Originalmente Iemanjá era cultuada numa região situada entre Ifé e Ibadan, atual Nigéria, pelos ¨Egbᨠda nação dos iorubas. Com o tráfico de africanos para as colônias do Novo Mundo em virtude da escravidão Iemanjá é imigrada juntamente com toda a cultura dos africanos. No Brasil os africanos de cultura iorubá formaram o grupo mais importante, junto com os de cultura banto. Eles foram em sua grande maioria para a região da Bahia. Com o decorrer dos anos houve movimento migratório dentro do Brasil e houve a assimilação do panteão ioruba por diversos africanos de outras culturas, isto fez com que o culto se espalhasse pelo Brasil, Cuba e de lá para parte dos Estados Unidos.
No Brasil hoje Iemanjá é cultuada no país inteiro até por quem não é do candomblé nem da umbanda.
Para se ter uma ideia da importância de Iemanjá para o Brasil e da dimensão do culto, segundo informações de Unterste, em Dezembro de 1972 no palácio do governo em Brasília havia uma exposição de quadros premiados entre os quais estava um quadro de Hélio Alves intitulado ¨Preito à Iemanjᨠmostrando a imagem de uma sereia conduzida em procissão.
Inevitavelmente os africanos escravizados tiveram que adaptar seus rituais para que sua crença e cultura permanecessem vivas e Iemanjá foi sendo sincretizada com várias figuras do catolicismo, dependendo em que região do país esse sincretismo se dava. Ela foi sincretizada com Nossa Senhora da Conceição, festejada no dia 8 de dezembro em Salvador, na Bahia; com Nossa Senhora das Candeias, festejada dia 2 de fevereiro e Nossa Senhora dos Navegantes, dia 16 de outubro em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
O dia dedicado a Iemanjá é o sábado provavelmente por conta do sincretismo com Nossa Senhora a quem os católicos dedicam o sábado.
O principal lugar de culto aqui no Brasil são as águas do mar, mas também a dos rios e lagos. Inicialmente as filhas de Iemanjá tinham o costume de oferecer presentes ao rio em Abeokutá para pedir proteção, os pescadores trouxeram esse costume a fim de acalmar a fúria das ondas e faziam oferendas ao mar antes de embarcarem.
No candomblé da Bahia os filhos e filhas de Iemanjá usam guias de contas translúcidas e braceletes de metal prateado e dançam fazendo movimentos como as ondas do mar. Vestem-se preferencialmente de azul-claro.
Na umbanda Iemanjá simboliza maternidade, ela multiplica a vida no mar que é também sua morada e lugar onde seus adeptos realizam seu culto. Para os adeptos do culto as águas marinhas são purificadoras, limpam corpo e alma e os protegem contra ¨vibrações negativas¨, contra ¨forças do mal¨.
Para os umbandistas as oferendas a Iemanjá devem ser feitas ao menos uma vez ao ano. Para os cariocas a comemoração é realizada no dia 15 de agosto dia de Nossa Senhora da Glória, Assunção de Maria ao Céu. Em alguns terreiros essa comemoração é realizada no dia 8 de dezembro, dia de Imaculada Conceição. Mas a maior festa realizada para Iemanjá é realizada na virada do ano, onde no dia 31 de dezembro milhares de pessoas se dirigem as praias para lhe entregar oferendas, mesmo os não adeptos do candomblé e da umbanda. Essa é uma festividade que já ultrapassou a religiosidade. Iemanjá é a configuração de um mito vivo, cultuada não só na África, mas em diversas partes do mundo. No Brasil ela é parte da cultura brasileira.
Como todo mito, para o mito de Iemanjá existem inúmeras versões. Por se tratar de palavra falada o mito vai sofrendo pequenas mudanças ao longo do tempo sem, contudo, perder seu núcleo. Por questões morais, no Brasil quando o mito é contado algumas partes são ocultadas, influência do sincretismo com as santas católicas.
O autor Pierre Fatumbi Verger conta a seguinte versão: Iemanjá (¨Yemoja¨ em iorubá) é na África, ¨o orixá dos Egba¨. Iemanjá era filha de OlóòKun, deus do mar. Numa história de Ifá, ela aparece casada a primeira vez com Orunmilá, senhor das adivinhações, depois com Olofin rei de Ifé. Com o qual teve 10 filhos, cujo nomes correspondem a vários orixás. Iemanjá foge de Ifé. Seu pai numa outra ocasião teria lhe dado uma garrafa com um líquido dentro e a instruído que se estivesse em perigo deveria quebrá-la no chão. Olofin manda seu exército atrás de Iemanjá e esta vendo-se cercada não se rende e quebra a garrafa sendo conduzida imediatamente a Ókun, o oceano, lugar de residência de seu pai.
