Apesar de o debate sobre a importância da saúde mental ter aumentado nos últimos dois anos, com o confinamento provocado pela pandemia de Covid-19, o sofrimento psíquico continua sendo pouco reconhecido e legitimado não apenas no senso comum, mas também nos ambientes de trabalho e políticas públicas. O objetivo deste artigo é, mostrando vários ângulos deste não reconhecimento, dar relevo ao papel da psique na saúde integral, a partir da visão da Psicossomática que dialoga com a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung.
Segundo o relatório mundial da Saúde de 2001 da Organização Mundial da Saúde, que trouxe como tema a saúde mental (cf. WHO, 2001), já no início do século XXI uma em cada quatro pessoas sofreria com alguma doença mental em determinada fase de sua vida, e até 2030 a depressão se tornaria a doença mais comum do mundo e a maior causa de perdas para a população em termos de saúde pública. Entre outras ações, o relatório pede programas de acompanhamento e cuidado nas comunidades, mais profissionais preparados, apoio à pesquisa e sensibilização da população quanto à importância do cuidado com a saúde mental.
Não obstante, o novo Atlas da Saúde Mental da própria OMS, que reuniu dados de 171 países durante o ano de 2020, revelou que, apesar de ter havido um aumento de programas de promoção e prevenção na área da saúde mental (de 41% dos Estados-membros em 2014 para 52% em 2020), sua eficácia é questionável, por falta de investimentos humanos e financeiros. As metas propostas não foram alcançadas e há um déficit de financiamento, mesmo com a necessidade crescente dele devido à pandemia da Covid-19 (cf. Opas, 2021).
Com a pandemia, de fato, vários alertas têm sido feitos a respeito dos abalos para a saúde mental gerados por toda a situação de insegurança sanitária, social e econômica, confinamento prolongado e perdas. No Brasil, o Ministério da Saúde (2021) alertou sobre o agravamento dos transtornos que já afetavam a população (mais de 18 milhões de brasileiros sofriam de ansiedade mesmo antes da pandemia e mais de um terço dos fatores de incapacitação de pessoas nas Américas devia-se a transtornos mentais). Retomou os termos “fadiga pandêmica” e “definhamento”, usados pela OMS para trazer relevância aos sintomas de cansaço, esgotamento físico e mental, falta de propósito, desesperança, desmotivação que antecedem a pandemia, mas foram agravados e muito por ela. Soma-se a isso o luto em grandes proporções de pessoas que sofreram várias perdas e sequer puderam vivenciar os rituais fúnebres como gostariam.
Que o tema da saúde mental tem sido mais tratado é indiscutível. Isso significa, porém, que o sofrimento psíquico já seja reconhecido? Nas Olimpíadas de Tóquio (2021), assistimos com perplexidade à desistência da ginasta estadunidense Simone Biles de disputar a final de solo e outras provas, alegando questões de saúde mental diante da pressão. No início de 2022, foi a vez do brasileiro Gabriel Medina desistir da Liga Mundial de Surfe para cuidar da saúde mental. Se sobre os famosos as opiniões já se dividem, e há quem considere a decisão luxo ou frescura, jogada midiática ou covardia, para os simples mortais, então, os “veredictos” costumam ser mais duros, e continua-se a ouvir com frequência expressões como “isso é só psicológico” ou “é coisa da sua cabeça”.
Real, legítimo e com potencial transformador
No texto “Da formação da personalidade”, da conferência intitulada “A voz do íntimo”, de 1934, Jung fala dos que têm a coragem de trilhar seu próprio caminho e assim desenvolver a personalidade, para além da coação e proteção do grupo, a partir da necessidade (por acontecimentos internos ou externos), da decisão moral e da escuta e confiança na voz do íntimo que os impele a emancipar-se das convenções sociais. Neste contexto, utiliza a expressão “Isso nada mais é do que psicologia”, da parte dos que se opõem com preconceitos a este caminho (JUNG, 2020, §302). É interessante a semelhança com o julgamento do senso comum, mesmo na atualidade, sobre o sofrimento psíquico, sobretudo quando compreendemos, a partir do olhar da Psicologia Analítica, que os sintomas são manifestação do inconsciente e mesmo chamado da alma que aponta na direção do processo de individuação, do tornar-se si mesmo, neste caso como oportunidade de rever o que pode estar unilateralizado e por isso levando ao adoecimento.
