Ao longo de nossa existência, precisamos passar por transformações estruturais em nossas personalidades; transformações que são, a um só tempo, anímicas e fisiológicas: transformações arquetípicas (Cf. BRENNAN e BREWI, 2004, p. 38). É assim ao passarmos da infância à adolescência, da adolescência à juventude, da juventude à meia-idade e da meia-idade ao fim da vida (Cf. JUNG, 2013a, §756-7-8).
Psicologicamente falando, tratam-se de mudanças significativas de mentalidade, verdadeiras mortes e renascimentos. É preciso “morrer” como criança para “nascer” jovem; “morrer” como jovem para “nascer” para a meia-idade e, assim, tomar o rumo da velhice (Cf. HOLLIS, 2020, p. 20). No caso específico da mudança que se vive na meia-idade, podemos chamar também de metanoia. Jung a entende como uma transmutação psíquica significativa a partir de um relevante e profundo acréscimo de consciência. Sua finalidade seria livrar o homem do “pecado” da ignorância, da inconsciência (Cf. JUNG. 2011a, §299).
Em linhas gerais, essas diferentes etapas da vida exigem, sempre, uma “nova consciência”. A criança, na adolescência, começa a se abrir para o mundo, para as relações que extrapolam o círculo familiar. É preciso, ao se tornar um jovem adulto, conquistar seu lugar no mundo: ter uma profissão, segurança financeira, relações sociais consistentes etc. Esse é o chamado da natureza (Cf. JUNG, 2013a, §769).
Já na meia-idade, segundo Jung (2013a, §778), “o Sol começa a declinar e este declínio significa uma inversão de todos os valores e ideias cultivados durante a manhã […] A luz e o calor diminuem e por fim se extinguem”. No meridiano da existência, para Jung (2013a, §800), “só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque, na hora secreta do meio-dia, se inverte a parábola e nasce a morte”. Para ele, “a segunda metade da vida não significa subida, expansão, crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término”. Não aceitar esse fato, assim como se recusar a conquistar seu lugar no mundo na juventude, equivale a não querer viver.
A metanoia não tem um marco etário preciso, varia de psique para psique — e neste artigo, vale o registro, tratamos mais diretamente da psique masculina. Tampouco é certo que se dê, na prática, em todas as pessoas. Ainda assim, pela experiência é possível afirmar que tende a acontecer entre os trinta e quarenta e cinco anos de vida. Seja quando for, a metanoia não é uma experiência trivial, ainda mais em uma sociedade que supervaloriza as qualidades da juventude, desvaloriza a velhice, superestima o racionalismo, os bens materiais e despreza a espiritualidade.
Há pelo menos sete ou oito décadas, Jung já havia notado o impacto do racionalismo da civilização ocidental sobre seus indivíduos e considerava que as depressões e crises de ansiedade, comuns na meia-idade em nosso mundo, eram frutos da ruptura entre o homem moderno e a sua própria religiosidade (Cf. JUNG, 2013a, §790). E por que essa cisão teria tal impacto sobre a psique humana?
De onde vem o chamado à transmutação
Nossa psique, na visão junguiana, não se constitui apenas de consciência e inconsciente pessoal — este, fruto de vivências e memórias reprimidas da consciência. Jung (2011b, §3) desenvolveu a tese do inconsciente coletivo: “optei pelo [termo] ‘coletivo’ pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal”, possuindo “conteúdos e modos de comportamento” que são “os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos.” A tais conteúdos, Jung deu o nome de arquétipos, que seriam as imagens primordiais que nos habitam.
Jung (2013a, §794) escreve que tais símbolos “são as matrizes de qualquer pensamento que nossa consciência seja capaz de cogitar”. As religiões e os mitos são constituídos dessa mesma “matéria” e foi justamente por causa de um profundo estudo de religião comparada, da experiência que teve em hospitais psiquiátricos e do exercício da psicologia clínica que Jung constatou que tais símbolos, mesmo que mudem na forma, entre diferentes povos e pessoas, têm a mesma essência. A ideia de uma vida após a morte seria, para Jung, um desses pensamentos primordiais.
Segundo ele, o racionalismo de nosso mundo contribui para que as pessoas, sobretudo na meia-idade, vivam um sofrimento psíquico fruto da negação da própria e natural espiritualidade. Isso é especialmente comum na população mais culta (Cf. JUNG, 2013a, §790), porque a adesão a uma religião coletiva não costuma funcionar para elas. Os cultos e ritos das igrejas, muitas vezes, não lhes causam o efeito numinoso necessário para despertá-las para a atitude religiosa fundamental na meia-idade.
