Cada vez mais se escuta relatos de mulheres, com distúrbios diagnosticados ou não, que apresentam infertilidade e dificuldade para gerar filhos. A mulher, como representante do feminino, está ligada a capacidade criativa, ao profundo, a capacidade de criar vínculos e de relacionamento.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a infertilidade, quando considerada no contexto da vida, também foi definida como uma experiência de “ruptura biográfica”. Esta definição enfatiza o sofrimento e os conflitos emocionais de quem tem essa condição. A impossibilidade de ter um filho desejado se torna uma perda na vida dos casais: uma perda comparada à perda de uma pessoa muito querida (WHO, 2002).
Jung em seus estudos nos apresenta que umas das manifestações do complexo materno negativo se dá através da rejeição da mãe, com possíveis afinidades para aspectos considerados masculinos, o que pode gerar distúrbios menstruais, e até mesmo a infertilidade em decorrência desses processos. Com o lema “Qualquer coisa menos ser como a mãe!”, essas mulheres apresentam um feminino ferido, intervindo em sua capacidade de se relacionar com seu corpo, sua feminilidade, sua sexualidade e capacidade criativa, ou seja, prejudica a construção de sua própria vida em diferentes aspectos, inclusive em sua capacidade de gerar filhos (Ref. JUNG, 2014, §170-171).
“Toda constelação de complexos implica um estado perturbado de consciência. Rompe-se a unidade da consciência e se dificultam mais ou menos as intenções da vontade, quando não se tornam de todo impossível. A própria memória pode ser profundamente afetada. Ou seja, um complexo ativo nos coloca por um tempo em um estado de não liberdade, de pensamentos obsessivos e ações compulsivas” (JUNG, 2013, §200). Esse estado consome muita energia psíquica, gerando um quadro de paralisação, infantilidade e unilateralização de pensamentos e atitudes.
Jung (2014, §172) menciona que nenhum complexo é resolvido reduzindo-o unilateralmente à mãe em sua medida humana. Contudo, é preciso tomar cuidado ao decompor a vivência da mãe, para não se perder o que está relacionado ao sagrado, pois instintivamente o homem associou os pais (pai e mãe) ao casal divino preexistente, conferindo aos pais um caráter divino. Esse caráter divino da imago parental pode ser relacionado aos arquétipos, por isso, os mitos possibilitam a ampliação e um olhar simbólico sobre essas questões.
A escolha pela não maternidade e a infertilidade pode ser relacionada as Deusas consideradas vestais ou virgens – como Atena, Ártemis e Héstia –, que preferiram manter a independência em relação aos homens, e, cada uma a seu modo, procuraram meios para se proteger. “Atenas e Ártemis representavam meta direcionada e pensamento lógico, o que as tornam arquétipos de realização orientada. Héstia é o arquétipo que enfoca a atenção interior para o centro espiritual da personalidade de uma mulher. Essas três deusas são arquétipos femininos que procuram ativamente seus próprios objetivos. Elas ampliam nossa noção de atributos femininos, para incluir competência e autossuficiência (Ref. BOLEN, 1990).
O relacionamento das deusas virgens com o materno apresenta dificuldades. Bolen (1990) menciona que Ártemis, como filha, tem dificuldade de relacionamento com mães consideradas fracas e passivas, como exemplo, mães deprimidas, alcoólatras, vitimadas por um mau casamento, ou imaturas. “Ao rejeitar a identificação com a mãe, comumente ela rejeita o que é considerado feminino – suavidade, receptividade e movimento em direção ao casamento e à maternidade. Ela fica atormentada por inadequabilidade de sentimentos – desta vez no domínio de sua identificação feminina” (pág. 92).
A mulher identificada com o arquétipo de Atenas tem opinião própria e frequentemente não está a par de seu corpo, fixada em sua intelectualidade perde a experiência de realizar-se na íntegra quanto ao seu corpo e sua sensualidade. Ela se mantém acima do nível instintivo, portanto, não sente a força total dos instintos maternais, sexuais ou procriativos. Para mulheres com características da deusa Héstia, a sexualidade não tem muita importância, e adapta-se a ideia de “boa esposa”, pois toma conta da casa muito bem. O ditado “as águas paradas são as mais profundas” descreve os sentimentos introvertidos de Héstia, que se encontra ligada a sua espiritualidade (Ref. Bolen, 1990).
Além disso, a inserção da mulher no mercado de trabalho, com forte característica patriarcal, exige objetividade, assertividade, agressividade nas relações de trabalho, e favorece o desenvolvimento ou a expressão dos arquétipos relacionados às deusas vestais ou a inflação do animus, seja nos ambientes de trabalho, seja no doméstico. Reforça uma tendência à unilateralidade desses arquétipos como meio de se relacionar com o mundo.
