Entender o conceito de unilateralidade da consciência e compreender a importância que ele tem na teoria junguiana é fundamental para aqueles que buscam um aprofundamento na psicologia analítica. Sem a capacidade de unilateralizar, não teríamos, como espécie, alcançado o desenvolvimento intelectual, cultural e tecnológico que vivemos nos dias de hoje. É ela que nos permite concentrar, focar em algo e seguir uma direção para construir. É ela também que nos ajuda a viver em sociedade e a cooperar para o nosso crescimento social e cultural. Porém, como qualquer fenômeno humano, a unilateralidade é, em si, também ambígua, traz consigo a marca da luz e da sombra, do yang e do yin. Da mesma maneira que nos ajuda a construir, pode nos levar à destruição.
“A unilateralidade é uma característica inevitável, porque necessária, do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade. A unilateralidade é, ao mesmo tempo, uma vantagem e um inconveniente, mesmo quando parece não haver um inconveniente exteriormente reconhecível, existe, contudo, sempre uma contraposição igualmente pronunciada no inconsciente, a não ser que se trate absolutamente de um caso ideal em que todas as componentes químicas tendem, sem exceção, para uma só e mesma direção.” (JUNG, O.C. vol. 8/2, p. 138)
Jung ainda irá dizer que, a princípio, essa contraposição é inócua, porém, quando acentuada, será causa de invasão da consciência por conteúdos do inconsciente. Portanto, é importante que entendamos, por mais que tentemos, não conseguimos escapar do inconsciente. Existe uma necessidade imperativa dele se manifestar. Se nós não conseguimos encontrar maneiras de harmonizar esse movimento e permitir seu surgimento, ele irá irromper na vida consciente, muitas vezes nos momentos em que a unilateralidade é mais necessária. Poderá se manifestar através de comportamentos erráticos, sintomas psíquicos e psicossomáticos.
Vivemos uma época em que o literal e o unilateral estão na moda. As pessoas parecem até sentir prazer ao defender um ponto de vista ou uma posição, como se existisse apenas uma verdade, e ela, obviamente, estivesse do seu lado. Fazem isso, muitas vezes, sem acreditar realmente no que dizem, comportando-se como seres robotizados, apenas repetindo ideias infundamentadas. Num reflexo do materialismo capitalista predatório que vivemos, os indivíduos defendem seus pontos de vista políticos, “espirituais” ou religiosos e econômicos, com a mesma voracidade necessária para sobreviver ao dia a dia da vida em sociedade consumista. Nessa onda de racionalismo exagerado, a vida simbólica não tem vez. Não há, para a maioria das pessoas, espaço e tempo para a expressão criativa e para o diferente. Como resultado disso temos uma sociedade adoecida e sintomática.
Sem vida simbólica nos tornamos seres literalizados, e, como disse James Hillman, o literalismo está na base da paranoia. Podemos supor então que vivemos uma paranoia coletiva, onde cada indivíduo defende com unhas e dentes o seu espaço mental, como se este fosse limitado e ali não coubesse mais nada. Porém, é exatamente essa atitude que nos limita, que não permite o contato com o diferente em nós e no outro, e que, obviamente, não concorda com uma ampliação de significados. Hillman, explicando sobre como John Perceval, personagem histórica, nascido em 1803 e filho do então primeiro ministro britânico, autor da “autobiografia detalhada de uma desordem paranóica”, conseguiu encontrar um maior grau de liberdade dos delírios quando entendeu que “Deus fala poeticamente, e o lunático assume o sentido literal”.
“… e foi John Perceval que aprendeu a escutar mandamentos literais com um ouvido metafórico. Somente ao se tornar um homem duvidoso, enganador, irônico e imaginativo é que se torna um homem são.” (HILLMAN, 2012, pg. 68)
Dentro do nosso atual modelo cultural de vida, quanto menos duvidoso e imaginativo o indivíduo, mais fácil manter a ordem e a divisão injusta de poder e recursos. Nessa onda de racionalismo extremo, algumas instituições, que utilizam o rótulo de “religiosas”, aproveitam para transformar a fé de seus seguidores em um acúmulo sem sentido de recursos, dinheiro e bens materiais. Outras acreditam e fazem acreditar que o mal está na religião dos outros, partem para atos violentos, muitas vezes causando a morte de muitos, direta ou indiretamente. Mas a falta da vida simbólica não se manifesta somente nas religiões institucionalizadas, e o que acaba acontecendo é que, qualquer teoria e caminho que poderia ser tomado em direção à libertação, pode levar, ao invés disso, a uma prisão. Jung, citando um provérbio taoísta, diz: “Se o homem errado usar o meio correto, o meio correto atuará de modo errado.” (JUNG; WILHELM, 2013, pág. 24)
A ideia de que o método importa menos do que o indivíduo que o utiliza está explícita no I Ching, o mais antigo livro chinês de sabedoria, e é exatamente falando sobre essa maneira de pensar, e sobre o taoísmo, que Jung explica:
“No tocante a isso, tudo depende do homem e pouco ou nada do método. Este último representa apenas o caminho e a direção escolhidos pelo indivíduo; é o modo pelo qual o indivíduo atua nesse caminho que exprime verdadeiramente o seu ser. Se assim não fosse, o método não passaria de uma afetação, de algo construído artificialmente, sem raiz e sem seiva, servindo apenas à meta ilegítima do autoengano. Além disso, poderia representar um meio de o indivíduo iludir-se consigo mesmo, fugindo talvez à lei implacável do próprio ser.” (JUNG;WILHELM, 2013, pág. 25)
