Ler o delicioso livro de Wagner G. Barreira – Lampião e Maria Bonita – uma história de amor e balas (que usei como base para este artigo) é fazer uma deliciosa viagem fantástica através de uma parte da história e cultura do povo nordestino e de todo o povo brasileiro.
Todavia, se aproximar da história de Lampião e Maria Bonita através do olhar simbólico é se aproximar de uma história encantada, que nos remete às nossas próprias histórias, nossos próprios conflitos, nosso cangaço particular. É através deste olhar que trago um breve relato deste casal que faz parte do patrimônio cultural brasileiro.
A história de Lampião já se tornou uma lenda brasileira.
A história de Lampião já se tornou uma lenda brasileira. De construção coletiva, contada em verso e prosa, em historiografias e cordéis, possui muitas versões, que vão do banditismo impiedoso, ao herói que protegia os pobres, passando pelo empresário bem-sucedido em seu “negócio”.
Maria Bonita era sua companheira, que com sua personalidade forte, influenciou a forma de funcionamento do cangaço a partir de sua entrada para o bando.
Admirados por uns, recriminados e odiados por outros, sua história povoou os jornais e o imaginário brasileiro no início do século XX, e continua até hoje. Tudo indica que não existe um único brasileiro que não tenha ouvido falar nestes nomes e conheça ao menos superficialmente essa história.
Um pouco sobre Lampião
Virgulino Ferreira da Silva nasceu em 7 de junho de 1897, embora existam mais treze datas que reivindicam para si esse feito. Natural do sertão pernambucano, mais especificamente em Serra Talhada, passou sua infância brincando do que brincavam os meninos daquele lugar: cangaceiros e volantes , no qual, diferentemente do jogo de polícia e ladrão do sul do país, os times não eram divididos entre o “bem” e o “mal”.
Era filho de pai almocreve, com fama de sensato e conciliador e de mãe de sangue quente de onde se dizia que vinha o sangue quente dos irmãos Ferreira. Após um entrevero com um vizinho da familia participou de seu primeiro tiroteio aos 18 anos e motivado por vingança, uma após outra, ele e mais dois irmãos acabaram naturalmente entrando para o cangaço.
O cangaceiro era visto como um justiceiro e não como um bandido fora da lei. Aquele que ocupava o espaço vago deixado pela polícia e pelo judiciário. A população os tratava com respeito.
Ao entrarem para o bando de Sinhô Pereira ele e seus dois irmãos ganharam apelidos, mas só o de Virgulino pegou: passou a ser conhecido como Lampião. Mais tarde, já como sucessor de Sinhô Pereira, seria conhecido também como Rei do Cangaço.
Um pouco sobre Maria
Maria Gomes de Oliveira, a Maria de Déa, nasceu no dia internacional da mulher, em 8 de março de 1911, em Santo Antônio da Glória, na Bahia. Conforme costume local, vivia com o primo Zé de Neném desde os 16 anos num arranjo casamenteiro feito pelo pai, que não foi feliz pois não geraram filhos uma vez que o marido era estéril. Maria, conhecida pelo seu pavio curto, viveu às turras com o marido e à cada briga o abandonava e voltava para a casa dos pais.
Maria já admirava Lampião mesmo antes de conhecê-lo, pois sua fama o precedia. A população local respeitava Lampião. Por sua vez, Maria o tinha como modelo de valentia, coragem e inteligência. Ela o conheceu pessoalmente em umas das visitas do bando à fazenda de sua família e após bordar alguns lenços de seda para o cangaceiro, começou o namoro, com o apoio decisivo de dona Déa e alguma resistência do pai, que já previa problemas com a polícia.
Cangaço
O cangaço, até aquele momento, era coisa de homem. Lampião, porém, enquanto escondido na caatinga, sofria por amor. Maria pedia para acompanhar o namorado, e após alguma resistência deste, acabou incluída no bando sob o olhar atônito dos outros cangaceiros. Lampião quebrava a tradição e, dali por diante, viveria suas aventuras ao lado de uma mulher, ainda que isso fosse visto como um mau agouro pois, segundo as crenças, abria o corpo do cangaceiro às balas, o tornava vulnerável. Fato é que depois disso muitas e muitas cangaceiras se juntaram ao bando. Dezenas delas. Fala-se em até setenta cangaceiras.
Um princípio masculino e um princípio feminino se unem para viverem aventuras no sertão nordestino, cercados de muita controvérsia.
Essa história se apresenta com muitas versões. De algum modo não sabemos mais o que é mito, o que é lenda e o que foi criado e o que de fato foi vivido. Mas é uma história que nos toma emocionalmente, pois a dinâmica presente refere-se a uma estrutura mitológica. É uma história com uma estrutura arquetípica que fala de todos nós.
Segundo Jung (2013) essa classe de conteúdos do inconsciente – que ele chamou de arquétipos – não pode ser atribuída a aquisições individuais, e sim, é como se pertencessem à humanidade em geral e não à uma psique individual. Os arquétipos encerram motivos mitológicos, os quais surgem novamente em contos de fada, nos mitos, nas lendas e no folclore.
Anima e animus
Jung (2015) coloca o conceito de anima e animus como duas figuras arquetípicas presentes na estrutura da psique que respondem ao princípio feminino e princípio masculino.
