Descubra como a inatividade e a contemplação podem ser elementos chave para uma experiência mais profunda no espaço analítico. Explore a necessidade de repensar a abordagem frenética da vida contemporânea e seu impacto na psicoterapia.
Não é novidade alguma o fato que vivemos em mundo frenético, ávido por rapidez, resultados, performance e desempenho. Vivemos angustiados com a sensação de que sempre estamos atrasados e desempenhando nossas atividades aquém do que deveríamos para pertencer ao grupo dos vencedores e/ou daqueles que estão dando conta da vida. Viver de forma intensa, significativa e verdadeira tornou-se sinônimo de maior desempenho, maior número de atividades e, claro, um maior consumo.
No capitalismo tudo é passível de tornar-se produto e assim ser consumido.
Inclusive o tempo e a própria vida em si. Mesmo o chamado tempo livre tornou-se um derivado do trabalho e serve para se recuperar do trabalho, permanecendo preso a sua lógica.
Não conhecemos mais aquele repouso sagrado, festivo, que reúne em si intensidade vital e contemplação. Falta, ao tempo livre, tanto a intensidade da vida quanto a contemplação. Ele é um tempo que matamos a fim de não deixar nenhum tédio surgir. Não é um tempo livre, vivo, mas um tempo morto. (HAN, 2023, p. 11).
Vivemos escravizados pela lógica do trabalho e do consumo. Trabalhamos para consumir e, para ser consumível, tudo é transformado em produtos. Às vezes me pego pensando que mesmo no contexto do processo analítico esta lógica interfere. Não raramente, analistas e analisando repetem algumas expressões curiosas se as olharmos por esta ótica: “gostaria de hoje trabalhar o seguinte tema”; “vamos trabalhar este sonho”; “vamos trabalhar esta questão”. E assim vai…
O discurso neoliberal da necessidade constante de produtividade parece ter invadido também o dia a dia dos consultórios e daquilo que se faz na psicoterapia.
A preocupação com a duração do processo é um tema quase que obrigatório nas primeiras sessões, revelando uma necessidade de que tudo seja rápido, eficaz e indolor. Sem tantas investigações no passado, mas traga resultados imediatos. A comparação com algumas outras abordagens teóricas que são vistas, no senso comum, como mais rápidas e trazem resultados em curto espaço de tempo e são tidas por mais eficazes, por serem mais objetivas, também é assunto presente.
O mercado também dá a sua contribuição na construção desta visão. Uma infinidade de cursos, workshop de final de semana, técnicas, vivências catárticas, imersões que entram madrugada adentro, desafios físicos, privação de sono, pouco tempo para o descanso, para a reflexão, levando os participantes à exaustão, dão a ideia de alta performance e produtividade e, assim, grandes transformações e curas com resultados garantidos e rápidos.
Sem dúvida alguma a análise tem que apresentar resultados. Neste processo há uma produção. Quem se submete a um processo analítico quer ter resultados, mas talvez a questão aqui seja o caminho para isso. Com certeza não é necessariamente pelo trabalhar, fazer e produzir da lógica capitalista que a transformação acontece. Exatamente pelo contrário.
Dado que percebemos a vida apenas em termos de trabalho e desempenho, compreendemos a inatividade como um déficit que deve ser corrigido o mais rápido possível. A existência humana está totalmente absorvida pela atividade. (HAN, 2023, p. 09).
Gostaria de discutir exatamente isso: a inatividade como aquilo que move o fazer analítico. A inatividade como proposta de construção de um novo sentido.
