“(…) é algo de grande e misterioso o que designamos por ‘personalidade(…)” (JUNG, 2013a, §312)
Este artigo apresenta uma reflexão inspirada no texto traduzido como “Da formação da personalidade” publicado no Volume VII da Obras completas de C.G. Jung. (JUNG, 2013a, p.178)
A narrativa, de forma interessante, não começa definindo ou conceituando o que se quer dizer com “personalidade”, mas enfatizando sua importância através de um verso de Goethe. Segue afirmando uma “opinião” de quão forte são os desejos de desenvolver a totalidade do ser humano – “à qual se dá o nome de personalidade” (JUNG, 2013a, p.178) itálico do autor. “Se dá o nome” não é a mesma coisa do que dizer que é! Ou seja, pode-se entender que Jung aproxima-se do tema falando dos discursos sobre este e não afirmando positivamente sua literalidade.
Como toda palavra este enigma nomeado “personalidade” é uma presença que tem etimologia, história e pode ser personificada – “as palavras são pessoas” (Hillman, 2010, p.54). O texto aponta que “deveras é algo de grande e misterioso o que designamos por ‘personalidade. Tudo o que se possa dizer sobre ela será sempre singularmente insatisfatório e inadequado (…)” (JUNG, 2013a, §312); aparece nesta narrativa que:
“Personalidade é realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo particular. (…) é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo aliado a máxima liberdade de decisão própria. ” (JUNG,2013a, §289) negritos meus.
Pode-se pensar na personalidade como a realização máxima do particular e individual dentro da mais perfeita adaptação a tudo que é universal. Seria o máximo do particular no máximo do universal. Pois “(…) a camada psíquica mais profunda, sobre a qual se afirma a consciência individual, é de natureza universal (…)” (JUNG, 2013a, §307). Neste sentido universal não estaria em oposição ao particular pois os padrões universais, coletivos, transpessoais ou arquetípicos só se realizariam e se manifestariam a partir de vivencias empíricas particulares que, em associação singular, configuram complexos organizados por grandes temas coletivos.
O texto fala dos efeitos de um ideal pedagógico apresentado como “Educação para a personalidade” (JUNG, 2013a, §284) que teria incrementado um movimento que contrapõe “personalidade” com “homem coletivizado ou normal” produzido pela massificação geral. No entanto a narrativa carrega uma ambiguidade, pode-se dizer um certo cinismo, pois parece estar falando da importância e dos grandes feitos libertadores de personalidades dotadas de liderança e desvaloriza-se a grande massa inerte e secundária, mas ao final aponta que a massa “necessita sempre de um demagogo” (JUNG,2013a, §284). Os exemplos de “personalidades dotadas de liderança” do período da 2ª guerra mundial beiram a caricatura: o Dulce na Itália e o Führer na Alemanha. Neste ponto a narrativa faz uma inflexão ao afirmar que o “problema real” é efeito de um desejo intenso em muitas pessoas de encontrar “uma personalidade” – “O desejo intenso de encontrar uma personalidade se converteu em problema real, que preocupa hoje em dia muita gente” (JUNG,2013a, §284).
É como se este ideal da personalidade estivesse associado à expectativa valorada positivamente de independência das massas e do coletivo; esta valoração produziria um desejo e expectativa de um lugar de liderança redentora. Esta expectativa converter-se-ia em problema; quanto mais massa ou coletivo, mais demanda por personalidade redentora da massificação. É no contexto em que se considera esta posição importante que não ter esta tal “personalidade” – que diferenciasse de um dito “homem coletivizado ou normal” torna-se um problema e, quanto mais este “homem de personalidade” torna-se importante maior fica o problema. Poder-se-ia ver aí elementos que sustentam o culto às celebridades numa sociedade do espetáculo (DEBORD,1997)? Mas isto seria outra reflexão.
Há em Jung uma crítica ao ideal de “educar para personalidade” pois, “geralmente se vê na ‘personalidade a totalidade psíquica, dotada de decisão, resistência e força, mas isto é um ideal de pessoa adulta que se pretende atribuir à infância. ” (JUNG,2013a, §286). Entretanto “no adulto está oculto uma criança, uma criança eterna, algo ainda em formação e que jamais estará terminado (…)” (JUNG,2013a, §286) itálico do autor. Esta criança eterna é considerada por ele uma parte importante da personalidade. Pode-se então pensar em múltiplas personalidades – vontades parciais, pequenas pessoas ou complexos.
