Eu costumo provocar meus clientes e alunos para um exercício de reflexão com a seguinte frase: “É preciso fazer um esforço tremendo para conseguir deixar a vida acontecer.” Gosto da palavra “tremendo” nessa sentença porque ela passa, de maneira ambígua, a ideia de um adjetivo, mas ao mesmo tempo indica movimento, afinal é o gerúndio de tremer. É preciso fazer o esforço enquanto trememos, enquanto ele mesmo, o esforço, é assustador. Tremendo vem do Latim tremendus e significa temível, perigoso, abalado e que abala. Tem origem em tremere, que é traduzido como sacudir, agitar. Então é como se, diante da percepção e compreensão de que egoicamente somos minúsculos, mas, ao mesmo tempo temos um papel importante na realização da totalidade, tremêssemos perante aquilo que é tremendo. Talvez essa seja a experiência daquilo que C. G. Jung descreve como numinoso.
Acredito que a ideia taoísta do Wu Wei (無為)esteja conectada com esse pensamento. Esse princípio, que pode ser considerado um dos pilares dessa escola filosófica, é comumente traduzido por “não ação” ou “não governar” e muitas vezes é encontrado também na expressão Wei Wu Wei, que poderia ser traduzido como “agir não agir” ou “ação não ação”. Como sempre, quando mergulharmos mais profundamente no significado dos caracteres chineses, percebemos que a tradução literal e direta de qualquer expressão dessa língua é insuficiente para a sua verdadeira compreensão. A língua chinesa não foi estruturada para exprimir conceitos, ela traz, ao invés disso, sugestões práticas que visam a conversão da conduta; seus caracteres podem ser olhados de maneira simbólica de acordo com a acepção dada a este termo por C. G. Jung.
O primeiro caractere da expressão, Wu (無) pode significar, de maneira prática, “não”, “não ter que”, “ausência”, “negativo”. Porém, um fato curioso sobre esse caractere é que quando ele é usado como radical na formação de outras palavras, pode ganhar uma definição oposta a esse significado trazendo a ideia de “abundância” ou “fartura”, como por exemplo no caractere Wû (廡) que pode ser traduzido como “exuberante”. A pronúncia das duas palavras não é a mesma, percebam o acento circunflexo em Wû (exuberante)e sua falta em Wu (ausência). Portanto, aqui já encontramos a raiz do paradoxo que a sentença Wu Wei carregacom o mesmo ideograma que atua como germe da expressão podendo possuir significados completamente opostos dependendo da maneira como está sendo empregado. Mas não será essa uma visão racionalista e unilateralizante? Podemos olhar para Wu como sendo, puramente, numa só palavra, a enunciação de um elemento unificador, não formado por antinomias, mas sim representante de totalidade.
Assim chegamos no segundo caractere que forma a expressão, Wei (為), que pode ser traduzido como “agir”, “governar”, “lidar” ou “manejar”. Do ponto de vista pictográfico mostra uma mão conduzindo um elefante. Essa imagem é muito interessante porque podemos ampliar seu significado, num primeiro momento, como sendo a representação da nossa própria busca pela governança de aspectos instintivos constituintes da psique. A mão, uma imagem que remete diretamente ao corpo humano, guia o elefante. Os atos de pegar, construir, controlar representados pela mão são característicos da nossa espécie, enquanto o elefante pode representar uma parte animal grandiosa da nossa psique. No ocidente poderíamos dizer que o elefante representa lentidão e peso, porém, do ponto de vista oriental, isso é muito diferente. Poderíamos amplificar muito a imagem do elefante a partir do ponto de vista hindu, porém, vamos nos contentar com a ideia geral de que ele representa estabilidade, é a montaria de reis e, portanto, mostra soberania (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990). Ao mesmo tempo, existe um lado sombrio desse animal que normalmente é considerado como um ser gentil e dócil; quando enfurecido, pode tornar-se extremamente destrutivo e avassalador, atropelando e matando aqueles que se encontram em seu caminho.
As manadas de elefantes são guiadas por uma matriarca que carrega consigo experiência e memória (KATHLEEN; RONNBERG, 2012). Isso pode indicar que a sabedoria da terra, de Gaia, a grande mãe, precisa fazer parte do processo de conexão entre a mão humana e a esfera dos instintos numa relação de contribuição. Olhando para estudos da etologia, experimentos mostram que o elefante é também um dos mamíferos no qual podemos encontrar o reconhecimento de si mesmo. Quando colocado em frente a um espelho, sabe que está olhando para si, para seu reflexo, e não para um indivíduo diferente (DE WAAL, 2021); possui, portanto, consciência, mesmo que ela seja de qualidade ou quantidade diferente da humana – aqui não há julgamento de valor, talvez a consciência do elefante seja melhor do que a humana em alguns aspectos e pior em outros, cada ser tem a consciência que lhe cabe do ponto de vista evolutivo.