Para isso, vou buscar a ajuda das ideias de Byung-Chu Han, mais especificamente na sua obra Vita Contemplativa ou sobre a inatividade que, a meu ver, conversam aqui com o pensamento de Jung. Mas, para começo de conversa, o que é essa tal de inatividade:
A inatividade constitui o Humanum. O que torna o fazer genuinamente humano é a parcela de inatividade que há nele. Sem um momento de hesitação ou de contenção, o agir se degenera em ação e reação cegas. Sem repouso, surge uma nova barbárie, é o silenciar-se que dá profundidade à fala. Sem o silêncio não há música, mas apenas barulho e ruído. O jogo é a essência da beleza. Onde impera apenas o esquema de estímulo e reação, de carência e satisfação. De problema e solução, de objetivo e ação, a vida se reduz à sobrevivência, à vida animalesca nua. A vida só recebe seu esplendor da inatividade. Se perdermos a capacidade para a inatividade, igualamo-nos a uma máquina que deve apenas funcionar. (HAN, 2023, p. 11-12).
Ou seja, a inatividade não é apenas a ausência de fazer, de produzir. Ela não é algo vazio e oco, mas pelo contrário, ela tem intensidade. É ela que dá sentido a atividade humana. A inatividade não se opõe a atividade. Antes a atividade se nutre da inatividade (HAN, 2023).
Perdemos o sentido da inatividade, a qual não representa uma incapacidade, uma recusa, uma simples ausência de atividade, mas uma capacidade em seu próprio direito. A inatividade tem sua própria lógica, sua própria linguagem, sua própria temporalidade, sua própria arquitetura, seu esplendor, sua própria magia. Ela não é uma fraqueza, uma falta, mas uma intensidade que, todavia, não é nem percebida nem reconhecida na nossa sociedade da atividade e do desempenho” (HAN, 20223, p. 09).
Penso quem um bom exemplo desta inatividade são os registros das experiências realizadas por Jung e relatadas tanto nos Livros Negros e, posteriormente, no Livro Vermelho – aí já acrescentadas suas interpretações e suas lindíssimas e intrigantes ilustrações. Essas experiências se dão em momentos de paradas. São frutos de uma inação. Não havia utilidade naquele fazer. Não vinha do ego, pelo contrário, em muitos momentos podemos ler a aflição do ego do Jung, procurando entender aquilo tudo, sentindo-se ridículo e acreditando estar acometido pelo espírito zombeteiro.
“Senta-te e descansa” (JUNG, 2013, p.143)
“Senta-te e descansa”. Essa é uma das ordens que Jung recebe de um dos seus personagens internos. Preocupado no que ele tem para fazer, como fazer, como acessar o mundo da alma, ele recebe esta simples ordem: não faça nada! E nada não é pouco! Nada, era o convite para abrir-se a um mundo desconhecido. Buscado sim, por ele. Intuído. Ansiado. Mas, totalmente desconhecido.
Em muitos momentos podemos ler que ele não compreendia o que estava acontecendo. Cansado, queria dormir depois de um dia de muitas atividades, mas mesmo assim colocava-se em estado de espera e em silêncio:
A porta do mistério está trancada atrás de mim. Sinto que minha vontade está paralisada, e que o espírito da profundeza me possui. Nada sei sobre um caminho. Por isso não posso querer isto ou aquilo, pois nada me indica se é isto ou aquilo que quero. Eu espero, sem saber o que eu espero. (JUNG, 2013, p. 190).
Este estado de espera não se trata de uma passividade vazia e acomodada. Pelo contrário, é uma espera incomodada. É uma espera diferente.
Blanchot afirma: “a espera começa quando não há mais nada aí pelo que se espere, nem mesmo pelo fim da própria espera. A espera ignora e destrói aquilo que espera. A espera não espera nada” (apud HAN, 2023). “Tua espera me chamou” (JUNG, 2013). Este é o prêmio daqueles que se colocam na atitude de espera. Que tem a coragem de encarar o nada. De fazer silêncio.
Das profundezas do desconhecido algo novo surge: o Cavaleiro Vermelho irrompe do mundo interno de Jung e com ele trava uma linda, dura e absolutamente surpreendente conversa que desorganiza e reorganiza seus pensamentos, conceitos e sentimentos.