A essas reflexões caberiam todas as expressões citadas por Jung no mesmo texto, que dizem respeito ao julgamento de quem ousa afastar-se da voz do grupo social para ouvir a voz do íntimo que designa a tomar outro rumo na vida: “tal coisa nem existe”; “se existir, será naturalmente algo ‘doentio’ e, além disso, sem finalidade”; “é ‘uma pretensão descabida pensar que uma coisa dessas tenha importância’”. Lembro-me de uma vizinha que precisou ser afastada do trabalho para tratar de uma depressão. Para melhorar e mesmo como primeiros sinais de melhora, ia tomar sol, mas evitava que os colegas soubessem, pois dizia: “Vir aqui é um esforço que faço para ficar bem, mas qualquer um que me visse assim julgaria minha licença como folga enganosa. Seria tão mais fácil ter quebrado a perna! De um gesso não se duvidaria.”
Reconheço angústia semelhante nos relatos que leio no livro de Psicossomática que não por acaso tem o título “Isso é coisa da sua cabeça” (cf. O’SULLIVAN, 2016). Neles, as pessoas afetadas por sintomas ou transtornos graves sem causa orgânica passam de especialista em especialista, desejando que alguém descubra uma doença clínica para explicar seu sofrimento, pois a eles a origem psíquica parece uma humilhação que não legitima a sua dor. É como se lhes dissessem “Você inventou na imaginação o seu mal e pode pará-lo a qualquer momento”, o que não é bem assim.
A psique é muito mais ampla do que a consciência que, quando inflada, acredita ter o controle de todas as coisas, bem na linha dos parâmetros sociais atuais, que nos apontam o ideal da pessoa independente, autodeterminada, influenciadora, conectada, com o corpo perfeito segundo padrões bem estabelecidos, a “saúde de ferro” e o “pensamento positivo que tudo alcança”. Parece que somos todos “desviados”; a maioria, porém, lutando quixotescamente para aproximar-se o máximo possível desse estabelecido e ignorar ou combater o seu oposto. Que atualidade têm os seguintes apontamentos de Jung feitos há quase um século!
A gente quase se sente um mágico que por suas artes manipula o que é psíquico e lhe dá a forma caprichosa que deseja. Nega-se o que é incômodo, sublima-se o que é indesejável, afasta-se com explicações o que é angustiante, corrige-se o que se julga um erro; e tem-se por fim a impressão de ter colocado tudo na mais perfeita ordem. (JUNG, 2020, §302)
É na base da negligência de tantos outros elementos que eles mais cedo ou mais tarde cobram a conta, seja por um infarto, uma falência, uma síndrome do pânico ou uma crise de ansiedade. Enquanto vemos os limites dos outros — mais porque projetamos, sem reconhecer os nossos, do que por não os ter —, nos indignamos com o que parece “bobagem”, “frescura” ou “moleza” e nossos conselhos vão nesta linha: “levante-se!”; “tenha força de vontade!”; “dê a volta por cima!”.
Quando ocorrem conosco, sofremos e queremos ser compreendidos, mas muitas vezes nós mesmos continuamos a não nos compreender, uma vez que não acolhemos nossos outros lados e seguimos com a visão unilateral, achando que deveríamos estar na linha reta estabelecida e buscando de curandeiros a remédios mirabolantes ou entorpecentes para tentar a todo custo retomá-la. Julgamos os outros ou nós mesmos como se tudo dependesse apenas do “eu”. “Mas nisso tudo foi esquecido o mais importante: que o psíquico não se identifica nem de longe com a consciência […]. A maior parte do psíquico consta de fatos inconscientes que […] podem desabar sobre nós a qualquer momento”. (JUNG, 2020, §302)
O sintoma acontece exatamente como um sinal de alerta de que algo em nós entrou em cisão e oposição com o padrão dominante da consciência. Um complexo foi constelado, ou seja, uma imagem de forte carga afetiva que toma a vontade da pessoa quase como uma personalidade autônoma, em torno de um conteúdo que une uma imagem arquetípica (imagens formadas pelo inconsciente coletivo ao longo da vivência da humanidade, como mãe, pai, criança, bruxa, bem, mal etc.) a experiências pessoais cuja memória ativa emoções (Cf. JUNG, 2018, §198). Esse conflito chama à ampliação da consciência para um novo jeito de viver.