Numa outra versão, mais conhecida e difundida no Brasil por Nina Rodrigues, Iemanjá nasce da união de Obatalá, o céu, e Odudua, a terra. Da união deles nascem dois filhos: Aganjú, a terra firme, e Iemanjá, as águas. Iemanjá casa-se com seu irmão Aganjú e dá à luz à um filho chamado Orungan. Seu nome quer dizer Orun, céu, e gan, no alto do céu. E quer significar o espaço entre o céu e a terra.
Orungan apaixona-se por sua mãe Iemanjá, mas ela não dá ouvidos a essa paixão, Orungan aproveita a ausência do pai, persegue e viola sua mãe. Após o ato, Iemanjá tenta fugir e Orungan tenta convencê-la que ninguém precisa saber o ocorrido e que ela pode permanecer com os dois, pois ele não pode viver sem ela. Ela rejeita tal proposta e o trata com desprezo e continua a correr. Orungan se aproxima e quando está prestes a alcançá-la ela cai de costas no chão. Imediatamente seu corpo começa a inchar, dos seus seios brotam duas torrentes de água, e seu ventre arrebenta. Das duas torrentes nascem uma laguna e do seu ventre nascem alguns dos orixás. Em memória desse acontecimento teria sido criada a cidade de Ifé (inchação, dilatação). Ifé se tornou assim a cidade sagrada dos Iorubas.
Em seu romance ¨mar morto¨ Jorge Amado mostra que a história do incesto não é desconhecida na Bahia, mas adverte que ninguém fica contando essa história para não despertar a ira de Iemanjá. Podemos entender que esse pudor, que evita falar do incesto sofrido por Iemanjá, já tenha a ver com o sincretismo sofrido pela influência do cristianismo entre os orixás e os santos católicos. No Brasil todas as divindades africanas passaram por um processo de moralização, o que modificou alguns traços dos mitos. Quem sofreu essa influência de forma mais forte foi justamente Iemanjá por causa da identificação com Imaculada Conceição, a Virgem Maria. Dessa maneira Iemanjá perde também um pouco de sua característica de mulher sensual e sedutora principalmente nas imagens da umbanda, tentando não figurar seu lado de mãe terrível, que castiga, mas ainda assim é amada e temida por seus filhos que tentam acalmá-la através das oferendas. Iemanjá pode assim ter em si o lado sombrio do arquétipo da Grande Mãe que não pode aparecer nas representações da Virgem Maria.
Os pesquisadores comprovam que Iemanjá é identificada na Bahia como Nossa Senhora da Imaculada Conceição, a Virgem Maria, Nossa Senhora da Piedade, Nossa Senhora da Conceição das Praias, Nossa Senhora de Lurdes e Nossa Senhora da Candelária; no Recife Iemanjá é identificada com Nossa Senhora das Dores, Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Rosário; em Alagoas, com Nossa Senhora do Rosário; Em Porto Alegre, com nossa Senhora dos Navegantes e nossa Senhora da Boa Viagem; no Rio de Janeiro, como nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora da Glória; no Pará com nossa Senhora da Conceição; no Maranhão, com nossa Senhora do Bom Parto; em São Paulo, com nossa Senhora da Conceição.
Existem várias versões para o nome Iemanjá e todos fazem referência a peixes de algum modo. Iemanjá como “Mãe de Peixe” (“yeye, mãe; “eja”, peixe), Pierre Verger detalhou o significado: Iemanjá deriva do ioruba “Yèyé omo eja” que significa “Mãe cujos filhos são peixes.
Jorge Amado em seu romance “Mar Morto” fala na “Iemanjá dos cinco nomes”:
Iemanjá que é dona do cais, dos saveiros, da vida deles todos, tem cinco nomes, cinco nomes doces que todo mundo sabe. Ela se chama Iemanjá, sempre foi chamada assim e esse é seu verdadeiro nome, de dona das águas, de senhora dos oceanos. No entanto os canoeiros amam chamá-la Dona Janaína, e os pretos, que são os seus filhos mais diletos, que dançam para ela e mais que todos a temem, a chamam de Inaê, com devoção, e fazem suas súplicas a Princesa de Aiocá, rainha dessas terras misteriosas que se escondem na linha azul que as separa das outras terras. Porém, as mulheres do cais, que são simples e valentes, Rosa Palmeirão, as mulheres da vida, as mulheres casadas , as moças que esperam noivos , a tratam de Dona Maria, que Maria é um nome bonito, é mesmo o mais bonito de todos, o mais venerado, e assim o dão a Iemanjá como um presente, como se lhe levassem uma caixa de sabonetes à sua pedra no Dique. Ela é sereia, é a mãe d’água, a dona do mar, Iemanjá, Dona Janaína, Dona Maria, Inaê, Princesa de Aiocá”.
Entre os nomes citados por Jorge Amado e recolhidos por diversos autores encontraremos 27 nomes ou atribuições sob os quais Iemanjá é invocada.
O sincretismo se deu pela necessidade dos negros africanos em proteger seu próprio sistema religioso, mas serem forçados por seus amos a cultuar os santos católicos. Eles teriam feito associação de suas entidades sobrenaturais com os santos católicos, aproveitando as festividades católicas para despistar sobre a origem de suas danças e de seu culto.