Por isso, pode-se pensar que o predomínio das deusas vestais associado ao complexo materno pode ter afetado a capacidade reprodutiva em algumas situações. Contudo, a deusa Deméter também atua quando falamos do desejo de ser mãe e vivenciar a gravidez, e, a cada tentativa frustrada nesse sentido, leva essas mulheres a vagar desoladas pela terra – como ocorreu a Deméter após o rapto de Perséfone por Hades. Deméter era a deusa relacionada à agricultura e ao cultivo dos cereais, e sua dor provocou uma grande onda de infertilidade na terra e fome para a população. Analogicamente, as mulheres que passam por tentativas fracassadas de serem mães acabam por viver essa experiência de dor e depressão assim como a deusa, gerando paralisia dos processos criativos e impactando a vida ao seu redor.
A vergonha e frustração ligados ao sentimento de incapacidade decorrente da infertilidade geram um grande desafio, mas também uma excelente oportunidade de questionamentos, reflexões e crescimento pessoal e social. O não ter filhos pode ser uma opção para as mulheres, que precisam olhar de onde vem o desejo da maternidade. É a Deméter ou Hera que nos chama? Ou são exigências de perfeição de uma sociedade alienada, que vive sobre a pressão de alcançar sucesso em todos os aspectos da vida? Ou é incapacidade de gerar, gestar e parir a vida ligada ao sentimento de completude e feminilidade que criam tanta angústia? Ou a soma de tudo isso – e mais um pouco?
Para as mulheres com o complexo materno negativo presente – e até um animus mais inflado –, é preciso que ocorra um processo de renovação da imagem materna. Não necessariamente da mãe real, mas dessa imagem que representa a grande mãe, com toda sua multiplicidade. A grande mãe representa todos os aspectos, tanto aqueles ligados à fertilidade e ao nascimento, quanto também ao processo de envelhecimento e morte – seja a morte biológica ou todas as mortes simbólicas necessárias ao longo da vida.
Essa integração do animus na vida da mulher pós-moderna auxilia sobremaneira a sua busca por estudar e ter uma carreira – demanda cada vez mais rotineira em todo mundo. Isso não significa necessariamente uma possessão pelo animus, mas talvez a mudança dos padrões e papéis estabelecidos pela sociedade. Hoje podemos ver as mulheres incorporando as características masculinas de diferenciação e utilizá-las de forma produtiva nos estudos e no trabalho, sem precisar renunciar a sua feminilidade; em contrapartida, há um movimento de incorporação do feminino pelos homens, que participam cada vez mais dos cuidados dos filhos e das tarefas domésticas, antes impostas às mulheres.
Para o reconhecimento de seu próprio corpo, de sua sensualidade em sentido amplo, e toda a criatividade e fertilidade relacionada a esse feminino, o caminho é o amor, a ressignificação das perdas e frustrações, a simbolização das feridas, sem medo de encontrar as sombras e os complexos que nos povoam. Ter medo daquilo que está nas sombras é natural para o ser humano. Temos a tendência de nos defender ou evitar o confronto, mas a coragem de olhar para si e permitir que o escuro e o claro coabitem, integrando as polaridades, pode nos tornar mais plenos.
As mulheres possuem o direito de decidir sobre seu próprio corpo, de vivenciar sua feminilidade e sua sexualidade, de poder optar pela maternidade ou não-maternidade, de se casar ou divorciar, de se relacionar da maneira que bem entenderem, de poder ser mãe e de ter uma carreira bem-sucedida, enfim, de usufruir de todos os caminhos que podem se abrir. As deusas internas da mulher podem ajudá-la a encarar essas questões e outras mais, abrindo a possibilidade de integração e harmonia desses complexos e arquétipos que nos habitam, e fazem parte do processo de aprendizado e individuação.
O não ser mãe pode abrir possibilidade de maternagem em outros aspectos da vida, como, por exemplo, uma luta social (busca pelos direitos de mulheres, crianças, pessoas mais vulneráveis, pela sustentabilidade, etc). Aspectos esses defendidos pelas próprias deusas virgens (Ártemis e Atena).
Pode-se considerar esse processo de vivência da infertilidade como um grande desafio da jornada heroica feminina, uma oportunidade de autoconhecimento que possibilita reflexões em diferentes níveis – do individual ao âmbito maior e mais complexo (sociopolítico, ético, por exemplo). A mulher pós-moderna tem a oportunidade de rever o patriarcado, questionar as relações no nível individual, mas também coletivo, e influenciá-las. Dessa forma, o olhar para a infertilidade feminina e a conexão com o feminino pode abrir caminhos para algo mais amplo.
Michella Paula Cechinel Reis
Membro analista em formação pelo IJEP. Brasília
Referências:
BOLEN, J.S. As deusas e a mulher: nova psicologia das mulheres. Tradução Maria Lydia Remédio. São Paulo: Paulus, 1990.
JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução Maria Luiza Appy, Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 11° ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2014.
______, C.G. A natureza da psique. Tradução – Mateus Ramalho Rocha. 10° ed. Petrópolis: Vozes, 2013-a.
______, C.G. Tipos psicológicos. Tradução de Lúcia Mathilde Endlich Orth. 7° ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013-d.
World Health Organization (WHO). Infertility and social suffering: the case of ART in developing countries. Report of a meeting on “Medical, Ethical and Social Aspects of Assisted Reproduction”. Genebra, 2002.