Sobre o valor da atitude filosófico-religiosa
Mas, afinal, o que seria essa atitude? “Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, que, de acordo com o emprego originário do termo: religio, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos conhecidos como ‘potências’” (JUNG, 2012, §8). Por potências, Jung quer dizer complexos e arquétipos. Sobre esses conteúdos é que o indivíduo deve se debruçar com religiosa dedicação para compreender que mensagens sua natureza traz.
Vale dizer que os complexos são conteúdos do inconsciente pessoal com um núcleo arquetípico e se constituem de imagens de determinadas situações psíquicas de forte carga emocional (Cf. JUNG, 2013a, §201). São nessas imagens, que se manifestam de diversas formas, inclusive em sonhos, mas também em visões, realizações artísticas e outras experiências, que precisamos encontrar os símbolos que nos levarão a integrar aspectos valiosos do inconsciente à consciência.
Para mostrar a necessidade psicológica do homem de estar sob os desígnios dos “princípios simbólicos”, Jung (2013a, §788) recorre a exemplos de povos tradicionais, que, a seu ver, em virtude de uma relação mais integrada com a natureza, compreendem mais naturalmente o papel do indivíduo na segunda metade da vida: “Nas tribos primitivas, observamos que os anciãos quase sempre são guardiões dos mistérios e das leis, e é através destas, sobretudo, que se exprime a herança cultural da tribo”.
Além de toda a experiência acumulada, esses anciãos estão mais próximos da morte física, da vida espiritual e coletiva do inconsciente. É possível dizer que, para eles, o mundo onírico, que em grande medida se confunde com o mundo vígil, é uma espécie de templo no qual é possível integrar o indivíduo ao todo, justamente por reservar, ao mistério, um papel inestimável e insubstituível.
Dos conteúdos do inconsciente coletivo, quando se trata da tal atitude religiosa, deve-se destacar o Self, ou Si-mesmo, o arquétipo da totalidade que, na teoria junguiana, abrange toda a consciência e inconsciência da psique. Estamos falando do arquétipo cuja representação é a imagem de Deus (Cf. JUNG, 2011a, §9). Em última análise, a atitude religiosa de que tratamos pressupõe a capacidade de o ego, centro focal da consciência, colocar-se a serviço do Self.
Para isso, é necessário que o indivíduo seja capaz de integrar, antes, outros conteúdos do inconsciente, como mensagens trazidas pela anima, o lado feminino da psique inconsciente masculina e fator determinante de suas projeções: “Onde quer que se manifeste: nos sonhos, nas visões e fantasias, ela aparece personificada, mostrando características de um ser feminino” (JUNG, 2011a, §26). O correspondente feminino à anima, na concepção de Jung (2011a, §29), seria o animus: “Este vocábulo significa razão ou espírito. Como anima corresponde ao Eros materno, o animus corresponde ao Logos paterno”.
Outro arquétipo importante é a sombra, que reúne atributos negados e desagradáveis ao ego, mas cuja integração de alguns de seus elementos é imprescindível para a autotransformação (Cf. JUNG, 2011a, §13-4), que, por sua vez, é a derradeira etapa do processo que Jung (2011b, §489) batizou de individuação: “Uso o termo ‘individuação’ no sentido do processo que gera um ‘individuum’ psicológico […] uma unidade indivisível, um todo”, fruto, justamente, grosso modo, dessa transformadora e íntima tomada de consciência.
O caso do intelectual e seus 400 sonhos
A análise junguiana está fortemente alicerçada na ampliação dos sonhos, que se constituem verdadeiras vias de acesso a conteúdos do inconsciente, como os citados anima e sombra. Em “Psicologia e religião”, ao analisar o caso de um cliente, um intelectual na meia-idade e “extremamente racionalista”, que registrou mais de 400 de seus sonhos, Jung demonstra como a análise contribui para o encontro da atitude necessária para dar significado e sentido à crise do meio da vida (Cf. JUNG, 2012, §39).
Os sonhos mostram como seu analisando havia se distanciado não só de sua fé, mas também de sua afetuosidade, negligenciando sua anima, cujo encontro era pré-requisito para acessar a própria religiosidade (Cf. JUNG, 2012, §71). Em sua realidade vígil, o analisando, de alguma maneira, procurava esquivar-se do contato com a anima. No fundo, ele tentava, aos olhos de Jung, encaixar a imagem de Deus em sua racionalidade. Mas seus sonhos diziam que isso não era possível, pois, antes, era necessário abrir-se à anima para reconhecer a própria inconsciência.