Apoiado em estudos de Janet e Prince, Jung fala da extrema dissociabilidade da consciência: “As intenções da vontade ficam dificultadas (pela constelação de complexos) quando não se tornam de todo impossível. ” (JUNG, 1984, §201); “(…) cada fragmento da personalidade tinha uma componente caracterológica própria e sua memória separada. Cada um destes fragmentos existe lado a lado, relativamente independentes uns dos outros (…)” (JUNG, 1984, §202). Cada complexo como uma “personalidade fragmentaria” teria um elevado grau de autonomia, independência uns dos outros e que pode conduzir sujeitos sem que estes percebam conscientemente.
A consciência poderia ser então reimaginada, metaforicamente, como uma multiplicidade de estilos de consciência. Jung já apontava que unidade da consciência é uma mera ilusão. “Gostamos de pensar que somos unificados; mas isso não acontece nem nunca aconteceu (…)” (JUNG, 1983, p.67). A própria ideia de unidade já era entendida por Jung como complexo. “o complexo é uma unidade psíquica” (JUNG, 1999, p.33). Não haveria algo que pudesse ser unitário, isolado e fora da psique pois:
“Todo acontecimento afetivo torna-se um complexo. Se o acontecimento não estiver relacionado a um complexo já existente, possuindo assim um significado momentâneo, ele submerge (…) até o momento em que uma impressão semelhante a reproduza novamente.” (JUNG, 1999, p.58)
Há um paradoxo importante, pois, embora os complexos deem a interpretação e conduzam, a realização da personalidade deveria estar aliada a vivência da “máxima liberdade de decisão própria” (JUNG, 2013a, §289) e à liberdade na ação pois “(…) somente pela ação é que se torna manifesto quem somos de verdade. ” (JUNG, 2013a, §290). Há uma valoração significativa da ação em relação às intenções, desejos, sentimentos ou pensamentos. Ohomem só apareceria como totalidade vivente e como unidade no ato! “O entusiasmo, a continuidade, e o executar dão origem à ação e é só nela que o homem aparece como totalidade vivente e como unidade. ” (JUNG, 2012, §407) negritos meus.
Ele diferencia personalidade de individualismo. A personalidade não se desenvolveria obedecendo a nenhum desejo, ordem ou consideração, mas somente à necessidade movida por coação de acontecimentos (externos ou internos). “Qualquer outro desenvolvimento seria justamente individualismo. ” (JUNG, 2013a, §293). Entretanto, não bastaria apenas a necessidade, seria preciso também associar-se a esta uma decisão consciente e moral. “Se faltar a necessidade, esse desenvolvimento não passará de uma acrobacia da vontade, se faltar a decisão consciente, o desenvolvimento seria apenas um automatismo indistinto e inconsciente” (JUNG, 2013a, §296).
Quando trata das convenções de natureza moral, social, política, filosófica e religiosa, Jung as coloca como necessidades coletivas associadas à renúncia da integralidade singular do vivente. Neste sentido a grandeza das personalidades históricas estaria em serem sementes que propagam continuamente o libertar-se das convenções. Como o peso da humanidade e dos costumes eternos levam o vivente a preferir o caminho planejado em direção a metas conhecidas, seria preciso uma força maior que conduzisse alguém a um caminho estreito íngreme e que leva ao desconhecido. Por isso a personalidade eminente surgiria como uma aparição sobrenatural, uma força demoníaca ou um dom divino. Este fator irracional é denominado por Jung como “designação”. Algo maior do que a consciência que em lendas se atribuem a um demônio pessoal, como uma voz interior que se dirige a pessoa.
Nesta perspectiva o psíquico não se identifica com a consciência. Padrões inconscientes podem aparecer na forma de convenções – ” O mecanismo das convenções conserva os homens inconscientes, ” (JUNG, 2013a, §305) pois então poderiam fazer mudanças sem precisar tomar decisão consciente. No texto sobre a psicologia da transferência Jung cita o texto alquímico em que “o artífice é servidor da obra”. (JUNG, 1978, p.129). O homem puramente natural, em sua ingenuidade espontânea amplia a tal ponto sua personalidade que o eu normal em grande medida desaparece, (JUNG, 1978, p.130); “a integração do inconsciente só é possível quando o Eu se suspende. ” (JUNG, 1978, p.160) negritos meus. Por isso a morte é, ao mesmo tempo, concepção; “A nova personalidade não é um terceiro entre o consciente e inconsciente, se não que é os dois juntos. (…) não deve ser qualificada de eu mas de si – mesmo. ” (JUNG, 1978, p.131) negritos meus. Ou seja, o processo que envolve a individuação não se confunde com inflação do ego, nem com crise neurótica ou psicótica, passa por uma mudança de atitude na consciência onde o complexo do ego perde sua centralidade na personalidade; a consciência se amplia ao integrar o misterioso e desconhecido como fazendo parte desta.
