em etapas que possibilite cobrir toda a história do indivíduo de forma organizada, não cansativa, e que faça sentido do ponto de vista do desenvolvimento da pessoa, é utilizada a teoria dos setênios da Antroposofia como direcionador do processo. Ou seja, a história do cliente será revisitada em fases de sete em sete anos.
A teoria dos setênios da Antroposofia trata o desenvolvimento humano considerando ciclos de sete anos, em que cada uma das fases é um período de características únicas esperadas. Ao se comparar as características de cada fase com o que se revela nas fotos é possível ver o quanto a história do cliente se desenvolveu de acordo com o que é esperado e como o atingimento ou não dos objetivos de cada etapa impactou as seguintes, um insumo importante para o processo de autoconhecimento.
Em seu livro “O desenvolvimento da personalidade”, Jung fala das condições que precisam ser satisfeitas para se chegar ao melhor desenvolvimento possível da personalidade (2013, § 289), nos dando suporte para:
“Atingir a personalidade não é tarefa insignificante, mas o melhor desenvolvimento possível da totalidade de um indivíduo determinado. Não é possível calcular o número de condições que devem ser satisfeitas para se conseguir isso. Requer-se para tanto a vida inteira de uma pessoa, em todos os seus aspectos biológicos, sociais e psíquicos. Personalidade é a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular.”
Em nossa metodologia será utilizado como parâmetro dessas condições as características descritas nos setênios da Antroposofia.
O conceito de Antroposofia é muito complexo e amplo, portanto, ele não será explanado neste artigo. Para se conhecer e entender o tema, um livro que pode ser consultado é o livro “Bases antroposóficas da metodologia biográfica” de Gudrun Burkhard, publicado em 2015 pela editora Antroposófica.
A ideia é ter de uma a duas fotos de cada idade dentro de um setênio, sendo que para o primeiro setênio pede-se que sejam trazidas fotos da gestação e do casamento dos pais. A expectativa é de que cada ciclo seja objeto de análise por pelo menos uma sessão, podendo ir além caso seja necessário.
Na sessão de análise das fotos, pede-se para o cliente que as exponha sobre a mesa e as organize da forma que achar melhor, e uma vez que essas fotos estejam expostas, ele pode contar a sua versão da história dessa fase de vida.
Nesse momento, o próprio cliente já pode identificar espontaneamente situações relevantes para o processo.
Ele pode ressignificar lembranças, corrigindo percepções imprecisas. Uma infância que era vista como solitária e triste, pode aparecer como rodeada de companhias e alegre, quando as fotos mostrarem que ele tinha muitos amigos com quem brincava sempre sorridente. Memórias perdidas também podem irromper a barreira da consciência revelando traumas que deram origem aos complexos. Em ambos os casos, ao se ter acesso a aspectos que estavam inconscientes, uma etapa importante do processo terapêutico foi cumprida.
Além de lidar com o material manifestado pelo cliente, o terapeuta tem que explorar todo um mundo de possibilidades que não foi acessado pelo cliente em sua abordagem. O importante é buscar ler todas as mensagens que estão nas fotos, principalmente na sua linguagem simbólica, ou seja, naquilo que não está óbvio, que está oculto por trás e além da imagem.
Para orientar essa exploração toma-se como base os pontos fundamentais de cada fase de desenvolvimento humano, apresentados pela teoria dos setênios junto com os elementos registrados nas fotos para se conseguir uma visão mais ampla da história do cliente e, possibilitar o acesso às memórias perdidas que podem ser a origem de complexos afetivos que perturbam a sua vida.
A título de exemplo, no primeiro setênio, receber amor, calor, confiança e alegria de seus pais, é um fator muito importante desta fase, pois ele é base da construção do senso moral da criança. Com base nisso, o que as fotos dizem sobre a relação dos pais com a criança, eles se mostram afetuosos e presentes ou frios e ausentes? Eles estimularam o desenvolvimento da confiança da criança com atitudes de estímulo? E antes de tudo isso, tanto pai quanto mãe eram figuras existentes, ou um dos dois ou ambos faltaram por falecimento ou abandono?
Existem também, aspectos importantes a serem explorados além do que se apresenta nas fotografias.
Alguma foto teve um efeito perturbador sobre o cliente? Da mesma forma que Jung percebeu a existência dos complexos a partir de perturbações nos testes de associação de palavras, aqui também alguma foto pode ter o mesmo efeito sobre o cliente, o que já pode ser um indício de que algum complexo foi acionado.
Outras questões importantes a serem tratadas: Qual a disposição das fotos? Qual o elemento central da apresentação? Existem ausências significativas? Alguma lembrança paralela foi trazida?
Entender a perspectiva de quem tira as fotos também pode trazer subsídios importantes para a terapia, principalmente nas fotos familiares, em que pode existir a figura da pessoa que “gostava de tirar fotos” e que coloca muito do seu olhar nas imagens registradas.
Nessa metodologia podemos explorar as memórias trazidas pelas fotos e todos os efeitos e afetos relacionados direta ou indiretamente com elas de forma a enriquecer o processo de autoconhecimento do cliente que vai conhecer melhor sua história pregressa, seus efeitos no presente, ressignificar lembranças, despotencializar complexos para que ele possa dar os próximos passos com uma maior autonomia do ego a serviço do Self.
Mestre Dulce Kurauti
Membro analista em formação pelo IJEP