No caso de Iemanjá com a Virgem Maria, o fenômeno do sincretismo se revela de forma muito evidente.
De acordo com Jung o arquétipo da mãe reúne propriedades como: o maternal, autoridade mágica do feminino, a sabedoria e a elevação espiritual para além do intelecto; o que é bom, protetor, paciente, que sustenta, que favorece o crescimento, a fecundidade, a nutrição; o lugar da transformação mágica, do renascimento, ou o lado oposto, que seria aquilo que existe de secreto, de escondido, de obscuro; o abismo, o mundo dos mortos , aquilo que devora , que seduz , que envenena, que provoca angústia. Iemanjá quer dizer “mãe de peixe” o que revela que é considerada como sendo uma divindade maternal o que na psicologia analítica poderia ser caracterizada como sendo a expressão do arquétipo da Grande Mãe.
A Grande Mãe apresenta-se triforme: boa, terrível e boa-má, que forma na verdade um grupo arquetípico unitário. Iemanjá também se apresenta como sendo boa e má respectivamente o que nos mostra o aspecto ambivalente do arquétipo da Grande Mãe. Como boa, manifesta-se no ato de dar à luz, proteger e nutrir. No mito africano, Iemanjá é sobretudo a que dá à luz, pois ela é a mãe de vários orixás e através disso é considerada ao mesmo tempo a mãe de todos os homens. Além de ser boa, Iemanjá é também protetora, é fonte de onde brota a vida, pois seu nome significa também água. Iemanjá é, portanto, o próprio mar. O mar é um símbolo do inconsciente, a água aqui mencionada representa a profundidade materna e o lugar de renascimento, e assim o inconsciente em seu aspecto positivo e negativo. O mar, assim como inconsciente, não é somente o que dá, mas também o que prende, que segura, que engole, como a mãe terrível que devora. Iemanjá não é somente a mãe boa, generosa com seus filhos, mas é ao mesmo tempo a vingativa, a mãe devoradora, a mãe da morte. É sobretudo no culto que Iemanjá se mostra como mãe terrível, são numerosas as histórias a respeito de sacrifícios oferecidos a ela, de pescadores que encontraram a morte no mar fascinados e amados mortalmente por Iemanjá. É a perigosa fascinação da Grande Mãe, que agarra os seus filhos deixando-os a sua mercê. No entanto Iemanjá é simplesmente a natureza, para a qual as categorias de bem e de mal não lhe tocam, porque ela é sempre as duas coisas ao mesmo tempo. De um lado, bondosa, amorosa e sedutora e de outro cruel e mortal.
Apesar do processo sincrético os conceitos sobre Maria não atingiram o núcleo da personalidade de Iemanjá, portanto as duas figuras continuam a guardar sua personalidade e realidades próprias: Maria, a mãe de Deus, toda pura, Imaculada, virgem e Santa, e Iemanjá, a deusa do mar e mãe dos orixás. Mas, arquetipicamente, a polaridade Maria-Iemanjá é complementar e compensatória. Maria, considerada do ponto de vista simbólico e arquetípico, aparece como o feminino que é totalmente luz, bondade e eternidade. Em contraste a dimensão luminosa e celestial de Maria, Iemanjá se apresenta totalmente ligada a realidade terrestre, as profundidades obscuras do mar. Além disso, a personalidade luminosa de Maria se opõe a personalidade ambivalente de Iemanjá, que é ao mesmo tempo boa e má.
De acordo com a Dra Marie-Louise von Franz o mito deve ser encarado tal como é, a ambivalência é característica essencial, do mesmo modo como o arquétipo. No nível arquetípico, Maria e Iemanjá são complementares ou compensatórias. Maria representa a Virgem sem pecados originalmente pura; Iemanjá representa o lado ctônico, terreno, obscuro e sombrio. É indispensável que a imagem arquetípica realize a sua ambivalência, os seus aspectos compensatórios para que assuma a sua possibilidade de mediadora entre os opostos. Sendo assim, Maria e Iemanjá representam os dois lados do mesmo arquétipo. Iemanjá, representa o aspecto sombra de Maria como arquétipo do feminino. Do ponto de vista psicológico, a sombra é a parte ‘negativa’ da personalidade, ou seja, a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis, das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal.
A motivação psicológica que leva a aproximar Iemanjá de Maria, realizando o sincretismo entre as duas tem como explicação provável o fato de que aqui se trata da fusão de duas figuras maternas, são duas Grandes Mães vistas em uma só figura.
Keller Villela – Psicóloga e Membro Analista em formação pelo IJEP
(11) 982254490 SP
Referências:
IWASHITA, Pedro. Maria e Iemanjá – Análise de um Sincretismo. Edições Paulinas. SP, 1991
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 8ª edição. Petrópolis -RJ. Editora Vozes, 2012.
NEUMANN, Erich. A Grande Mãe. 5ª edição. SP Cultrix. 2006