Jung aponta que os padrões inconscientes podem aparecer como duros, pesados, imóveis e inacessíveis, como uma lei natural desenfreada. Compara as guerras e revoluções com epidemias psíquicas e entre estas o movimento do “esclarecimento”. Pode-se refletir que o processo de abstração cético (cartesianismo) que levou ao “esclarecimento” produziu um “deus do terror” ao desprezar as pretensões de todo o saber alcançado por meio de autoridade e experiência (tradição, mito, religião). Ao valorar representação como por diante de si – perceber – as coisas deixam de ser essenciais e passam a estar na condição de “meu objeto”, ou o que o ‘eu sabe delas. As cosias em si, enquanto tal passam a ser uma abstração vazia de toda determinidade e por isso chamam-se fenômenos – aparecimento. O esclarecimento assim realizaria a atitude abstrativa. Mas há riscos importantes na dominação da função de abstrair.
“O homem mergulha tão profundamente e nela (função de abstração) se perde que, ao final, coloca sua verdade abstrata acima da realidade da vida, e a vida, que poderia estorvar o gozo da beleza abstrata, é de todo reprimida. Ele mesmo se torna abstração, ele se identifica com o valor eterno de sua imagem e nela se fixa, porque se transformou para ele em fórmula redentora. Renuncia, desse modo, a si mesmo e transfere sua vida para sua abstração na qual, de certa forma, fica cristalizado. ” (JUNG, 1991b, p.285) negritos meus.
Se tudo aparece na psique em associação por inúmeros complexos em constelação e os complexos se configuram por padrões arquetípicos, estilos de consciência, fantasias dominantes, estilos imaginativos de discurso que são muito maiores que qualquer vivente isolado, então tudo que aparece na psique está conectado internamente a partir das experiência empíricas singulares e coletivamente nos padrões arquetípicos que lhes dão sentido; participa assim, de alguma forma, de padrões coletivos – “excesso de símbolos coletivos que constituem a estrutura fundamental da personalidade. ” (JUNG, 1999, §527). Esta participação misteriosa que a consciência pode não perceber é designada como “participação mística”. Jung diz que a abstração seria uma função que “luta contra a participação mística primitiva. Ela afasta do objeto para destruir os vínculos com ele. ” (JUNG, 1991b, p.283). Perante a quantidade impressionante e estonteante de objetos animados, vivos pela infinidade de sentidos e significados, em constante mudança, que podem falar à imaginação, o homem criaria para si uma abstração; “isto é, uma imagem abstrata universal em que limita as impressões numa forma fixa. Esta imagem tem o significado mágico de uma proteção contra a mudança caótica da vivência. ” (JUNG, 1991b, p.285).
Viver uma forma de vida preso a abstração faz com que o que for excluído desta aglutine-se de forma inconsciente e pode surgir como ameaça que a consciência em cisão e embate lutará contra para preservar sua forma de viver. Uma leitura histórica feita por Jung indica que estas “pequenas pessoas” (complexos/personalidades parciais) foram em grande parte postas a serviço do Eu (vontade do homem) levando a uma dissociação entre uma autoconsciência e um inimigo invisível. Isto poderia fazer “sucumbir a uma vontade tirânica de um governo interior que apresenta traços de uma supra-humanidade demoníaca” (JUNG, 1978, p.57) negritos meus. Haveriam muitas atividades que não estão ordenadas de acordo com o estilo dominante na consciência. O medo seria expressão de uma atitude frente à atividade psíquica existente fora do domínio da consciência a qual não poderia ser atingida nem pela vontade, nem pela inteligência. Os produtos destas atividades não costumam ser inofensivos para este governo interior que definiu o que está estabelecido, podendo até ser um mal. Este mal tentador e convincente poder surgir como uma “voz interior” e, embora se apresente sob uma forma individual, é veículo das tensões e conflitos de um sofrer coletivo do qual todos fazem parte. Se o “eu” sucumbir inteiramente segue-se a catástrofe; entretanto se sucumbir apenas em parte poderá assimilar a voz e o mal pode virar salvação – “a voz da natureza é sempre boa e sempre destruidora. (…) o que é bom não permanece sempre bom, (…)” (JUNG, 2013a, §320).
