Meu percurso como Arteterapeuta não é longo, mas posso considerar robusto dada minha iniciação tardia como terapeuta, minha precocidade em ter gosto por arte e alguma habilidade manual que sempre foi incentivada em casa, me colocaram em contato desde cedo com expressões criativas. Dado meu gosto e habilidade pelas artes plásticas de um modo geral e pela história da arte – e os bastidores desse meio -, sempre me vi pouquíssimo envolvida com a música. Talvez pensasse ser uma “inabilidade natural” (o que podemos falar de pronto, que talvez não exista nem em mim nem em ninguém isso). Ou mais provável uma falta de interesse por achar que não estava habilitada para lidar com sons, instrumentos e com a música.
Ao me deparar com a arteterapia vi a mim mesma com um “grande problema” quando entendi que teria que pelo menos “entender” como a música funciona na psique e no processo terapêutico. Não foi menor o pânico ao me relacionar com a dança, mas isso fica para outro momento mais oportuno. Eu gostaria de fazer um artigo científico sobre o tema, mas tenho “sido chamada a atenção” pela minha rigidez e falta de “alma” ao tentar desenvolver temas aos quais eu domino e tenho respaldo referencial para divagar (assertivamente) sobre o tema. Logo, a proposta aqui é diametralmente oposta. Vou expor meus sentimentos e conhecimentos em cima de um tema ao qual não domino, mas vibra em mim, assim como vibra em você.
A música está inserida na arteterapia, mas o Arteterapeuta não necessariamente é musicoterapeuta.
Este profissional normalmente é músico ou educador musical, ele trabalha com instrumentos, e sua música já é em sim parte do tratamento terapêutico e não apenas ferramenta. Entendo que o domínio de toda a construção musical para a clínica da musicoterapia seja fundamental, dada a importância do profissional na construção de uma dinâmica que muitas vezes dispensa palavras.
Por isso é uma terapia importantíssima para portadores de TEA (Transtorno de Espectro Autista) e outras pessoas atípicas, principalmente TDL (Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem) (BANDEIRA, 2022).
Não existe uma aula que eu tenha dado até hoje e que não tenham me perguntado “e, a música, professora?”
A música demanda um cuidado especial na clínica, principalmente se trabalhamos com grupos. A música que eu gosto pode afetar ao outro de maneira completamente oposta ao bem-estar que me causa. Músicas com letras e/ou muito populares, se o facilitador não conhece bem o grupo ou não tem domínio do que está sendo feito ali naquele espaço com aquelas pessoas pode ter problemas, pessoas afetadas podem “sair de si”.
Jung relata uma observação se dando como exemplo em Estudos Psiquiátricos Vol.1 nas obras Completas:
Jung, neste pequeno relato, dá duas importantes dicas diretas e podemos ampliar mais algumas questões a partir de uma reflexão do “saber” da ferramenta, no caso: a música.
Quando o próprio Jung assovia, ele entende que aquilo queria dizer algo, mas de forma afetiva e inconsciente lhe vem uma música sem letras a cabeça que ele vai entrar em um processo autorreflexivo para compreender aquilo ter ocorrido. Ele consegue e percebe a questão do afeto e chega à conclusão de que ele nem precisa “dizer que dessa maneira é possível fazer todo tipo de belos diagnósticos psicológicos em nossos semelhantes” (JUNG, 2012a) e faz isso com um amigo. E, sim, música vibra. Somos de água e a água vibra junto com o som. O som faz a água se mobilizar no seu ritmo e mesmo que eu não queira, não há som que nos deixe indiferente. Somos manipulados em nossas águas internas mesmo que não consigamos perceber e nos atentar no momento.
Perceber que “a experiência musical acontece antes mesmo do nascimento, a partir das percepções ainda no útero materno” (PAULA, 2022) nos faz ter um ínfimo entendimento o quão importante os sons são na nossa constituição psíquica.
