No mundo em que vivemos hoje sobra espaço ou tempo para a alma?
Vou fazer uma brincadeira e comparar um dia dessa nossa existência miserável de simbolismo, forçada e repetida de maneira automática e robótica, com o curso de uma vida humana em nossa sociedade. Imagine que um dia é uma vida.
Despertamos de um sono cheio de conteúdo simbólico. Saímos de um lugar onde o inconsciente está tentando nos avisar dos perigos e prazeres da vida material. O despertar é na verdade um celular que toca um alarme chato e repetitivo todas as manhãs. E por mais que o indivíduo tente encontrar um toque melhor, não encontra.
Então o Ser está desperto (ou pensa que está). Já levantou, tomou seu banho, comeu seu pão e agora se prepara para buscar sua alma. Sai de casa contente, sabendo que esse dia é importante: está em busca daquilo que o completa. Irá encontrar o sentido de sua vida. Chega na empresa antes que ela abra e já na porta percebe que não será tão fácil assim, a fila está grande. Levou um livro para ajudar a passar o tempo, mas não consegue ler, está muito ansioso. Pensa e sente que depois que estiver em poder de sua alma, saberá o que fazer, saberá para onde ir. O painel eletrônico toca chamando as senhas constantemente, e o celular avisa o tempo todo que chegam mensagens e notificações sobre postagens vazias de seus (des) conhecidos das redes sociais. Olha então as tais redes acreditando que o tempo pode passar mais rápido se tiver afastado de si mesmo. Espera pacientemente, sabe que no fim irá ser recompensado. Não é todo mundo que consegue encontrar sua alma. Finalmente chamam sua senha, chegou sua vez! Ele vai até o atendente e se senta em frente à pequena mesa. Entrega os formulários necessários preenchidos. O atendente olha cuidadosamente para os papéis espalhados em sua mesa, checa a tela do computador. O coração do protagonista bate mais forte, está aflito e angustiado para receber o que é seu por direito. E recebe a notícia como um tiro no peito: “falta um carimbo.”
Vivemos frustrados por sentir que o processo burocrático do dia a dia, o sistema e a ordem são mais importantes do que a vida humana. As pessoas não se importam em realmente ajudar o outro, pensam sim em cumprir horário, carimbar, assinar e despachar papéis que muitas vezes atrapalham mais do que ajudam a resolver os problemas reais de cada um. O verdadeiro contato humano se esvai, some, dissipa, dissolve, e com ele a possibilidade do encontro com o outro e com o si mesmo. Robotizados, os seres humanos não tem chance de viver simbolicamente. Perdidos em documentos e burocracias, quem consegue tempo para pensar em si mesmo? De praticar rituais? De se dedicar à arte?
“Somente a vida simbólica pode expressar a necessidade da alma – a necessidade diária da alma, bem entendido. E pelo fato de as pessoas não terem isso, não conseguem sair dessa roda viva, dessa vida assustadora, maçante e banal onde são “nada mais do que”. (OC 18/1, 627)
Kanji Watanabe, o personagem principal do filme japonês Ikiru (Viver), de 1952, de Akira Kurosawa, era nada mais do que um velho agente burocrata. Uma peça de uma máquina que nem ele mesmo sabia muito bem para que servia. Passou anos numa função robotizada qualquer até ser acometido por um câncer de estômago avassalador. Entendeu o chamado do Self e saiu em busca de algum significado para sua vida vazia. É claro que encontrar esse significado não foi fácil. Kanji experimenta a vida boêmia, procurando a felicidade e a realização de si mesmo de maneira hedonista. Não encontra. Tenta viver da felicidade de uma garota mais nova e cheia de vigor, o que também não funciona. Kanji Watanabe passa por várias situações até perceber o que deveria fazer para viver o pouco tempo que lhe restava com dignidade de si mesmo e morrer satisfeito com o que havia alcançado. Vou deixar o leitor curioso… se você ainda não assistiu a esse filme, vale muito a pena.
Viver (Ikiru). O filme mostra com exatidão o encontro da vida simbólica por Watanabe, e seu caminho para o mito do significado. E a reflexão que podemos fazer quando entramos em contato com essa história nos traz mais perguntas do que respostas: Então uma vida sem simbolismo é uma vida de verdade? Passar o tempo cercado e preso a papéis, carimbos, documentos físicos e digitais podem ser considerados realmente viver?
Mas, a pergunta que mais me intriga: é preciso esperar um câncer de estômago para perceber que viver é muito mais do que ser “nada mais do que”?
Eu entendo que a resposta para essa pergunta pode ter aproximadamente 7,6 bilhões de respostas, que é mais ou menos o número de habitantes humanos no mundo hoje. No fim, cada um de nós irá encontrar seu caminho e seu significado de uma maneira peculiar, particular, individual. O encontro com a alma não é exclusivo de qualquer ser humano, mas exige dedicação e coragem do indivíduo porque o caminho não é fácil e nem tranquilo.
Umas das mais famosas frases de Jung no livro Memórias, Sonho e Reflexões, diz: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade.”
Ah! Então o que precisamos fazer é deixar que nossos inconscientes se realizem! Aparentemente isso não é tão simples quanto parece. Mesmo nos aplicando diariamente nessa busca, acreditando que estamos deixando espaço e tempo para a alma, nada pode garantir que, como Jung e Watanabe, consigamos permitir que nossos inconscientes se realizem. Viver exige esforço, e ao mesmo tempo, não podemos fazer muito se não deixarmos a vida acontecer.
É preciso estar atento! Pode ser que estejamos mais presos à máquina do que imaginamos, só não conseguimos perceber. Pode ser que a burocracia já tenha tomado conta das nossas almas e que elas precisem da nossa ajuda para retomar sua liberdade. Encontremos tempo para as expressões da alma! E apesar de não ser garantida, aumentamos assim as chances da realização de nossos inconscientes.
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP e Sifu (mestre) de Kung Fu. Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo
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