Em tempos de mídias sociais as dinâmicas do desejo e da atração ficaram mais escancaradas. Pessoas estão expostas em vitrines virtuais em suas buscas por parceiros e dessa forma ficam mais óbvios padrões que talvez pudessem passar desapercebidos. Um dos padrões que pode ser percebido na dinâmica entre homens gays é a de supervalorização da masculinidade.
Fica cada vez mais claro a existência de um homem gay que valoriza, mais do que tudo, sua própria masculinidade (e geralmente também a de seu parceiro). Nos aplicativos de encontros (casuais ou não) voltados a esse público é comum encontrar perfis que se descrevem como “não sou nem curto afeminados” e variações do gênero, assim como o termo em inglês Masc4Masc que denomina um homem masculino em busca de outro homem masculino.
Na visão junguiana a tensão entre polaridades sempre está presente nas dinâmicas humanas, e o masculino e feminino são, historicamente, uma das polaridades mais debatidas. A partir dessa perspectiva, como fica esse homem gay hipermasculino? Como se relaciona com sua anima? Poderíamos imaginar que essa é só uma questão de atração física, mas há mais aqui que só a dimensão do desejo.
Antes de tudo é necessário ampliar nossa visão sobre a relação entre homens gays e o que se entende por masculino e feminino. Primeiramente é importante lembrar que popularmente a imagem do homem gay está ligada fortemente ao feminino. Seja no comportamento, nos gostos, jeito de se vestir ou falar, há uma expectativa de que o gay seja feminino e até recentemente praticamente todas as representações de homens gays na mídia de massa estavam pautadas em sua afeminação. “Vira homem”, a ofensa recorrente, é lembrança da associação quase de equivalência entre ser gay e ser mulher que perpassa nossa cultura.
Há também outros elementos do que é entendido como cultura gay que estão intrinsecamente ligados ao feminino, mas que nem sempre não são de conhecimento de pessoas fora das fileiras LGBT, como por exemplo o culto a divas – uma espécie de adoração que alguns homens gays reservam a mulheres da mídia entendidas como especialmente poderosas – e as drag queens – personagens de performance de gênero, geralmente criadas por homens gays.
Se por um lado há diversos elementos da cultura gay que estão definitivamente ligados ao feminino, há muitos aspectos em que o masculino prevalece. Pesquisas sobre como homens gays se identificam, se como mais masculinos, femininos ou andróginos revelam que a maioria se identifica como andrógino, seguidos de identificação com o masculino e por último com o feminino, o que já contradiz a expectativa da visão mais tradicional. Estudos também mostram que, quando em busca de parceiros, há uma preferência clara por estar com alguém mais masculino.
Mais recentemente pesquisas que analisaram perfis de sites e aplicativos de relacionamento voltados para homens gays encontraram o mesmo padrão de enaltecimento de atributos masculinos em detrimento de atributos considerados femininos, tanto na descrição que os indivíduos fazem de si como na descrição que fazem do parceiro que procuram. Mas mais do que simplesmente declarar uma preferência pela masculinidade muitos dos perfis vão além, explicitamente rejeitando outros gays que exibam traços femininos.
No mundo da pornografia pesquisadores também já identificaram uma clara preferência por modelos de traços mais masculinos, havendo uma tendência heteronormativa que valoriza especialmente o homem masculino, dominante, enquanto homens mais femininos estão sempre em papéis de dominado. Reforçando a noção de que comportamentos mais masculinos ou femininos também seriam determinantes dos papéis sexuais dos parceiros.
Nas produções culturais como filmes e séries, apesar de nos últimos anos a quantidade de personagens gays ter aumentado significativamente, ainda prevalece o padrão do homem gay afeminado estar mais ligado ao papel de alívio cômico enquanto os romances são vividos por personagens mais masculinos.
A tendência de valorização do masculino indicada por essas pesquisas não é acaso, e não está ligada somente à atração e ao desejo. Há um discurso de hierarquização entre os homens gays que os classifica a partir de sua masculinidade ou feminilidade, gerando um sistema de opressão dentro da própria comunidade gay.
Essa hierarquização dentro da própria comunidade entre “masculinos” e “afeminados” foi, segundo Eribon uma das grandes estruturas de clivagem da representação que os homossexuais fizeram de si mesmos, e ela tem uma razão de ser fora do mundo do desejo sexual: a estigmatização social da homossexualidade. Socialmente, o homossexual foi, no período que antecedeu a luta LGBT, entendido como inferior ao heterossexual, e a principal justificativa para tal era a “inversão” – o não alinhamento entre o gênero e o comportamento de gênero do indivíduo. Logo, o homossexual homem mais masculino seria menos discriminado e sofreria menos injúrias, definitivamente uma posição social mais confortável, afinal esse tipo de violência é sempre um fator que assombra a vida dos homossexuais:
“No começo, há a injúria. aquela que todo gay pode ouvir um momento ou outro da vida, e que é o sinal de sua vulnerabilidade psicológica e social.