A espera é uma entrega ao acontecimento inconsciente. Visto pelo lado de fora, ele é inativo. Mas essa inatividade é a condição de possibilidade da experiência. A espera começa quando já não se tem nada de determinado em vista. Quando esperamos algo determinado esperamos menos e nos fechamos ao acontecimento inconsciente. A espera é a postura espiritual de quem está inativo e contemplativo. É-lhe revelada uma realidade inteiramente diferente, á qual nenhuma atividade, nenhuma ação, tem acesso. (HAN, 2023, p.27-28).
A espera conduziu Jung a uma EXPERIÊNCIA, que o colocou diante do inconsciente. Do absolutamente outro e desconhecido.
HAN nos lembra que a experiência, em sentido enfático, não é um resultado do trabalho e do desempenho (2023). Ela não se deixa produzir pela atividade. Antes, ela pressupõe uma forma particular de passividade e de inatividade. Segundo Heidegger: “fazer uma experiência com algo, seja com uma coisa, com um ser humano, com um deus, significa que esse algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma” (apud HAN, 2023).
A espera tem a função de criar as condições para que a experiencia aconteça. Experienciar é viver o inconsciente, o novo, o criativo, o genuinamente inédito. A ação desenfreada, a necessidade de produtividade a qualquer custo e a busca pelo desempenho constante promovem apenas o igual, a repetição. Gerando mais vazio, mais angústia, necessitando, assim, de mais consumo.
O silêncio, a contemplação e a inação criam as condições para a manifestação do inconsciente.
Assim sendo, o verdadeiro novo, o verdadeiro outro que desacomoda, assombra e atropela, possibilita a transformação. O indivíduo manifesta-se genuíno e não apenas uma repetição que busca adequação e repouso nos braços da massa. Neste sentido, o espaço analítico torna-se o lugar e o tempo oportuno para se aprender e suportar o esperar, bem como, a possibilidade de fazer a experiência.
A análise é um espaço e um tempo subversivo e revolucionário, neste sentido, pois é capaz de promover a inação. É capaz de promover a contemplação da vida, numa passividade ativa, ou seja, numa inutilidade útil, como condição da possiblidade de uma ação realmente nova e criativa inspirada pela manifestação do inconsciente. A análise se torna, por excelência, o espaço de quebra, de rompimento com o que está posto. Enquanto o mundo e a cultura nos empurram para o desempenho, a performance e o utilitarismo, a análise nos convoca a parar, escutar, contemplar a vida e seus mistérios. Não se trata de livrar-se de nada, mas pelo contrário, integrar tudo. Aprender a identificar e lidar com o paradoxal. Como nos lembra o próprio Jung:
O objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade, mas sim possibilitar que adquira firmeza e paciência filosóficas para suportar o sofrimento. A totalidade, a plenitude da vida exigem um equilíbrio entre sofrimento e alegria. (JUNG, 2013 §185, p. 95).
Dito de outra forma, a análise é o espaço e o tempo para o nada.
E neste caso o nada não é pouco, mas a condição para a possibilidade da manifestação do inconsciente. A inatividade leva a espera, a espera gera a experiência e esta pode nos conduzir a um novo estado de alma:
A verdadeira felicidade se deve ao que é vão e inútil, ao que é reconhecidamente profuso, improdutivo, desviante, excessivo, superficial, às belas formas e gestos, que não têm nenhuma utilidade e não servem para nada. Passear sossegadamente é, em comparação com o andar, correr ou marchar para algum lugar, um luxo. O cerimonial da inatividade significa: fazemos, mas para nada. Esse para nada, essa liberdade com respeito a qualquer finalidade ou utilidade, é o núcleo essencial da inatividade. É a fórmula essencial da felicidade. (HAN, 2023, p. 16)
Adriano L. Pardo – Analista em Formação
Ajax Salvador – Analista Didata
Referências:
HAN, Byung-Chu, Vita Contemplativa: ou sobre a inatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.
JUNG, C. G, A Prática da Psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. 16ª ed. – Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G, O Livro Vermelho: edição sem ilustrações. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
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