Acredito que Jung tenha deixado, em toda a sua obra, não só uma excelente explicação de como podemos encarar e refletir sobre as escolhas e ações que tomamos diariamente, como também um alerta, para que a sua própria teoria não se tornasse banalizada e fosse utilizada de maneira literal. Porém, apesar desse alerta, e como está dito claramente nas citações acima, o método só atuará corretamente se for utilizado pelo homem correto. Infelizmente não é incomum encontrarmos pessoas que parecem fazer parte de uma espécie de “igreja junguiana”, que pregam a sua palavra, e que se esquecem que ele mesmo, em sua sabedoria, definiu sua obra apenas como um modelo. Então, literalizar deuses e mitos não é diferente de acreditar que seja possível enxergar e separar completamente o funcionamento da nossa sombra, complexo de ego, animus ou anima. Já ouvi indivíduos afirmando que usam um ou outro arquétipo em suas vidas pessoais, afetivas, ou no trabalho para alcançar resultados específicos numa tentativa de manipular o comportamento de outros. Podemos fantasiar que enxergamos aspectos dessas personagens que nos habitam, e isso poderá acarretar numa ampliação de consciência, porém, acreditar que os controlamos, que sabemos quem são, e como são, em sua inteireza, é entrar numa dinâmica racional extrema que impede ainda mais a expressão espontânea da libido e do inconsciente. A obra junguiana é, ao mesmo tempo, empírica e simbólica, e tomá-la apenas conceitualmente caracteriza um desserviço individual e social. Discutir e atualizar conceitos é de extrema importância para o desenvolvimento de velhas teorias e para o surgimento de novas, no entanto, a racionalização de absolutamente tudo em nossas vidas, transforma nossas personagens simbólicas em signos, tirando sua força e energia. Muitos estudiosos da psicologia analítica parecem se esquecer que a expressão criativa, o surgimento do novo, só pode acontecer pela união de uma atitude consciente juntamente com a manifestação do inconsciente, este, do qual, não temos controle.
Assim como qualquer fenômeno natural, a teoria de Jung lança uma sombra. E sendo sua obra vasta e complexa, sua sombra também o será. Talvez uma pequena parte dessa escuridão seja o intelectualismo exagerado e a possessão conceitual que muitos de seus adeptos sofrem.
“De início não se sabe fazer nada mais do que aprender palavras e ser possuído por conceitos. E quanto menos se entende a questão, mais se é possuído por conceitos, pois é a única coisa que as pessoas têm. Não sabem se defender a não ser com conceitos, palavras, mas a coisa em si ainda não compreendeu nem de longe. Quando compreendem algo intelectualmente, isso permanece preso à região da linguagem, justamente à ela – mas não penetra o homem como um todo. Compreendemos algo na psicologia apenas quando também o vivemos ou quando isso avança até a região do fazer ou da experiência, porém não antes.” (JUNG, 2014, pág. 18)
A falta da vida simbólica pode levar a diferentes sintomas, um deles sendo a projeção da salvação divina numa religião institucionalizada, ou na institucionalização de qualquer teoria, como acontece, no ocidente, com muitas escolas da filosofia oriental. Hipoteticamente, uma das maneiras de se precaver do erro de se tornar um “pregador” junguiano, é buscar a própria análise. Passar pelo processo analítico é imprescindível para aquele que tem o desejo de se tornar analista. Infelizmente, ainda são muitos os casos de terapeutas que atendem – ou tentam atender – sem investirem em seu próprio processo de autoconhecimento. Ainda existe o risco do indivíduo encontrar um “pastor”, ao invés de um analista, e se aquele não percebe a dinâmica aprisionadora desse tipo de relação, pode passar anos acreditando que está em análise, quando na verdade se encontra numa relação desigual onde o outro se coloca como um guru detentor de uma verdade superior e única. Outra ação, na minha opinião de extrema importância é ler, ouvir e aprender com diferentes autores, mesmo que não concordemos com suas visões. Só podemos mudar aquilo que conhecemos, e só podemos discordar daquilo que sabemos. Do contrário, só projetaremos nossa própria sombra intelectual em teorias e ideias alheias sem entender de verdade o que elas têm a dizer.
Deixar-se ser tocado pela expressão criativa do outro ativa e desperta a minha própria. Portanto, além de estudar os ensinamentos de Jung, é preciso vivê-los, senti-los, viajá-los, deixar que nos invadam. No encontro da consciência e do inconsciente é que surge a função transcendente.
“Por exemplo, nós dizemos que Cristo é de certa forma a ideia do homo maximus, do anthropos, do filius hominis. Isto é um símbolo do si mesmo. Mas, à medida que acreditamos que Cristo realmente significa o si mesmo, esse mesmo ritual torna-se a pior das tentações de perder nossa relação com o si mesmo.” (JUNG, 2014, pág.70)
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu, e-mail: balestrini@lungfu.com.br
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Referências
JUNG, C. G. A natureza da psique, vol. 8/2, Petrópolis, Vozes, 2013;
JUNG, C. G, Sobre sonhos e transformações, Petrópolis, Vozes, 2014;