Enquanto arquétipos, estão enraizados no inconsciente coletivo, mas manifestam-se no comportamento. Jung entende anima e animus como complexos funcionais que se comportam de forma compensatória em relação à personalidade externa. Anima é a contraparte feminina da personalidade do homem. Animus é a contraparte masculina presente na personalidade da mulher.
Segundo Emma Jung (2020) anima é também a imagem do ser feminino que o homem traz dentro de si, o arquétipo do feminino. Essa imagem será projetada em uma mulher real – que corresponda a essa imagem. Ao passo em que a imagem do animus será projetada em um homem real – cujas características correspondam a essa imagem.
Contextualizando
Maria Bonita era uma mulher forte, que já admirava Lampião por sua força e sua coragem mesmo antes de conhecê-lo. Já tinha o animus projetado na figura desse homem, o mesmo animus que fazia dela uma mulher de atitude, que não tolerou o primeiro casamento, que não admitiu a submissão ao pai, e que não admitiu ter seu comportamento tolhido pela sociedade local a partir de sua condição de mulher separada. O mesmo animus que a lançou em uma vida difícil, de muitas privações, mas também de muito companheirismo, liberdade e sentido.
Ao mesmo tempo, esse princípio masculino parecia conviver de maneira harmônica com a sua feminilidade. Era uma mulher vaidosa, que trouxe uma nova estética ao cangaço. Foi ela quem inaugurou o estilo elegante, com chapéus bordados, lenços de seda amarrados no pescoço, bordados, pedrarias e joias. Maria, a seu modo, trazia leveza ao bando pois era engraçada, desinibida e brincava com todo o grupo. Era também muito carinhosa com seu Lampião, escovava seus longos cabelos e lhe enchia de carícias.
Lampião tinha uma grande capacidade de liderança. Sua palavra era lei. Cuidava da logística de cada combate, onde demonstrava calma e inteligência. Tinha regras claras dentro de seu bando, que ninguém ousava desobedecer. Fazia valer a palavra empenhada, o respeito à familia e a moral conservadora. Dentre as muitas divergências na sua historiografia está o número de assassinatos a ele imputados: uns falam em duzentos, outros, mais de mil.
Quem imaginaria que este homem pediria a uma mulher que lhe bordasse de forma prestimosa alguns lenços de seda?
Maria Bonita também se prestou a receber a projeção de anima de Lampião, que por ela se apaixonou.
E em nome desta paixão se atreveu a quebrar não só uma tradição e regras humanas, mas também de regras sobrenaturais.
A entrada de mulheres para o bando suavizou a dureza daqueles homens que viviam em combate ou escondidos da perseguição policial na dura secura da caatinga. Pediram a elas que tomassem mais banhos para aliviar o “bodum”. Seus uniformes foram otimizados, tornados mais confortáveis e bordados para ficarem mais bonitos. Os icônicos chapéus também foram bordados com estrelas de seis pontas, flor-de-lis e o signo de Salomão, o que remetia às tradições medievais. A estética se tronou exuberante e intimidadora, conferindo identidade ímpar ao grupo.
As mulheres também criaram seu próprio uniforme composto de vestidos utilitários e acessórios, chapéu baeta e lenços.
Podemos dizer que um encontrou no outro projeções de aspectos desconhecidos de si mesmo, e por isso a ligação foi tão forte. E isso mudou o funcionamento do bando. E isso mudou o cangaço.
Lampião e Maria Bonita viveram juntos cerca de oito anos. Maria Bonita engravidou quatro vezes, muito embora os três primeiros filhos nasceram mortos. Em sua quarta gestação nasceu Expedita, que viveu com os pais por um mês – e que depois foi levada para ser criada pelo único irmão de Lampião que não entrou pra o cangaço. Expedita vive até hoje.
A trajetória de Lampião no cangaço durou aproximadamente vinte anos. Findos os quais foi morto pela polícia numa emboscada, em 28 de julho de 1938, na fazenda Angicos, no Sertão de Sergipe.
As cabeças de Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram cortadas e expostas em várias cidades nordestinas num espetáculo horroroso e humilhante, até chegarem ao IML de Salvador, onde ficaram expostas por trinta anos, até serem sepultadas em 1969.
A história de Lampião e Maria Bonita possui um colorido de muitas nuances e pode ser analisada do ponto de vista da psicologia junguiana por várias abordagens.
Os aspectos arquetípicos do animus e anima no contexto do cangaço abordados aqui, são apenas um desses aspectos. Deixo para o leitor apaixonado pela riqueza da nossa história e da nossa gente, as novas análises.
Selma de Fátima Silva Canoas – Analista em Formação IJEP
Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
BIBLIOGRAFIA:
BARREIRA, Wagner Gutierrez. Lampião & Maria Bonita: uma história de amor e balas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2018.
JUNG, C. G. A vida simbólica. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. (Obras completas de Carl Gustav Jung, 18/1).
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. (Obras completas de Carl Gustav Jung, 7/2)
JUNG, Emma. Animus e anima: uma introdução à psicologia analítica sobre os arquétipos do masculino e do feminino inconscientes. 2. Ed. São Paulo: Pensamento Cultrix, 2020.
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