Sintetizando, pode-se rever este enigma chamado personalidade como o campo onde se problematizam os encontros do que é mais universal e coletivo (padrões arquetípicos) com o que é mais singular de cada vivente.
A personalidade é falada, escrita e vivida como tensão entre o que é mais único e singular, pois só pode ser realizada em ações por este vivente, por necessidade e escolha, a partir do conjunto de associações afetivas empiricamente determinadas no processo de vida que viveu (por isso é sentida como sendo sua) e o que é mais universal e coletivo(pois toda interpretação do que foi vivido, empiricamente, de forma singular só se realizou a partir de padrões transpessoais coletivos – padrões arquetípicos). O máximo do particular no máximo do universal! Nesta perspectiva “personalidade” não termina, literalmente, onde acaba uma pessoa. Ela só existe conectada em participação misteriosa com o coletivo, pois é um campo ao mesmo tempo consciente e inconsciente.
A “Personalidade” é única para cada vivente, na medida em que o encontro e vivência de cada padrão coletivo se realizou de maneira absolutamente singular, neste vivente, e é, ao mesmo tempo, coletiva, muito maior do que ele; pois é também todos os padrões coletivos infinitos que constituem pessoas, famílias, sociedades, culturas, governos, formas de trabalhar e de existir. Assim “personalidade” é o campo onde convivem em cada um, na cultura e na sociedade o “homem coletivizado ou normal”, massificado, que renuncia a integralidade em favor de convenções de natureza moral, social, política, filosófica e religiosa e algo de absolutamente singular que em sua indeterminação, entropicamente, pulsa vivo em relação de tensão com tudo que foi vivido como determinado, até aquele momento; um fator irracional que, embora particular, é vivido como maior do que cada um – designação. E “(…) quem não puder perder a sua vida não a ganhará. (…) A formação da personalidade é sempre um risco (…) o perigo máximo e o auxílio indispensável. ” (JUNG, 2013a, §321) negritos meus.
“Somente o outono revela o que a primavera produziu” (JUNG, 2013a, §290). “A personalidade, no sentido da realização total de nosso ser é um ideal inatingível. ” (JUNG, 2013a, §291).
O poeta Fernando Pessoa pode ajudar neste reimaginar da personalidade.
Sou um evadido.
Logo que nasci
Fecharam-me em mim,
Ah, mas eu fugi.
Se a gente se cansa
Do mesmo lugar,
Do mesmo ser
Por que não se cansar?
Minha alma procura-me
Mas eu ando a monte,
Oxalá que ela
Nunca me encontre.
Ser um é cadeia,
Ser eu, não é ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
(PESSOA,1977, §710).
Minha alma é uma orquestra oculta;
não sei que instrumentos tange e range,
cordas e harpas, tímbales e tambores, dentro de mim.
Só me conheço como sinfonia. (…)
Bernardo Soares (PESSOA, 1996, p.128).
Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.
Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
(…)Ricardo Reis (PESSOA,1977, §423).
Ajax Perez Salvador, Membro Analista didáta do IJEP
Quando Jung fala “do processo criador” (JUNG, 1985, p.62) discute questões sobre arte e refere que a convicção de estar criando com liberdade absoluta seria uma ilusão do consciente. “Ele (artista) acredita estar nadando, mas na realidade está sendo levado por uma corrente invisível. ” (JUNG, 1985, p.63) negritos meus. “A maneira de produzir aparentemente consciente e proposital seria apenas uma ilusão subjetiva” (JUNG, 1985, p.65) negritos meus.
[1] “O egoísta (“salbstisch”) nada tem a ver com o conceito de Si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do Si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do Si-mesmo. ” (JUNG, 2001, §267).
Referências
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 2010.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Vols. VIII-2. Petrópolis: Vozes, 1984.
-. Ab-reação, análise dos sonhos , psicologia da transferência. Vol. 16/2 OC. Petrópolis: Vozes, 2012.
-. Fundamentos de Psicologia Analítica. Vol. Vol. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1983.
-. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.
-. O Desenvolvimento da Personalidade. 14ª. Vol. 17. Petrópolis: Vozes, 2013a.
-. O Espírito na Arte e na Ciência. Vol. XV. Petropólis: Vozes, 1985.
-. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2001.
-. Psicogênese das doenças mentais. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 1999.
-. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991b.
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Vol. I. Campinas: Unicamp, 1996.
-. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar S A, 1977.