As músicas são uma expressão que toca, mobiliza o sentimento e gera identificação. Elas nascem de um movimento da alma humana que se exprime na forma lírico-poética, uma inspiração, e, uma vez executadas, seguem seu percurso afetando os ouvintes.
Esta mobilização do afeto fica explícita em “Certas canções”, de Tunai e Milton Nascimento (álbum Anima, 1982, Ariola Discos). Ela é uma espécie de meta-canção, que explicita o efeito que algumas músicas são capazes de gerar. A que causou essa inspiração em Milton foi “Ebony and Ivory”, de Paul McCartney e Stevie Wonder. Conforme contou numa entrevista ao jornalista Danilo Nuha (que anos depois colocou num livro sobre as músicas de Milton Nascimento), ao ouvi-la no rádio, resmungou: “Como eu não pensei nisso antes?”. Tempos depois, Tunai enviou-lhe uma música para a qual pediu-lhe a letra, e nasceu “Certas canções”.
Hoje somos muitos de nós que, ao ouvi-la, sentimos que dá palavras ao processo que certas canções fazem conosco – inclusive ela. O objetivo deste artigo é, pela análise da referida música do ponto de vista da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, ajudar a compreender um pouco o poder da música de gerar emoções e transformar a partir do afeto.
“Como não fui eu que fiz?”
A primeira estrofe da referida música é esta:
Não é à toa essa identificação que certas músicas causam, que parecem nos caber tão bem, vestir tão bem, acertar em cheio ao conseguir dar as palavras perfeitas, no alvo, para o que sentimos. Elas tocam um fundo em que nos encontramos conectados uns aos outros. Há um solo comum da humanidade, um “psíquico objetivo” nessas manifestações. Assim afirma Jung: “Do inconsciente emanam influências determinantes, as quais, independentemente da tradição, conferem semelhança a cada indivíduo singular, e até identidade de experiências”. (2018a, §118) Segundo ele, isso ocorre também na forma de representar imaginativamente essas experiências, o que cabe, por exemplo, nas canções. É que “nossa fantasia, percepção e pensamento são […] influenciados por elementos formais inatos e universalmente presentes” (2018a, §92), aos quais Jung denominou de arquétipos.
Os arquétipos são formas preexistentes sem conteúdo, uma estrutura herdada, que guarda os depósitos das experiências do ser humano desde os primórdios.
Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precisamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado. (2018a, §99).
Não temos acesso direto aos arquétipos, mas às imagens arquetípicas, que são conteúdos do inconsciente coletivo, universais e que existem desde os tempos mais remotos e vêm sendo formados ao longo da vivência da humanidade, como mãe, pai, bruxa, criança, luz, trevas, velha, sábio, feminino, masculino etc. (Cf. JUNG, 2018a, §§ 5-6; 89). Jung afirma diretamente em uma conversa com a pianista Margaret Tilly (McGUIRE; HULL, 1982, p. 247) que “a música lida com material arquetípico”.
Este material não é neutro, mas carrega e gera uma forte carga de emoção, a ponto de Jung afirmar que os arquétipos aparecem na experiência prática como “ao mesmo tempo imagem e emoção” e que só podemos nos referir a eles “quando esses dois aspectos se apresentam simultaneamente” (2016, p. 122). Para ele, é a energia psíquica que dá às imagens arquetípicas importância significativa. “Quando carregada de emoção, a imagem ganha numinosidade (ou energia psíquica) e torna-se dinâmica, acarretando várias consequências.” (Ibid.) Em outras palavras, produzindo efeito. Essa numinosidade é que dá sentido e vida às imagens, tornando-se “porções da própria vida” da pessoa, ligando-se a ela “através de uma verdadeira ponte de emoções”.
Esta forte emoção aparece na segunda estrofe de “Certas canções”, que veremos a seguir.
