Logo após Jung estudar sua árvore genealógica, colocou em dúvida o caminho que sua vida tomou, se estava realmente vivendo sua vida ou se estava respondendo a algo que foi negligenciado por parte de sua família. No vol. 17 sobre o desenvolvimento da personalidade ele nos alerta a respeito do mesmo problema, já que a criança se encontra envolvida pelo inconsciente dos pais.
Tenho a forte impressão de estar sob a influência de coisas e problemas que foram deixados incompletos e sem resposta por parte de meus pais, de meus avós e de outros antepassados. Muitas vezes parece haver numa família um carma impessoal que se transmite dos pais aos filhos. Sempre pensei que teria de responder a questões que o destino já propusera a meus antepassados, sem que estes lhes houvessem dado qualquer resposta; ou melhor, que deveria terminar ou simplesmente prosseguir, tratando de problemas que as épocas anteriores haviam deixado em suspenso. (Jung, 2015e, p. 234)
Diante da questão levantada por Jung acredito que seja importante uma reflexão sobre o peso carregado pelos filhos em virtude de falta de consciência dos pais. Desejo refletir também a respeito da dificuldade da tomada de consciência dos sentimentos que a criança vivencia como seus, por influência do inconsciente dos pais e a falta de autenticidade dos próprios sentimentos.
Trabalhar essas questões que muitas vezes são dos pais apresenta um grau maior de dificuldade na exploração e tomada de consciência a respeito de suas origens. Não é de se espantar que em muitos casos existe uma ausência de momentos marcantes que possam ser tomadas como possíveis raízes das neuroses e complexos, tornando um trabalho enfadonho até mesmo para os analistas mais experientes. As queixas levantadas em análise pelos indivíduos quase sempre são vagas e sem grande objetividade já que o problema em si é muito mais do coletivo que do pessoal, segundo Jung:
[…]É difícil saber se tais problemas são de natureza pessoal ou de natureza geral (coletiva). Parece-me ser este último o caso. Enquanto não é reconhecido como tal um problema coletivo toma sempre a forma pessoal e provoca, ocasionalmente a ilusão de uma certa desordem no domínio da psique pessoal. (Jung, 2015e, p. 234)
É importante ficar claro que o coletivo, a que Jung faz referência nesta última citação, é o coletivo familiar, afinal de contas os primeiros momentos de vida de uma criança são totalmente envolvidos pelos pais. Todo o cuidado, todo o carinho e atenção necessários estão voltados para esse pequeno ser. Neste estágio da vida não existe experiência pessoal, apenas a experiência do coletivo ao seu redor. Seriam então os complexos formados a partir dos complexos dos pais, seriam esses complexos na criança a neurose inconsciente dos pais? Na história humana podemos encontrar essas referências em muitos lugares e culturas, da bíblia a filosofia budista. Por isso a preocupação de Jung com a importante tarefa dos pais e dos educadores de se trabalharem e desenvolverem psiquicamente é de extrema importância, já que “a criança se encontra de tal modo ligada e unida à atitude psíquica dos pais, que não é de causar espanto se a maioria das perturbações nervosas verificadas na infância devam sua origem a algo de perturbado na atmosfera psíquica dos pais.” (Jung, 2012f, §80)
Posto isso, fica claro que para algumas questões apresentadas pelas crianças, quando levadas para um trabalho terapêutico, são na verdade apenas expressão dos problemas dos pais, os verdadeiros neuróticos. Essas crianças passam a repetir em suas vidas tudo aquilo que não foi vivido por seus pais, tudo aquilo que não foi possível de se tornar consciente. Quando na vida adulta, tudo que não foi vivido de forma genuína e consciente, somado no que pertence ao campo da experiencia pessoal, torna-se combustível para que os velhos problemas sejam vivenciados pelas gerações seguintes como novos problemas. Por isso, a atitude de alteridade é o caminho inicial para conseguir distinguir o que é meu e o que é do outro, neste caso, o que pertence a história dos pais e a de si próprio. Essa é uma das tarefas mais importantes na vida, conforme explica Johnson:
A tarefa mais importante em nossos anos de maturidade é viver nossa vida não vivida, o que deve ser alcançado muito antes que uma tragédia nos abale profundamente ou que cheguemos ao nosso leito de morte. Viver nossa vida não vivida é tornarmo-nos realizados; é trazer propósito e significado para nossa existência. (Johnson & Ruhl, 2011, p. 13)
A partir da reflexão a respeito do viver a vida não vivida é que podemos abordar a questão da autenticidade dos próprios sentimentos, afinal de contas, se podemos chegar ao ponto de viver o que não nos pertence, então poderíamos afirmar que os sentimentos decorrentes destas experiencias também não nos pertencem. Tal pensamento não teria valor para nós, porque mesmo sendo ou não nossos os sentimentos, eles foram experimentados, em algum momento foram vivenciados e precisam ser conscientizados. Jung deixa claro essa ideia quando está falando do valor da ab-reação, de que nada adianta apenas reviver, porque é preciso reviver diante do outro, na figura do médico/terapeuta. e reconhecer todas a possibilidades contidas na conscientização destes conteúdos:
O paciente deve ser capaz, não só de reconhecer a causa e a origem de sua neurose, mas também de enxergar a meta a ser atingida. A parte doente não pode ser simplesmente eliminada, como se fosse um corpo estranho, sem o risco de destruir ao mesmo tempo algo de essencial que deveria continuar vivo. Nossa tarefa não é destruir, mas cercar de cuidados e alimentar o broto que quer crescer até tornar-se finalmente capaz de desempenhar o seu papel dentro da totalidade da alma. (Jung, 2011a, §293)
O que precisamos oferecer para nossos clientes é o suporte necessário para conseguir tomar consciência dos reais sentimentos e emoções de forma autêntica, nesta ampliação de consciência é preciso vencer o medo que surge quando o indivíduo se questiona. Se esses sentimentos não são meus, então quais são, o que é real na minha vida se o que eu sentia não era meu?
Por isso mesmo que a atitude do analista é parte integrante das possíveis transformações que podem surgir a partir deste enfrentamento. Mais do que nunca, é preciso estar claro que “o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento.” (Jung, 2011d, §185) Precisamos estar prontos e preparados para ajudar nossos clientes no desenvolvimento desta atitude, para que tenha condições de enfrentar o medo da desconstrução e ao mesmo tempo se colocar aberto para uma autêntica construção do que é real no seu ser. Somente desta forma esse indivíduo pode continuar seu caminho de desenvolvimento mais conhecido no meio junguiano como o processo de individuação.
Daniel Gomes – Analista em formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata
Referências
Johnson, R. A., & Ruhl, J. M. (2011). Viver a vida não vivida. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2011a). Ab-reação, análise dos sonhos e transferência (Vol. 16/2). Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
Jung, C. G. (2011d). A prática da psicoterapia (Vol. 16/1). Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2012f). O desenvolvimento da personalidade (Vol. 17). Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2015e). Memórias, Sonhos, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.