Depois de despertá-lo para a anima, seus sonhos levam-no a outras representações arquetípicas da totalidade (Cf. JUNG, 2012, §91-2), no caso, símbolos circulares e quaternários. Ao longo de décadas de análise de sonhos, Jung constatou que a presença de tais símbolos são comuns no universo onírico e que os sonhadores, embora desconheçam seu significado histórico e sagrado para civilizações antigas, são capazes de associá-los, intuitivamente, à ideia de um princípio criador, um “Deus interior” (Cf. JUNG, 2012, §100).
No caso em questão, o avanço do processo levou o analisando a imagens cada vez mais numinosas (de inspiração sagrada, divina), as quais ele conseguiu atribuir significado e, por conseguinte, alcançar a atitude necessária para o autoconhecimento e a transformação que seu momento de vida exigia (Cf. JUNG, 2012, §124).
A busca conjunta pelo “fator eficaz”
Jung escreveu que, enquanto escolas e faculdades preparam os jovens para viver a primeira metade da vida, não há cursos para as pessoas ingressarem na segunda (Cf. JUNG, 2013a, §784). Porém, pondera que, em outros tempos, as igrejas costumavam ter mais êxito nessa missão, mas “[…] acreditar tornou-se uma arte tão difícil, hoje em dia, que está fora da capacidade da maioria das pessoas” (JUNG, 2013a, §790).
Vimos, contudo, no exemplo acima, que a crença em um significado existencial que transcenda a própria vida pode ser alcançada no processo analítico. Essa atitude é bem mais profunda na prática do que possa parecer à primeira vista. Para Jung, tal atitude seria tão importante ao homem que vive a “passagem do meio”, quanto para o analista. E é aqui que, finalmente, este artigo chega ao que promete no título.
No esforço por encontrar, em seus sonhos, algo que lhe sirva também em sua vida prática, o analisando precisa chegar a um “fator eficaz” de compreensão dos símbolos oníricos — a palavra verdade, nesse caso, soaria pretensiosa demais (Cf. JUNG, 2013b, §95). O papel do analista, então, é “procurar, junto com o paciente, o fator eficaz. Por isso, é de extrema importância ter a maior quantidade de informações possível a respeito da psicologia primitiva, da mitologia, arqueologia e histórias de religiões comparadas”. Essas áreas fornecem preciosíssimas analogias, que servem para enriquecer as inspirações dos pacientes: “Juntos poderemos fazer com que as coisas, aparentemente sem sentido [do mundo onírico], se acerquem da zona rica em significado” (JUNG, 2013b, §95-6).
A quem o método possa parecer excessivamente fantasioso, o próprio Jung (2013b, §96) responde: “No fundo, no fundo, nunca superamos a fantasia. Existem fantasias sem valor, deficientes, doentias, insatisfatórias, não resta a menor dúvida. Em pouco tempo, qualquer pessoa de mente sadia percebe a esterilidade de tais fantasias”. E acrescenta: “No entanto, como é sabido, o erro não invalida a regra. Toda a obra humana é fruto da fantasia criativa”.
A formação junguiana como rito de passagem na metanoia
Fica evidente, então, que, se a missão do analista é ajudar o analisando a encontrar sentido nas imagens primordiais e em passagens como o envelhecimento e a morte, é indispensável que, antes, seja capaz de encontrar tais sentidos e significados em si mesmo. Jung (2013b, §166) escreve: “o médico também ‘está em análise’, tanto quanto o paciente. Ele é parte integrante do processo psíquico do tratamento [e] está exposto às influências transformadoras”. Por isso, a formação para analista exige que o aspirante se submeta à análise e à supervisão, constantemente, e que considere e observe, de forma religiosa, seus próprios conteúdos inconscientes para ser capaz de ajudar o analisando a fazer o mesmo por si.
Na obra “Psicoterapia”, a analista Marie-Louise von Franz traz um caso que ilustra, com propriedade, o que queremos dizer. Ela conta a história de um homem que, aos quarenta anos, passa por uma transição de carreira e encontra, na formação como analista, a chance de fazer a transformação que sua natureza pede. A analista conta que seu analisando experimenta, ao iniciar os atendimentos, grande insegurança por duvidar de sua capacidade de ampliar os sonhos de suas clientes (Cf. FRANZ, 2021, p. 14).
