Resumo: Nesse artigo, a temática da violência crescente nos relacionamentos afetivos é ampliada e debatida, passando pela metáfora dos titãs e da inconsciência ao se relacionar. A questão de como a ira e a agressividade ganham força também é abordada, levando em consideração a cultura atual e os ditames coletivos. Uma visão da sombra coletiva é destacada como um dos pilares da violência e da agressividade rompante na sociedade.
É premissa de todo relacionamento afetivo saudável, criativo e funcional o conhecimento mínimo sobre a natureza subjetiva daquele que se propõe a compartilhar dores, alegrias, sorrisos e angústias com o outro.
A delegação da responsabilidade própria de se autogerir e de se administrar emocionalmente ao outro acaba solapando um desenvolvimento conjunto e direcionado para uma finalidade construtiva.
Logo, abrir mão da própria capacidade de reconhecer quais aspectos precisam ser elaborados (presentes em uma projeção de conteúdos inconscientes), encarcera o movimento recíproco do dar e receber. A dinâmica do poder e do controle é a ferramenta titânica mais eficiente para a promoção da violência e da anestesia do tear vínculos e relações. Ferramenta estimulada a todo momento pela cultura, grupos e mídias sociais e contextos familiares.
Não resta dúvida que o mal provém, em grande parte, da inconsciência ilimitada do homem, como também é verdade que um conhecimento mais profundo nos ajuda a lutar contra as causas psíquicas do mal.
Jung, OC.10/3, §166
Quanto mais inconscientes somos sobre o que nos atravessa, mais a consciência é invadida por conteúdos sombrios e pelas constelações dos complexos. Assim, em uma dinâmica conjugal, a razão e o discernimento são afastados, sendo substituídos pela ação do aspecto primitivo inconsciente de todo ser humano, anunciando a entrada em campo da força violenta e bruta dos titãs. Deste modo, se tem um embate entre sombras e não entre vozes conscientes e direcionadas a um amor compartilhado.
Jung explica:
De modo geral, estas resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços característicos da sombra podem ser reconhecidos, sem maior dificuldade, como qualidades pertinentes à personalidade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa a emoção parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa.
OC 9.2, §16
Um outro alicerce para relações abusivas e violentas é o falsear aquilo que somos.
A espontaneidade é o aroma que encanta e atrai multidões como também desperta fúria e perseguições. A angústia em ver no parceiro/a aquele lado que tanto foi renegado ou subvalorizado por mim, provoca terremotos e tsunamis emocionais profundas, capazes de destronar a consciência e levar o indivíduo a todo tipo de barbárie.
A inveja – aspecto genuinamente humano – daqueles que conseguiram expressar aquilo que tanto foi negado por mim é uma força que ganha intensidade quando a superficialidade se torna regra nas relações. A frustração interna em não ter trabalhado possibilidades e potências inerentes e múltiplas do ser se espelha em uma frustração externa, que se faz ser reconhecida independente da vontade pessoal, das defesas e compensações inconscientes. Esse movimento profundo de autoalienação cobra um preço alto e exige uma conscientização amarga, que infelizmente é desaguado nos parceiros/as.
A autoalienação é uma erva daninha que se espalha e se expressa de inúmeras formas. Seja em uma busca insaciável por um corpo perfeito, volumoso, com veias e voz grossa; seja por encantos de uma distorcida imagem social luxuosa ostentada em redes sociais com viagens e objetos de luxo. O território desconhecido em mim é o lugar de morada dos titãs.
Na mitologia, as figuras simbólicas dos titãs representam tanto uma força poderosa, intensa, construtiva da terra como a destruição brutal e domínio da consciência pelos instintos e forças primitivas. March comenta: “Depois Urano fecundou Gaia, que deu à luz a raça dos deuses primordiais conhecidas como titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperio etc..” (March, 2016, p.42)
Vale ressaltar que a fuga de si mesmo não poder ser abafada por uma dependência afetiva, ou seja, por uma ausência constante daquilo que me toca e me afeta genuinamente.
A maior plenitude de uma consciência é ter a sensibilidade psíquica, corporal, espiritual de poder ser tocada, mexida, afetada, sendo posteriormente elaborada, ampliada e integrada. Entretanto, não é um movimento inconsciente ao outro enredado por traumas, dores, ausências maternas, paternas que irá preencher um vazio infinito de valorização e de reconhecimento. Esse poço apenas pode ser preenchido por uma redenção ao centro solar, uno, que vivifica toda a vida; a autopercepção honesta, profunda e misericordiosa entoada pelo Si mesmo.