Assim continua a música de Milton Nascimento e Tunai, evidenciando o movimento do afeto causado por algumas músicas. Vai muito além de uma identificação consciente que se possa ter com o conteúdo, gerando mesmo uma reflexão. Aqui fica claro que é algo que toma, atravessa, arrebata, que pode vir tanto da letra como do instrumental, do ritmo ou do conjunto, de uma parte ou do todo. “Certas canções” começa suave, embalando-nos num fluxo manso, mesmo neste início tranquilo já apresenta algumas batidas sutis; vai aumentando a partir da terceira estrofe e, de repente, na quinta, da qual falaremos a seguir, traz uma batida bem cadenciada, como que martelando uma identificação pela qual neste ponto já estamos tomados. Isso nas palavras de alguém que é apenas ouvinte, sem conhecimento algum de teoria musical.
A letra de uma música traz o que Jacobi chama de “imagens-palavras” (2013, p. 158), que aparecem em expressões poéticas que surgem internamente ou que estão aí na arte e com a qual nos identificamos, somos tocados. São palavras que escapam do conceitual e da linguagem denotativa ou literal e se retorcem para abrir uma via ao sopro do coração. A identificação e emoção que a música desperta em nós, segundo Jung (1991, §127), vêm dessas imagens cantadas e tocadas. “Cada uma destas imagens contém um pouco de psicologia e destino humanos, um pouco de dor e prazer repetidos inúmeras vezes na nossa genealogia”. Na voz de Milton: “como se fosse o amor”.
A criação da obra de arte – no caso, da música – pode se dar em dois tipos de processo, segundo Jung.
Um mais consciente, dirigido pela intenção do autor; outro inconsciente, que toma o artista e se impõe, até contra a sua vontade (cf. 1991, §116). O primeiro caso acaba se atendo mais à esfera pessoal, e o segundo a transpõe. Mesmo que a liberdade criativa seja em grande parte uma ilusão e as coisas se misturem de fato. “Ele acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível.” (Ibid., §113)
E aí faz sentido o que Jung afirma antes de mostrar os dois caminhos: de qualquer forma, a obra de arte tem vida própria.
A obra de arte deverá ser considerada uma realização criativa, aproveitando livremente todas as condições prévias. […] Aliás, poderíamos até falar de um ser que utiliza o homem e suas disposições pessoais apenas como solo nutritivo, cujas forças ordena conforme suas próprias leis, configurando-se a si mesma de acordo com o que pretende ser. (JUNG, 1991, §108)
Na primeira parte de “Certas canções” (primeira e segunda estrofes), o compositor parece falar da própria experiência, o sujeito se coloca mais, fazendo-se ver. A terceira estrofe já traz certa mudança, fazendo como que uma transição para o que vem adiante. A partir da quarta estrofe, o artista parece ser tomado, lança várias imagens-palavras, sendo que cada uma seria um oceano no qual mergulhar. A própria batida parece trazer este transe que nos deixa absortos e perplexos também, tira-nos de uma possibilidade de entendimento total, apenas nos leva, como que às apalpadelas.
Jung comenta como essa identificação com o que estamos chamando aqui de solo comum da humanidade, com as imagens arquetípicas – na expressão dele, “situação mitológica” – produz uma intensidade emocional: “é como se cordas fossem tocadas em nós que nunca antes ressoaram, ou como se forças poderosas fossem desencadeadas de cuja existência nem desconfiávamos” (1991, §128).
Com uma expressão belíssima, Jung afirma que na criatividade sentimos diretamente o “grande segredo da vida” (1991, §120). Isso se dá na fruição da obra de arte. Agora, quando nos colocamos a refletir e falar sobre ela, como no caso deste artigo, deslocamo-nos para fora do processo criativo, no qual ela simplesmente é e expressa um mistério, e ela se torna para nós imagem que expressa um sentido (Cf. ibid., §121). Falaremos um pouco mais a seguir da amplitude deste sentido.