É, então, que ele sonha ser um intérprete de sonho. Marie-Louise von Franz divide o metassonho de seu analisando em quatro partes (Cf. FRANZ, 2021, p. 15). Na primeira, os sonhos vêm em um pergaminho gigante que se desenrola e, quando “intérprete” e sonhador — um jovem loiro que von Franz entende ser a representação do Self de seu analisando —, põem-se a analisar juntos o que está escrito, o pergaminho é atingido por pedras que caem do céu: o vasto e misterioso inconsciente, segundo von Franz. Os pedaços resultantes do choque viram pães, ou seja, algo que pode ser digerido ou integrado à consciência. Os choques também geram porcas e parafusos, novamente a ideia de integração, que se acumulam e viram uma imensa pirâmide: símbolo tumular e da imortalidade (Cf. FRANZ, 2021, p. 17).
Na segunda parte, o sonho apresenta um rio: fluxo da vida e da transformação permanente. A pirâmide, agora se constitui de quadros e triângulos que lembram a obra do pintor cubista Braque, e reforça a ideia de união dos opostos (Cf. FRANZ, 2021, p. 24). No topo da pirâmide, que, em si, representa a totalidade e onde as quatro faces triangulares se unem num só ponto, há um vazio numinoso: a visão panorâmica necessária para a ampliação dos sonhos (Cf. FRANZ, 2021, p. 23).
Na terceira etapa, o sonho faz da pirâmide de quadros e triângulos uma pirâmide de fezes. Nela, o sonhador consegue divisar a mão de Deus e, no topo da pirâmide, o vazio radiante agora passa a representar, para o sonhador, a face de Deus. Segundo von Franz (2021, p. 25): ‘Os alquimistas da Antiguidade e da Idade Média nunca se cansavam de repetir que a pedra filosofal ‘é descoberta no meio do excremento’ e que as pessoas deste mundo descuidadamente esmagam esse refugo”.
Na quarta parte, o sonhador se vê em análise com von Franz (2021, p. 26), e ela diz, a ele, que tem “sessenta e um anos, não dezesseis, mas que a soma interna dos dois números é sete”: um número bastante simbólico, até porque também é o resultado final da soma de três e quatro. Assim, é possível afirmar que o número sete está presente em todo o sonho e traz a ideia de desenvolvimento da personalidade em busca da totalidade, em busca de um sentido divino e numinoso (Cf. FRANZ, 2021, p. 26-9).
Marie-Louise von Franz, antes de terminar as suas considerações sobre o sonho do analisando, estabelece uma relação entre os números que aparecem no contexto onírico com o contexto de vida vígil dele. Ela lembra que seus quarenta anos o colocam no meio do caminho entre a idade da própria von Franz, à época, e a idade das moças que ele começava a atender. Ele tinha muita experiência de vida para elas, mas, mesmo assim, sentia-se inseguro: a saída, então, era seguir a trilha do autodesenvolvimento, representado pelo número sete. Afinal, como escreveu von Franz (2021, p. 27): “a vida é desenvolvimento, tanto na juventude quanto na velhice”.
O sonho busca dizer, então, ao “jovem” analista, que, para ser capaz de ajudar seus clientes a ampliar seus sonhos, ele precisa, antes, ter um compromisso inexorável com o próprio autoconhecimento, precisa antes e mais intensamente se dedicar à ampliação de seus próprios sonhos (Cf. FRANZ 2021, p. 28).
Embora não seja requisito obrigatório, a experiência da meia-idade pode se somar às competências necessárias a um analista. Da mesma maneira, o fato de a análise exigir do terapeuta o exercício da atitude religiosa leva-nos a acreditar que a formação possa ser também um “rito de passagem”, fonte de entusiasmo para o homem que vive o meridiano de sua jornada. Afinal, como escreveu James Hillman (2001, p. 12), a crise da meia-idade “refere-se menos ao fato de ser velho demais do que ser jovem demais […] não se refere à falta de capacidade, mas à falta de ilusão […] aos quarenta anos não temos oitenta, e temos muito mais ‘tempo acordados’ pela frente do que no nosso passado”.
Wagner Hilário – Membro Analista em Formação
E. Simone – Magaldi Membro Didata
Bibliografia
BRENNAN e BREWI, Anne e Janice. Arquétipos junguianos — a espiritualidade na meia-idade. São Paulo: Madras, 2004.
FRANZ, Marie-Louise von. Psicoterapia. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2021.
HILLMAN, James. A força do caráter: e a poética de uma vida longa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
HOLLIS, James. A passagem do meio — da miséria ao significado da meia-idade. São Paulo: Paulus, 1995.
JUNG, C. G. Aion — estudo sobre o simbolismo do Si-mesmo, 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011a.
_________. A natureza da psique. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
_________. A prática da psicoterapia. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
_________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011b.
_________. Os fundamentos da psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 2017.
_________. Psicologia e religião. 11ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.