A violência titânica de um ser humano ignora todas as dependências e interrelações necessárias com o meio que o cerca.
O que se tem é o uso da natureza como uma serviçal pronta para qualquer tipo de satisfação imediata e fugaz. Então, a partir do momento que há um corte no olhar observador que singulariza a natureza viva daquilo que chega até mim, o descarte, a agressão e o uso desalmado ganham palco. Então, podendo levar à fúria dos inconscientes e à derrocada de um encontro criativo e vivo.
A sequência desses fenômenos é de certo modo ordenada por dois arquétipos, o da anima que exprime vida incondicional, e o do “velho sábio”, que personifica a mente.
Jung, OC.14/1. §307
O ataque violento contra a figura feminina denota uma agressão contra a própria vida que se torna insuportável de ser vivida e sentida, aquela que se torna falsa.
A projeção da anima em mulheres, na comunidade homoafetiva e em tudo aquilo ligado ao sensível se transforma no alvo inconsciente a ser destruído por lembrar ao ego a dor e angústia profunda de se abandonar. A figura do feminino passa a carregar a ameaça constante do precipício que convida o ego massificado e ignorante de si mesmo a pular dentro (como uma tentativa de se resgatar).
A negação da anima, da vida e sua conexão, gera uma ferida angustiante que a todo tempo relembra sua presença e o seu vazio. Jung cita:
A anima em seu aspecto negativo, isto é, quando ela, permanecendo inconsciente, oculta-se no sujeito e exerce uma influência possessiva sobre ele. Os sintomas principais dessa possessão são de uma parte caprichos cegos e confusões compulsivas, e de outra parte isolamento, frio e sem nenhum relacionamento, numa atitude de princípios (confusão de ideias).
OC. 4/2, §204
Monick complementa:
Na fúria, a tempestade de resposta emocional nasce da necessidade urgente que o homem experimenta de proteger e salvar a sua identidade, o seu próprio ser- isso e/ou a retaliação da ofensa que está sobre ele, como ela é percebida subjetivamente. A ira pode ser a emoção que se sente quando não há nada a fazer. É mais provável que surja a fúria quando o homem se sente incapaz.
Monick, 1993, p. 116
O espírito da época cada vez mais raso, seco, egoísta, indiferente estimulando a produtividade e performance a todo custo alavanca a ira e o controle.
Como consequência, a raiva profunda em ser decepado, castrado, dividido e desmembrado em uma cama que não cabe a grandeza e a riqueza de ser quem somos é enterrada no inconsciente. Logo, a não permissão de sermos vistos com a totalidade intrínseca e inerente ao humano somado com a anestesia da capacidade de ligação com o mundo, com a natureza com aquilo que nos cerca, acaba constelando os titãs e ogros que habitam em todos nós.
Ampliando o tema, Monick comenta:
A fúria masculina é uma indicação de que um homem está em contato pessoal e doloroso com um ferimento profundo, até mesmo com o não-ser. Pode-se receber essa fúria, e afastar-se dela, julgando-a com dureza adequada, mas sem um mínimo de compreensão.
Monick, 1993, p. 119
Até que ponto a cultura vigente permite que haja um espaço para que a raiva e a exposição de feridas masculinas emocionais sejam elaboradas? Enquanto coletivo, abafamos a fúria ou damos espaço para que ela seja ouvida?
A revolta da sombra se faz presente na consciência de todos aqueles que vivem de maneira inconsciente.
Seu motim, seu grito, é proclamado em alto e bom tom em todos de forma explicita ou implícita, degradando relacionamentos e vínculos conjugais. Como consequência, a raiva se intensifica e toma o lugar da consciência.
O campo amplo e vasto do inconsciente, não alcançado pela crítica e pelo controle da consciência, acha-se aberto e desprotegido para receber todas as influências e infecções psíquicas possíveis.
Jung, OC. 10/1, §493
Nas consciências pautadas pelo princípio masculino, pode se expressar através da sequência extrema de socos e golpes em algo delicado; pela brutalidade de respostas desconcertantes e fora de contexto; pela indiferença do sentir do outro; na cegueira em momentos de abertura daquilo que fere e causa sofrimento, angústia.