“’Viado nojento’” (“’sapata nojenta’”) não são simples palavras lançadas em passant. São agressões verbais que marcam a consciência. São traumatismos sentidos de modo mais ou menos violento no instante, mas que se escreve na memória e no corpo.” (ERIBON, 2008)
É interessante notar que, em português, muitas das expressões usadas para se ofender homens gays ou aludem a sua inversão: viado (de transviado, que transviou sua natureza); ou estão no feminino: bicha, bicha-louca, maricas, maricona, mulherzinha. Expressões como “vira homem” também estão dentro dessa lógica. Nesse caso a injúria não revela só um menosprezo pelo homossexual, mas também uma hierarquização social que coloca a masculinidade em posição superior ao feminino e, por conseguinte, às mulheres, além de contribuir para a criação de uma série de estereótipos dentro da comunidade. É cabível então que, ao menos uma parcela dessa valorização da masculinidade pode ser entendida como forma de evitar hostilidade, se masculinizar permitiria um certo grau de “camuflagem”:
“Toda uma tradição cultural entre os homossexuais fez crer que a visibilidade daria motivo ao olhar hostil e aos poderes da opressão. essa tradição, herdada dos períodos em que a repressão social era muito mais intensa, hoje nada perdeu de sua vivacidade e costumamos encontrá-la na defesa por certos homossexuais de uma “assimilação” e passaria pela “descrição”, o que, na maior parte do tempo, é apenas outra maneira e preconizar a dissimulação, encarada como o meio mais simples de subtrair a força dos poderes alienantes e a violência do estigma. (ERIBON, 2008)”
Podemos perceber então que não só a dinâmica da atração que guia essa busca por ser o mais masculino possível e afastar ao máximo o feminino. Mais do que o desejo, a homofobia e o medo levam homens gays a negar ao máximo o feminino em suas vidas.
A homossexualidade masculina no texto junguiano
A visão que dá especial ênfase a relação entre homossexualidade masculina e o feminino não está restrita unicamente ao universo popular, ela pautou também o pensamento de intelectuais, incluindo Jung. É possível perceber que em sua obra a temática da homossexualidade masculina foi majoritariamente entendida em relação ao feminino.
Hopcke identifica três momentos na teoria junguiana no que tange a homossexualidade masculina. Num primeiro momento, ainda muito ligado às ideias de Freud, Jung associa que a homossexualidade estaria ligada a imaturidade gerada por uma perturbação no relacionamento com os pais, ligando essa à falta de uma figura masculina para educar o jovem que teria permanecido no universo da mãe, tomado pelo complexo materno.
Num segundo momento surge a tese de que alguns casos de homossexualidade masculina poderiam ser entendidos a partir de uma identificação do indivíduo com a anima, o que manteria a persona (masculina) no inconsciente, que seria então projetada num outro homem levando ao comportamento homossexual.
Na terceira fase identificada por Hopcke, Jung continua a ligar homossexualidade masculina à anima e ao complexo materno, mas também a associa a uma incapacidade de se desligar do arquétipo do hermafrodita e assumir uma sexualidade unilateral
Percebe-se que a presença do feminino domina a discussão. Ou o feminino está presente ostensivamente (no complexo materno e na anima) ou de maneira indireta (no arquétipo do hermafrodita). O masculino aparece sempre faltoso (como o pai que não conseguiu retirar o filho do universo da mãe ou na persona inconsciente) ou enlaçado com o feminino (novamente no caso do arquétipo do hermafrodita).
Voltando aos homens gays hipermasculinos. Essa valorização da masculinidade parece se dar em aspectos relacionados ao desejo e à adaptação ao meio social. Onde então poderíamos localizar essa masculinidade na dinâmica psíquica desses homens? A resposta é óbvia, na persona, afinal é a partir dela que o indivíduo interage com seu meio.
Personas masculinas não são exclusividade de homens gays, o próprio Jung nota que reprimir traços femininos é considerado uma virtude pelos homens (JUNG, 2015a). Também não há motivos para se atribuir a uma persona masculina uma condição necessariamente problemática, afinal, como estrutura adaptativa ao meio, estaria apenas executando sua função de mediar as relações entre o ego desse indivíduo e o meio externo. E é exatamente aqui, na relação com o externo, que a questão da persona masculina num homem heterossexual e num homem homossexual diverge.
Tanto homens heterossexuais quanto homossexuais sofrem pressão social para se apresentar como masculinos. No entanto, para os homossexuais essa pressão tem um tom muito mais dramático. Se para o heterossexual não ser reconhecido como masculino coloca em xeque sua sexualidade, para o homossexual não ser reconhecido como masculino revela sua sexualidade. Numa sociedade homofóbica isso traz consequências importantes que podem variar de ter de enfrentar chacota até sofrer violência física. Somado a isso há uma pressão para ser masculino, pois isto está relacionado a ser desejado.