Chama, convida, mas também pode obrigar. Isso porque o adoecimento não é um evento pontual que surge de repente, mas um processo, que começa com algo que incomoda, uma tensão que podemos escolher ignorar. Podem ocorrer disfunções, como insônia, dor de cabeça, alergias; distúrbios, quando estes se tornam mais fortes e recorrentes; alterações, que começam a aparecer nos exames; até chegar à doença, manifestada mais no físico (uma destruição celular) ou no emocional, mas nunca num único nível. Geralmente, há um fator desencadeante, que se liga com a memória do coração, ou seja, com eventos de vida que se aglomeraram a partir de um princípio difícil de precisar, e que num dado momento eclode, sobretudo se as fases silenciosas foram ignoradas. E apenas neste sentido somos responsáveis — podemos dar ouvidos ou não aos vários chamados que nos são feitos pelos fatos de vida ou pelos primeiros sintomas ou incômodos; não no sentido de se tratar de “coisas da nossa cabeça” que da forma como criamos podemos eliminar.
Percebe-se nessa leitura uma visão integral do humano, biopsicosocioespiritual. Como explica Jung (2018, §418), “há não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa”. Sendo assim, o sofrimento psíquico é tão legítimo como o físico, até porque estão ligados e nenhum acontece isoladamente, apenas com formas diferentes de manifestação.
Ele nos ensina que precisamos rever nossa imagem de mundo limitada e unilateralizada que reduz o real ao material, aos objetos percebidos pelos sentidos, como se o imaterial fosse irreal (até o pensamento o seria, dessa forma). Ora, “aquilo que age, que atua, é real.” (JUNG, 2018, §742) Se nos afeta, se produz efeito em nós, é real. Aliás, à própria realidade material, só temos acesso indiretamente, pelas imagens formadas em nossa consciência por processos complexos do sistema nervoso.
Longe, portanto, de ser um mundo material, esta realidade é um mundo psíquico que só nos permite tirar conclusões indiretas e hipotéticas acerca da verdadeira natureza da matéria. Só o psíquico possui uma realidade imediata, que abrange todas as formas do psíquico, inclusive as ideias e os pensamentos ‘irreais’, que não se referem a nada de ‘exterior’. Podemos chamá-las de imaginação ou ilusão; isto não lhes tira nada de sua realidade. […] A realidade do psíquico, isto é, a realidade psíquica, aquela única realidade que podemos experimentar diretamente, acha-se entre as essências desconhecidas do espírito e da matéria. (JUNG, 2018, §747)
Apenas com o reconhecimento da realidade, legitimidade e mesmo importância do sofrimento psíquico — o seu potencial criativo e transformador como chamado da alma — é que se poderá tratá-lo como é devido, com atenção, interesse, respeito e tempo, e com os investimentos humanos, profissionais e financeiros previstos nos projetos públicos, que geralmente ficam nos papéis. Se insistirmos, porém, em nossa miopia de enxergar apenas o material, talvez os números, já alarmantes, precisem ficar catastróficos para percebermos que algo real e sério está acontecendo quanto à saúde.
Tania Pulier — Analista em formação pelo IJEP
Lilian Wurzba — Analista didata/IJEP
Referências:
BRASIL. Ministério da Saúde. Realidade imposta pela pandemia pode gerar transtornos mentais e agravar quadros existentes, 10 out. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021-1/outubro/realidade-imposta-pela-pandemia-pode-gerar-transtornos-mentais-e-agravar-quadros-existentes. Acesso em: 17 fev. 2022.
JUNG. A natureza da psique. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2018.
_____. O desenvolvimento da personalidade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
O’SULLIVAN, Suzanne. Isso é coisa da sua cabeça: histórias verdadeiras sobre doenças imaginárias. Rio de Janeiro: Best Seller, 2016.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (Opas). Relatório da OMS destaca déficit global de investimentos em saúde mental, 8 out. 2021. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/8-10-2021-relatorio-da-oms-destaca-deficit-global-investimentos-em-saude-mental. Acesso em: 17 fev. 2022.
WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Saúde mental: nova concepção, nova esperança, 2001. Disponível em: https://www.who.int/whr/2001/en/whr01_po.pdf. Acesso em: 17 fev. 2022.