A música ser um meio tão eficaz de tratar transtornos e problemas de comunicação faz com que seja uma ferramenta dentro do processo terapêutico muito importante, mas também muito delicada. A responsabilidade do arteterapeuta é entender que usar uma música sem conhecimento prévio pode não ser uma boa ideia, não sabemos como aquilo pode mobilizar o indivíduo. Mas, trabalhar algo que tenha sido trazida pelo próprio cliente pode ser muito rico e ajudar a condução clínica assim como um sonho, um desenho, um filme – a música se torna uma imagem com vibração que toca afetivamente com consciência.
Pensar a música pela psicologia analítica é encaixar uma imagem dentro de um processo construtivo que afeta a todos (e quando falo todos, são todos mesmo!)
Pessoas com deficiências ou atípicas dão respostas positivas a esse tipo de terapia, além de TEA, TDL, deficientes visuais, pacientes psiquiátricos diversos e até mesmo surdos e surdos oralizados; a música vibra e mesmo sem o ouvir, eles podem sentir. E, sendo uma sociedade apegada a rótulos e pré-conceitos, nos distanciamos da questão simbólica da linguagem. A música é uma linguagem sonora e vibracional ao mesmo tempo e quando possui letra ela também entra na metalinguística de todo o conjunto da obra.
Pessoalmente, é um lugar bem difícil para eu habitar, talvez pela falta de controle que a vibração promove; mesmo tendo a consciência de que isso vai acontecer pode me passar despercebido e eu ser “afetada”. E, a respeito disso, eu simplesmente sei que não temos controle.
Afinal, Jung já explicou que “todas as neuroses contêm complexos autônomos” (JUNG, 2012b §1353). E para um analista ser afetado de forma incontrolável e autônoma por um complexo basta estar vivo.
Entrar em contato com aquilo que eu não sei, me leva a lugares surpreendentes, e na clínica sempre busco sutilezas além do ouvir.
Busco sentir como os relatos vibram em mim e percebi que a minha pouca competência com a música, com a musicalidade, com os sons que vibram dos instrumentos musicais são incompatíveis com o que eu vivencio diariamente. Eu entendo não de forma conceitual, acadêmica e prática de um musicista, mas de um outro lugar.
E esse lugar me ajuda a caminhar com meus clientes para um outro lugar além da fala e do que se fala. Como disse o multifacetado romancista alemão E. T. A. Hoffmann: “A música começa onde acaba a fala.”
Na clínica junguiana ouvimos música todos os dias!
Bárbara Pessanha – Membro Analista IJEP
Simone Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Estudos Psiquiátricos. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 2012a. Obras Completas de C. G. Jung, v.1.
JUNG, Carl Gustav. Estudos Experimentais. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012b. Obras Completas de C. G. Jung, v.2.
BARCELLOS, L. R. M. ., & SANTOS, M. A. C. . (2022). A musicoterapia no Brasil. Brazilian Journal of Music Therapy, (32), 4–35. Disponível: https://doi.org/10.51914/brjmt.32.2021.378 Acesso em: 30. ago. 2024
PAULA, Tatiane Ribeiro Morais de. & PEDERIVA, Patrícia Lima Martins A musicalidade das pessoas surdas: um olhar a partir da teoria histórico-cultural Artigos • DELTA 38 (1) • Disponível: 2022. https://doi.org/10.1590/1678-460X202257176 Acesso em: 30. ago. 2024
BANDEIRA, Gabriela. Práticas baseadas em evidências: a musicoterapia como estratégia de intervenção. Disponível: 27. mai. 2022 https://genialcare.com.br/blog/musicoterapia/ Acesso em: 30. ago. 2024
PEDERIVA, P. L. M., & GONÇALVES, A. C. A. B. (2018). Educação musical na perspectiva histórico-cultural: uma didática para o desenvolvimento. Disponível: 2022. https://www.academia.edu/38830356/Educa%C3%A7%C3%A3o_musical_na_perspectiva_hist%C3%B3rico_cultural_uma_did%C3%A1tica_para_o_desenvolvimento_da_musicalidade_Music_education_in_the_historical_cultural_perspective_a_didactic_for_the_development_of_musicality . Acesso em: 30. ago. 2024