C. G. Jung, ampliando e traçando paralelos arquetípicos sobre o princípio do Wu Wei, faz uma conexão importante com a visão filosófica ocidental que ele encontrou na obra do pensador cristão medieval, que viveu entre os séculos XII e XIV, Eckhart de Hochheim: “O deixar acontecer (Sichlassen), na expressão de Mestre Eckhart, a ação da não ação foi, para mim, uma chave que abriu a porta para entrar no caminho: Devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente” (JUNG; WILHELM, 2017, p. 33). Mestre Eckhart foi uma figura polêmica dentro da Igreja Católica exatamente pelas características paradoxais de sua obra; parece que até hoje não é possível determinar com precisão se ele era ou não ortodoxo em sua posição religiosa. Esse dado já é suficiente para mostrar a genialidade de sua obra, afinal, somente o pensamento paradoxal pode abarcar, ainda que de maneira aproximativa, o fenômeno da existência (JUNG, 2008). No texto citado, Jung dá destaque para a frase “Devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente”; acredito que aqui está a chave para a compreensão da ideia do Wu Wei, que consiste em encontrar o movimento harmônico em que a consciência age, a partir de seu ponto de vista, paradoxalmente e simultaneamente em colaboração e combate aberto frente ao inconsciente, situação na qual surge a Função Transcendente que pode levar o indivíduo para uma nova situação de vida (JUNG, 2011). Essa seria, segundo a visão taoísta, a maneira natural de seguir as mutações, comportamento que leva à harmonia do indivíduo atingindo também seu entorno relacional: “A felicidade humana, segundo os taoístas, é alcançada quando os homens seguem a ordem natural, agindo espontaneamente e confiando em seu próprio conhecimento intuitivo” (CAPRA; EICHEMBERG, 1987, p. 115).” A intuição é, de acordo com Jung (2013), a função psíquica da consciência mais próxima do inconsciente e, através dela, a energia arquetípica pode encontrar um caminho para se manifestar de maneira saudável na psique do indivíduo. Nas palavras do pensador taoísta Chuang Tzu (séc. IV a. C), o sábio “não intervém em nada, e os dez mil seres transformam-se espontaneamente (GRANET; RIBEIRO, 2020).” As dez mil coisas e os dez mil seres são, de acordo com o simbolismo chinês, o mundo concreto e as pessoas que o habitam; nesse sentido, se o indivíduo consegue viver pelo princípio do Wu Wei, ele age de acordo com as mutações permitindo que transformações da mesma ordem aconteçam à sua volta, e a intuição tem papel fundamental nesse processo.
Inúmeras práticas taoístas buscam esse estado, alguns exemplos são a caligrafia chinesa (Fǎshū), a prática meditativa do Chi Kung[1], as formas marciais – sequências de técnicas de mãos livres ou armas – do Kung Fu, a arte de cortar papel (Jiǎnzhǐ), entre outras. Através dessas práticas os artistas buscam o movimento natural e espontâneo do corpo, desprovidos de inibição, mas que, paradoxalmente, só podem alcançar a perfeição através da repetição disciplinada. A perfeição do movimento ou da produção é relativa e condicional; diz respeito exclusivamente ao que é possível e natural para cada indivíduo e, nesse sentido, não é automatismo, mas sim autonomia para representar aquilo que é arquetípico com as camadas imagéticas possíveis de serem acessadas no âmbito individual. É a realização daquilo que é universal através do particular de que fala C. G. Jung em muitos momentos de sua obra. Wu Wei é permitir que o inconsciente se realize através de nós, servir como terreno fértil para que a totalidade decida o que deve crescer em seu jardim, trabalhar para a criação de consciência enquanto renunciamos ao controle e ao poder para que a própria natureza ética se manifeste em nossos corpos.
Este ensaio serve como introdução para outros que seguirão tratando do mesmo tema. No próximo da série abordarei uma mensagem clara que o I Ching versa com relação a como devemos conduzir e ser conduzidos no caminho para o processo de individuação. Por enquanto, encerramos – ou iniciamos – nossa reflexão com um poema Zen: “Sentado tranquilamente, nada fazendo. Surge a primavera e a grama cresce por si mesma.”
José Balestrini – Membro Analista e Analista Didata em Formação pelo IJEP.
Analista Responsável – Waldemar Magaldi
Imagem: Ensô de Hakuin Ekaku. Uso de domínio público. Disponível em https://www.wikiart.org/en/hakuin-ekaku/ens
Referências
CAPRA, F.; EICHEMBERG, N. R. O tao da física: um paralelo entre a física moderna eo misticismo oriental. Cultrix, 1987.
CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva et al. : Rio de Janeiro: José Olympio 1990.
DE WAAL, F. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. Companhia das Letras, 2021. 6557822616.
GRANET, M.; RIBEIRO, V. O pensamento chinês. Contraponto Editora, 2020. 6556530107.
JUNG, C. G. A vida simbólica. Vol. 18/1. : Petrópolis: vozes 2008.
JUNG, C. G. A natureza da psique. Editora Vozes Limitada, 2011. 8532641342.
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Tipos psicológicos, p. 1-633, 2013.
JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. Editora Vozes Limitada, 2017. 8532655556.
KATHLEEN, M.; RONNBERG, A. O livro dos Símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. : Taschen do Brasil 2012.
[1] No livro O segredo da flor de ouro Jung se refere à essas práticas como Yoga Chinesa, acredito que isso seja um erro de tradução do próprio autor porque, apesar de serem práticas similares, provavelmente tiveram origem isoladas, possuindo, portanto, nomenclaturas distintas e características da cultura de onde surgiram; o Chi Kung é uma prática endêmica chinesa. Esse fato, na verdade, provaria a dimensão arquetípica do surgimento de tais práticas. Deveríamos então, no livro, substituir a expressão Yoga Chinesa por Chi Kung.