Podemos então inferir que investir numa persona masculina não é a mesma coisa para hetero e homossexuais. Como diria Eribon, o homossexual masculino tem sido entendido, pelo menos desde o fim do século XIX, como um homem que renunciou sua masculinidade. Investir numa persona masculina nesse caso não é só se adequar a um papel de gênero, é reclamar uma parte de si negada pelo outro.
Se para um homem gay uma persona masculina acaba por ser uma forma de se entender como homem numa sociedade homofóbica, não é difícil de se imaginar que esse acabe por se identificar com essa persona, o que tem consequências importantes na dinâmica psíquica, segundo Jung:
“A construção de uma persona coletivamente adequada significa uma considerável concessão ao mundo exterior, um verdadeiro auto sacrifício, que força o eu a identificar-se com a persona. Isto leva certas pessoas a acreditarem que são o que imaginam ser. A “ausência de alma” que essa mentalidade parece acarretar é só aparente, pois o inconsciente não tolera de forma alguma tal desvio do centro de gravidade. (JUNG, 2015b)”
Obviamente ter uma persona masculina não é difícil para uma boa parte dos homens gays. É de se imaginar que muitos dos mais masculinos teriam essa expressão de gênero mesmo em uma sociedade mais tolerante de sua sexualidade. Por outro lado, muitos dos mais femininos provavelmente abandonam qualquer pretensão de tentar performar esse papel. Podemos também imaginar quantos homens gays de expressão mais andrógina não investem numa persona mais masculina a fim de se sentirem mais adequados à norma social e mais desejados por seus pares. No entanto, seja em que local desse espectro um indivíduo esteja, a identificação com uma persona masculina gera uma exclusão de aspectos do feminino, o que não é desejável, afinal não há homem que não possua em si algo do feminino e quando esses elementos são reprimidos da consciência acabam por se acumular no inconsciente. É importante aqui lembrar o ideal alquímico da coniunctio é de aproximar essas polaridades, não mantê-las separadas.
Se estamos falando de identificação com a persona a questão da anima sombria se torna central. Poderíamos aqui conjecturar se há relação entre homossexualidade masculina e a anima, ou mesmo se há diferenças entre a anima de um homossexual e de um heterossexual, mas essas questões são mais vastas e fogem ao escopo desse artigo. Fato é que num homem identificado com sua persona hipermasculina a anima está sombria, e como no caso dessa discussão, o feminino também será sombrio. Então quais seriam as consequências esperadas nesses homens hipermasculinos dessa dinâmica psíquica?
A primeira consequência óbvia é que, apartado da própria anima, esse gay hipermasculino terá dificuldade de estabelecer relacionamentos afetivos, afinal é anima que traz o elemento relacional, a presença do eros, a possibilidade de conexão com outro. Um eros sombrio também poderia acarretar uma dinâmica amorosa tomada por jogos de poder, sem entrega verdadeira e até eventualmente violenta.
Jung associa o alcoolismo, no homem, como uma das possíveis consequências da perda da anima. Se expandirmos esse entendimento não apenas para o álcool como para o abuso de substâncias em geral, podemos imaginar que o gay identificado com uma persona hipermasculina estaria mais representado dentre os gays que sofrem com esse problema. Foi exatamente isso que Hamilton e Mahalik encontraram em seu trabalho, homens gays que se enquadram mais nas normas de gênero e se preocupam mais em corresponder a essas normas têm maiores chances de abusar de álcool, tabaco e outras drogas.
Uma outra consequência possível da perda da anima é um risco maior de depressão e de suicídio. Estudos mostram que homens gays apresentam maiores índices de depressão e risco três vezes maior de cometer suicídio do que a população em geral (Lee at al). Apesar de essa ser uma discussão complexa e escapar tanto do escopo quando das limitações desse trabalho, não seria impossível correlacionar, pelo menos parcialmente, o suicídio à questão da anima. Afinal, o próprio Jung atesta que o arquétipo do significado da vida se esconde na anima e que a anima em si é o arquétipo da própria vida. Não seria de se espantar que um homem apartado de sua anima tenha dificuldade em se ligar à vida e achar significado nela, predispondo-o a depressão e ao suicídio.
A figura do homossexual masculino era, até pouco tempo, uma verdadeira impossibilidade na mente da população em geral, o gay prototípico era o gay afeminado. Apesar do cerne de grande parte do sofrimento relacionado à homossexualidade ser o mesmo para todos os homens gays, a homofobia, as formas de lidar com essa geram dinâmicas distintas nos indivíduos e é importante ampliarmos nossa visão sobre essas questões para melhor entender as demandas que surgem em análise acerca desse tema.
Gabriel Andrade – Analista em Formação pelo IJEP
Waldemar Magali – Analista Didata
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