Por outro lado, nas consciências pautadas pelo princípio feminino, pode se manifestar através de manipulações emocionais sutis e perversas; pelo controle da vida e dos movimentos do outro com uma voz aveludada e mansa; pela ambiguidade proposital de palavras, falas e atos; pela sedução e jogo de sinais afetivos deturpados e com aroma podre; ou até mesmo pelo uso efetivo e camuflado de benefícios que esconde a busca por um novo pai e não um parceiro ao lado.
Dizer que um indivíduo “teve um acesso de raiva” significa que algo caiu sobre ele e o subjugou; que o demônio está montado nele; que está possesso e que alguma coisa penetrou em seu íntimo.
Jung, OC.8.2, §627
É importante destacar que gentileza e proteção, compaixão e apoio, atos de afeto e trocas são raízes de qualquer relacionamento saudável que busca uma construção conjunta. Entretanto, quando a invisibilidade do outro; quando há a percepção de um corpo vivo como um objeto ou um negócio que pode angariar benefícios; quando a minha total inconsciência sobre o que me desafia e me atravessa; a terra alquímica da união entre polos diferentes se torna seca, abrindo rachaduras através das quais o clamor das sombras e o grito dos titãs internos saem e fazem presença. Sendo todo esse processo iluminado com a coroa da violência e da destruição.
Um fenômeno moderno comum na atualidade é colocar estigmas nas relações, padrões de classificação.
A fuga de relações profundas ao classificar “ficantes” em várias categorias cobra seu preço quando a ausência do contato (necessidade arquetipicamente humana) fala mais forte. Ao se colocar barreiras, requisitos a serem conquistados, avaliações empresariais e capitalistas em um campo afetivo e de aproximação e constituição de vínculos, uma faixa preta de alienação é amarrada nos olhos, na percepção de alma.
A máquina das redes socias em criar fantasias, as denúncias falsas de agressões de parceiros/as, a demonização e destruição da imagem masculina com a vulgarização interesseira da feminina alimentam nossos titãs. Formas de violência profunda que permeiam o campo social e coletivo. Se engana quem pensa que essa força agressiva, titânica, estimulada a todo instante “desaparece” em um passe de mágica ou por discursos ideológicos. É necessário o enfrentamento de si mesmo.
A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos e injustos, que, de alguma maneira, se encontravam na proximidade do crime.
Jung, OC.10/2, §405
Mais uma vez, a sombra coletiva tem seu peso, sua voz e sua força de atuação no inconsciente coletivo e pessoal.
Aquilo que não é reconhecido na dinâmica coletiva se manifesta em dinâmicas particulares, seja em relacionamentos seja em uma indisponibilidade para criar vínculos. O caminho não é a instrumentalização dessa força para se obter lucro, mas sim uma identificação, mediação, integração e diálogo não excludente da sua própria existência e eficácia.
A figura da sombra personifica tudo o que o sujeito não reconhece em si e sempre o importunam, diretamente ou indiretamente, como por exemplo traços inferiores de caráter e outras tendências incompatíveis.
Jung, OC.9.1, §513
Por fim, a amplitude da experiência humana, que permite uma ampliação de consciência, está sendo encaixotada em uma esteira de massificação e padronização de produtos.
O produto do relacionamento perfeito, instagramável, que atende todos os requisitos de um casal margarina que anda pelos campos com um cachorro gold retriver. Ou seja, uma ilusão que captura e sequestra a possibilidade de transformação mútua quando se relaciona afetivamente com alguém. A propaganda é: compre esse produto e não se preocupe em integrar os conteúdos sombrios e dos complexos. A máquina das redes socias e denúncias fazem o resto.
Pedro Pimentel Rocha – Membro Analista em Formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata do IJEP
Referências:
JUNG, C. G. A natureza da psique.OC.8.2 Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC.9/1. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Aion. Estudo sobre o simbolismo do Si-mesmo.OC.9.2 Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Presente e futuro. OC.10/1. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Aspectos do drama contemporâneo. OC.10/2. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Civilização em transição. OC.10/3. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. OC.14/1. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. OC.14/2. Petrópolis: Vozes, 2021
MARCH, J. Mitos clássicos. 2ªd – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
MONICK, E. Castração e fúria masculina: a ferida fálica. São Paulo: editora paulinas, 1993.