“Expressão de uma essencialidade”
Água, fogo, cacos, vida, chão, sonho, povo, coração, ferida, chuva, outono, mar, carvão, giz, abrigo, gesto, olhar, calor, amor: são palavras presentes da terceira à quinta estrofe de “Certas canções” e, como dissemos, cada uma delas abre um mundo de sentido. Fora os verbos: invade, arde, queima, encoraja, carece de cantar. Para Jung, o símbolo é capaz de retomar a relação perdida com o sagrado na natureza/no natural, já não inconsciente, mas trazendo à consciência e oferecendo um possível caldeirão de transformação da energia psíquica, uma força criadora polivalente e indiferenciada.
Por isso, para ele, a obra simbólica nos sensibiliza mais e mexe mais com nosso íntimo; já a não-simbólica fala mais à sensibilidade estética.
Jung classifica a obra de arte em psicológica e visionária. A primeira, bem resumidamente, traz vivências e sentimentos da esfera pessoal, com as quais se pode identificar; dá palavras a eles, mas não costuma suscitar indagações e questionamentos. A segunda desconcerta, surpreende, confunde, chega a gerar repugnância e levanta questões, porque é tudo, menos óbvia. Parece com as imagens de sonhos e fantasias, traz a obscuridade da alma (cf. JUNG, 1991, §143).
Não ousaria fazer esse nível de análise sobre “Certas canções”, muito menos levando a pensar o que Jung diria. No entanto, arrisco-me a dizer que a primeira e a segunda estrofes parecem ser mais do tipo “psicológico”; a partir da terceira há uma mudança inquietante. Já não a acompanhamos com a fluidez da identificação, mas paramos em alguma das palavras, perdemos o resto; essa que nos acapara abre uma viagem imagética que nos tira do eixo, do lugar, já não sabemos bem onde estamos ou o que estamos fazendo. Isso começa a acontecer na terceira estrofe e intensifica-se na quarta. A quinta retoma os sentimentos, a identificação, o “psicológico”, como que trazendo de volta da viagem com uma batida que põe de novo os pés no chão – ou não.
Jung fala que “uma vivência originária autêntica” se faz presente nas obras visionárias.
Por isso, elas são “um símbolo real, a expressão de uma essencialidade desconhecida. […] Desde tempos imemoriais, são associadas àquilo que é secreto, inquietante e dúbio” (1991, §148). Sendo assim, constitui-se em “um desafio à nossa reflexão e compreensão” (Ibid., §119).
O que significam as tantas imagens-palavras “oceânicas” usadas por Milton na música pulsante de Tunai? Por mais que falemos delas e até perguntemos ao próprio compositor, há sempre uma dimensão escondida, maior inclusive e precisamente a que mais fundo nos remexe. Mais do que interpretá-la, vale deixar que a obra de arte – “Certas canções” ou a canção que toca a alma – exerça o seu efeito, afete e transforme. Fica o convite do próprio Jung:
Só o percebe quem se aproxima da obra de arte, deixando que esta atue sobre ele, tal como ela agiu sobre o poeta. Assim, para compreender seu sentido, é preciso permitir que ela nos modele, do mesmo modo que modelou o poeta. (JUNG, 1991, §161)
Tania Pulier — Analista em formação/IJEP
Lilian Wurzba — Analista didata/IJEP
Referências:
JACOBI, Jolande. A psicologia de C. G. Jung: uma introdução às obras completas. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Vol. 15. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
___ et al. O homem e seus símbolos. 3.ed. especial. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2016.
___. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1. 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2018a.
___. Símbolos da transformação. Vol. 5. 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2018b.
LIVRO mostra como Milton Nascimento pensa suas canções. O Tempo, 23 set. 2017. Disponível em: https://www.otempo.com.br/entretenimento/magazine/livro-mostra-como-milton-nascimento-pensa-suas-cancoes-1.1523536. Acesso em: 26 abr 2024.
McGUIRE, W.; HULL, R.F.C. A terapia da música. In: ___. C.G.Jung: Entrevistas e Encontros. São Paulo: Cultrix, 1982.
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